quinta-feira, 23 de março de 2017

Conclusões do Congresso Internacional de Música Sacra

“Cantate Domino Canticum Novum”
Uma Declaração Sobre a Situação Atual da Música Sacra

Nós, os abaixo-assinados músicos, pastores, professores, estudiosos, e amantes da música sacra, humildemente oferecemos esta declaração à comunidade católica ao redor do mundo, expressando nosso grande apreço pelo tesouro de música sacra da Igreja e nossa profunda preocupação com sua situação atual.

Introdução
Cantate Domino canticum novum, cantate Domino omnis terra (Salmo 96): este canto à glória de Deus ressoa por toda a história do cristianismo, desde os primeiros dias até hoje. Tanto a Sagrada Escritura quanto a Sagrada Tradição dão testemunho de grande amor à beleza e ao poder da música no culto a Deus Todo-Poderoso. O tesouro da música sacra sempre foi apreciado na Igreja Católica por seus santos, teólogos, papas e leigos.
Tal amor e prática da música é testemunhado em toda a literatura cristã e nos muitos documentos que os Papas devotaram à música sacra, desde Docta Sanctorum Patrum (1324) de João XXII, ao Annus Qui (1749) de Bento XIV, até o Motu Proprio Tra le Sollecitudini (1903) de S. Pio X, Musicae Sacrae Disciplina, de Pio XII, e o Quirógrafo sobre a Música Sacra (2003) de S. João Paulo II, e assim por diante. Esta vasta documentação nos impele a tomar com total seriedade a importância do papel da música na liturgia. Esta importância está relacionada à conexão profunda que existe entre a liturgia e a sua música, uma conexão de mão dupla: a boa liturgia enseja música esplêndida, mas um baixo padrão de música litúrgica também afeta tremendamente a liturgia. Tampouco se pode esquecer a importância ecumênica da música, quando se sabe que outras tradições cristãs – como anglicanos, luteranos, e ortodoxos orientais – possuem elevada estima pela dignidade da música sacra, como demonstram as suas próprias bem guardadas jóias musicais.
Estamos observando um marco importante, o qüinquagésimo aniversário da promulgação da Instrução sobre a Música na Liturgia, Musicam Sacram, de 5 de março de 1967, sob o pontificado do Beato Paulo VI. Relendo hoje o documento, não podemos deixar de pensar na via dolorosa percorrida pela música sacra nas décadas seguintes a Sacrosanctum Concilium. De fato, o que ocorria em algumas facções da Igreja naquele momento (1967) não estava de forma alguma de acordo com a Sacrosanctum Concilium ou com a Musicam Sacram. Algumas idéias que jamais estiveram presentes nos documentos do Concílio foram postas em prática à força, por vezes com falta de vigilância do clero e da hierarquia eclesiástica. Em alguns países, o tesouro da música sacra, que o Concílio pediu que fosse preservado, não só não o foi, como chegou a ser contestado, em total oposição ao Concílio, que afirmou claramente:
“A tradição musical da Igreja é um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da Liturgia solene. Não cessam de a enaltecer, quer a Sagrada Escritura, quer os Santos Padres e os Romanos Pontífices, que ainda recentemente, a começar em S. Pio X, vincaram com mais insistência a função ministerial da música sacra no culto divino. A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à ação litúrgica, quer como expressão delicada da oração, quer como fator de comunhão, quer como elemento de maior solenidade nas funções sagradas. A Igreja aprova e aceita no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades requeridas.” (SC 112)

