São Doroteu de Gaza
Conferência sobre o rancor
O
rancor deve ser cortado na raiz
Evágrio disse: “Encolerizar-se
e contristar a alguém são coisas impróprias ao monge”. E também: “Quem tem
triunfado da cólera, tem triunfado dos demônios. Porém, aquele que é presa
desta paixão está em absoluta oposição à vida monástica”. Que há que dizer de
nós que, sem limitar-nos à irritação e a cólera, chegamos às vezes ao rancor? O
que temos de fazer a não ser chorar nosso estado tão lastimoso e indigno do
homem? Sejamos vigilantes, irmãos, cooperemos com Deus, para preservar-nos do
amargor desta funesta paixão.
Talvez alguém se
desculpe com seu irmão pela perturbação causada ou a ferida infligida, porém,
mesmo depois da desculpa, permanece incomodado e conserva pensamentos contra
seu irmão. Ele não deve dar importância a esses pensamentos e rechaçá-los
imediatamente. Isso é o rancor, e para não colocar-se em perigo detendo-se nele
é preciso, como disse, muita vigilância; é necessária a desculpa e é imperativo
o combate. Ao pedir desculpas simplesmente para cumprir com o preceito,
curou-se da cólera momentaneamente, mas não lutou ainda contra o rancor:
conserva-se o rancor contra o seu irmão. Uma coisa é o rancor, outra a cólera,
a irritação, e outra a desavença.
Vou dar-vos um
exemplo que vos fará compreender: alguém acende um fogo. A princípio não
consegue mais do que um pequeno carvão. Isso representa a palavra do irmão que
nos ofende. Vede, não é mais do que um pequeno carvão, porque, o que é uma
simples palavra de vosso irmão? Se a suportais, extinguis o carvão. Se, ao
contrário, começas a pensar: “Por que disse isso? Posso bem responder-lhe! Se
não quisesse ofender-me, não teria me falado assim! Que ele saiba que eu também
posso prejudica-lo”. Como alguém que acende um fogo, vós estais lançando ali
raminhos ou qualquer outra coisa e produzis fumaça, que é a perturbação. A
perturbação não é mais que o movimento e a afluência de pensamentos que
despertem e inquietam o coração. E essa excitação, chamada também ira,
impulsiona a vingar-se do ofensor. Como disse o abade Marcos: “A malícia
introduzida nos pensamentos excita o coração; mas, dissipada com a oração e a
esperança, perece”.
Suportando uma
simples palavra de vosso irmão, vocês podem extinguir o pequeno carvão antes
que a perturbação apareça. Porém, inclusive esse ânimo perturbado ainda podeis
acalmá-lo facilmente enquanto nasce, com o silêncio, com a oração, com uma
simples satisfação que brote do coração. Se, ao contrário, continuais a
produzir fumaça, ou seja, exaltando e excitando o vosso coração, pensando: “Por
que me disse aquilo? Eu também posso lhe responder!”, a afluência e o
entrechoque dos pensamentos avivando e ebulindo o coração provocam a chama da
exasperação. Esta, segundo Basílio, é somente a ebulição do sangue em torno ao
coração. Isso é a irritação, chamada também rancor. Se quiserdes, ainda podeis
extingui-la antes que se transforme em cólera. Mas se continuais a
perturbar-vos e a perturbar aos demais, fazeis como o que joga troços de
madeira à fogueia para avivar o fogo: a lenha se transforma em brasas, e isto é
a cólera.
É o mesmo que
dizia o abade Zósimo quando lhe