A Situação Atual
Diante da visão da Igreja, expressa tão freqüentemente, não podemos deixar de nos preocupar com a situação atual da música sacra, que é nada menos que desesperadora, com os abusos no domínio da música sacra tendo-se tornado hoje quase a norma e não mais a exceção. Resumimos a seguir alguns dos elementos que contribuem à atual situação deplorável da música sacra e da liturgia.
1. Perdeu-se o entendimento da “forma musical da liturgia”, isto é, o entendimento de que a música é parte inerente da própria essência da liturgia como o culto público, formal e solene de Deus. Devemos não apenas cantar na Missa, mas cantar a Missa. Por isso, como nos recordou a instrução Musicam Sacram, as partes do sacerdote deveriam ser cantadas nos tons dados no Missal, com o povo entoando as respostas; deveria ser encorajado o canto do Ordinário da Missa em gregoriano, ou com música nele inspirada; e o Próprio da Missa também deveria ocupar o lugar de destaque que cabe à sua proeminência histórica, à sua função litúrgica, e à sua profundidade teológica. Argumentos semelhantes aplicam-se ao canto do Ofício Divino. É uma exibição do vício da “preguiça litúrgica” recusar-se a cantar a liturgia, usar “música utilitária” em vez da música sacra, recusar-se a educar a si mesmo e aos outros sobre a tradição e os preceitos da Igreja, e nada fazer pelo desenvolvimento de um programa de música sacra.
2. Esta perda de entendimento litúrgico e teológico vai de mãos dadas com a adesão ao secularismo. O secularismo dos estilos de música popular tem contribuído para a dessacralização da liturgia, enquanto o secularismo do comercialismo baseado no lucro tem reforçado a imposição às paróquias de coleções de música medíocres. Ele encorajou o antropocentrismo na liturgia, que abala a sua própria natureza. Em vastos setores da Igreja, existe hoje uma relação incorreta com a cultura, que pode ser vista como uma “rede de conexões”. Com a situação atual de nossa música litúrgica (e da própria liturgia, porque as duas são interligadas), rompemos essa rede de conexões com nosso passado e tentamos estabelecer conexão com um futuro que não tem sentido sem o seu passado. A Igreja hoje não está utilizando ativamente as suas riquezas culturais para evangelizar, mas é ela mesma utilizada pela cultura secular prevalecente, nascida em oposição ao cristianismo, que desestabiliza o sentido de adoração que está no cerne da fé cristã.
Em sua homilia na Festa de Corpus Christi, em 4 de junho de 2015, o Papa Francisco falou da “admiração da Igreja perante esta realidade [da Santíssima Eucaristia]. Uma admiração que alimenta sempre a contemplação, a adoração e a memória”. Em muitas de nossas igrejas ao redor do mundo, onde está esse senso de contemplação, essa adoração, essa admiração diante do mistério da Eucaristia? Perderam-se porque estamos vivendo uma espécie de Alzheimer espiritual, uma doença que rouba de nós as nossas memórias espirituais, teológicas, artísticas, musicais e culturais. Foi dito que precisamos trazer a cultura de cada povo para a liturgia. Isto pode estar certo se entendido corretamente, mas não no sentido de que a liturgia (e a música) tornem-se o locus onde temos de exaltar a cultura secular. A liturgia é o locus onde a cultura – toda cultura – é elevada a outro nível e purificada.
3. Existem grupos na Igreja que pressionam por uma “renovação” que não reflete o ensinamento da Igreja, mas serve antes à agenda, à visão de mundo, e aos interesses deles. Esses grupos possuem membros que ocupam posições-chave de liderança, desde as quais põem em prática seus planos, sua idéia de cultura, e a forma como lidar com as questões contemporâneas. Em alguns países, lobbies poderosos contribuem para a substituição de facto de repertórios litúrgicos fiéis às diretivas do Vaticano II por repertórios de baixo nível. Assim, ficamos com um repertório de música litúrgica nova de padrão muito baixo, tanto no texto como na música. Isto é compreensível se refletimos que nada de valor duradouro pode advir da falta de treino e de conhecimento, especialmente quando se negligenciam os sábios preceitos da tradição da Igreja.
“Por tais motivos, o canto gregoriano foi sempre considerado como o modelo supremo da música sacra, podendo com razão estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo” (S. Pio X, Motu Proprio Tra le Sollecitudini).
Hoje, esse “modelo supremo” é freqüentemente descartado, se não mesmo desprezado. Todo o Magistério da Igreja recorda-nos a importância de aderir a esse modelo, não como forma de limitar a criatividade, mas como fundamento sobre o qual pode florescer a inspiração. Se desejamos que as pessoas busquem a Jesus, precisamos preparar a casa com o melhor que a Igreja pode oferecer. Não convidaremos pessoas à nossa casa, a Igreja, para oferecer-lhes um subproduto de música e arte, se podem encontrar um estilo de música popular muito melhor fora da Igreja. A liturgia é um limen, um limiar que nos permite passar de nossa existência diária ao culto dos anjos: Et ídeo cum Angelis et Archángelis, cum Thronis et Dominatiónibus, cumque omni milítia cæléstis exércitus, hymnum glóriæ tuæ cánimus, sine fine dicéntes...
4. Esse desdém pelo canto gregoriano e pelos repertórios tradicionais é sinal de um problema bem maior: o desdém pela Tradição. A Sacrosanctum Concilium ensina que a herança musical e artística da Igreja deve ser respeitada e estimada, pois ela é a corporificação de séculos de culto e prece, a mais alta culminância da criatividade e da espiritualidade humana. Houve tempo em que a Igreja não corria atrás da última moda, mas era a fonte e o árbitro da cultura. A falta de compromisso com a tradição colocou a Igreja e sua liturgia em um caminho sinuoso e incerto. A separação tentada entre o ensinamento do Vaticano II e o prévio ensinamento da Igreja é uma rua sem saída, e o único caminho para a frente é a hermenêutica da continuidade endossada pelo Papa Bento XVI. Recuperar a unidade, a integridade e a harmonia do ensinamento Católico é a condição para restaurar tanto a liturgia quanto a sua música a uma condição de nobreza. Como Papa Francisco nos ensinou em sua primeira encíclica: “o conhecimento de nós mesmos só é possível quando participamos duma memória mais ampla” (Lumen Fidei 38).
5. Outra causa da decadência da música sacra é o clericalismo, o abuso da posição e do status clerical. Membros do clero muitas vezes pouco educados na grande tradição da música sacra continuam a tomar as decisões sobre pessoal e políticas que contrariam o autêntico espírito da liturgia e a renovação da música sacra tão reclamada por nosso tempo. Com muita freqüência, contradizem os ensinamentos do Vaticano II em nome de um suposto “espírito do Concílio”. Além disso, especialmente em países de antiga herança cristã, membros do clero têm acesso a posições que não estão disponíveis a leigos, quando há músicos leigos plenamente capazes de oferecer um serviço profissional igual ou superior à Igreja.
6. Observamos também o problema da remuneração inadequada (e, por vezes, injusta) de músicos leigos. A importância da música sacra na liturgia católica requer que, em toda parte, ao menos alguns membros da Igreja sejam bem formados, bem equipados, e dedicados ao serviço do Povo de Deus nessa capacidade. Não é verdade que devemos dar a Deus o nosso melhor? Ninguém se surpreende ou se perturba ao saber que médicos necessitam de um salário para sobreviver, e ninguém aceitaria tratamento médico de voluntários sem treino; os sacerdotes têm seus salários, porque não podem viver sem comer e, se não comerem, não serão capazes de estudar as ciências teológicas ou rezar a Missa com dignidade. Se pagamos floristas e cozinheiros que ajudam nas paróquias, por que parece tão estranho que aqueles que desempenham atividades musicais para a Igreja tenham direito a justa compensação?

Propostas Positivas
O que dissemos acima pode parecer pessimista, mas mantemos a esperança de que existe um caminho para fora deste inverno. As propostas seguintes são oferecidas in spiritu humilitatis, com a intenção de restaurar a dignidade da liturgia e de sua música na Igreja.
1. Como músicos, pastores, e estudiosos católicos, que amam o canto gregoriano e a polifonia sacra, tão freqüentemente elogiados e recomendados pelo Magistério, nós clamamos por uma reafirmação dessa herança, juntamente com as composições sacras modernas em latim ou nas línguas vernáculas que tenham sua inspiração nessa grande tradição; e pedimos passos concretos para promovê-la em toda parte, em toda Igreja ao redor do mundo, de maneira que todos os católicos possam cantar os louvores de Deus com uma voz, uma mente e coração, uma cultura comum que transcenda todas as suas diferenças. Pedimos também uma reafirmação da importância única do órgão de tubos na liturgia sacra, em razão de sua singular capacidade de elevar os corações ao Senhor e sua perfeita adequação como suporte ao canto de coros e congregações.
2. É necessário que a educação para o bom gosto na música e na liturgia comece com as crianças. Muitas vezes, educadores sem treino musical acreditam que as crianças não são capazes de apreciar a beleza da verdadeira arte. Isto está muito distante da verdade. Empregando uma pedagogia que as ajude a apreciar a beleza da liturgia, as crianças seriam fortalecidas pela oferta de um nutritivo pão espiritual, e não por alimentos industriais que parecem saborosos, mas que são prejudiciais à saúde (como no caso das “Missas para crianças” que trazem música inspirada na música popular). Sabemos por experiência pessoal que, quando as crianças são expostas a esses repertórios tradicionais, elas passam a apreciá-los e desenvolvem uma conexão profunda com a Igreja.
3. Se se espera que as crianças apreciem a beleza da música e da arte, e entendam a importância da liturgia como fons et culmen da vida da Igreja, então devemos contar com um laicato que siga o Magistério. Temos de abrir espaços para o laicato bem treinado em áreas relacionadas a arte e música. Para poder servir como músico ou educador litúrgico competente, são necessários anos de estudo. Esse “status” profissional precisa ser reconhecido, respeitado e promovido de forma prática. Em relação a esse ponto, esperamos sinceramente que a Igreja possa continuar a trabalhar contra as formas óbvias e sutis de clericalismo, de maneira que o laicato possa oferecer a sua plena contribuição em áreas nas quais a ordenação não é um requisito.
4. Deve-se insistir em padrões mais elevados para o repertório e a habilidade musical em catedrais e basílicas. Os bispos em cada diocese deveriam empregar pelo menos um diretor de música e/ou organista profissional que sigam diretrizes claras de como promover uma música litúrgica excelente naquela catedral ou basílica, e que possam oferecer um bom exemplo de como combinar obras da grande tradição com composições novas e apropriadas. Acreditamos que um sólido princípio para tanto está contido na Sacrosanctum Concilium: “não se façam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o exija, e com a preocupação de que as novas formas surjam a partir das já existentes, por um desenvolvimento de algum modo orgânico” (SC 23).
5. Sugerimos que em toda basílica e catedral se encoraje a celebração de uma Missa semanal em latim (em qualquer das formas do Rito Romano) de maneira a manter o vínculo que temos com nossa herança litúrgica, cultural, artística e teológica. O fato de que muitos jovens hoje redescobrem a beleza do latim na liturgia é certamente um sinal dos tempos, impelindo-nos a abandonar as batalhas do passado e a buscar uma abordagem mais “católica”, que se valha de todos os séculos de culto católico. Com a imensa disponibilidade de livros, panfletos e recursos de internet, não será difícil facilitar a participação ativa daqueles que desejem assistir liturgias em latim. Além disso, cada paróquia deveria ser encorajada a oferecer uma Missa inteiramente cantada todo domingo.
6. O treinamento litúrgico e musical do clero deveria ser a prioridade dos bispos. O clero tem a responsabilidade de aprender e praticar as melodias litúrgicas, pois, de acordo com Musicam Sacram e outros documentos, eles deveriam ser capazes de cantar as preces da liturgia, não apenas recitar as palavras. Em seminários e na universidade, eles deveriam familiarizar-se com a grande tradição da música sacra na Igreja e apreciá-la em harmonia com o Magistério, fiéis ao firme princípio de Mateus 13, 52: “Todo o escriba instruído nas coisas do reino dos céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas”.
7. No passado, editoras católicas desempenharam um papel importante na divulgação de bons exemplos de música sacra, velha e nova. Hoje, as mesmas editoras, ainda que pertencentes a dioceses ou instituições religiosas, com freqüência difundem música que não é apropriada à liturgia, preocupadas apenas com considerações comerciais. Muitos fiéis católicos acreditam que o que as grandes editoras oferecem está de acordo com a doutrina da Igreja Católica no que respeita à liturgia e à música, mas freqüentemente não é assim. As editoras católicas deveriam ter como fim precípuo o de educar os fiéis na sã doutrina católica e nas boas práticas litúrgicas, e não o de ganhar dinheiro.
8. A formação dos liturgistas também é fundamental. Assim como os músicos precisam entender os aspectos essenciais da história litúrgica e da teologia, também os liturgistas devem ser educados no canto gregoriano, na polifonia e na totalidade da tradição musical da Igreja, de forma que possam discernir o que é bom e o que é mau.

Conclusão
Em sua encíclica Lumen Fidei, Papa Francisco relembrou-nos da forma como a fé une passado e futuro:
“É verdade que a fé de Abraão, enquanto resposta a uma Palavra que a precede, será sempre um ato de memória; contudo esta memória não o fixa no passado, porque, sendo memória de uma promessa, se torna capaz de abrir ao futuro, de iluminar os passos ao longo do caminho. Assim se vê como a fé, enquanto memória do futuro, memoria futuri, está intimamente ligada com a esperança” (LF 10).
Esta lembrança, esta memória, este tesouro que é a nossa tradição católica não é algo só do passado. É ainda uma força vital no presente, e será sempre um dom de beleza para as futuras gerações. “Cantai ao Senhor, porque ele fez coisas magníficas; que se saiba isto em toda a terra. Cantai de alegria, rejubilai, habitantes de Sião, porque se mostra grande, no meio de vós, o Santo de Israel” (Is, 12,5).


Um comentário:

  1. Parabéns pelo artigo! Maravilhoso e preciso nas reflexões sobre a realidade musical em nossas comunidades país a fora.

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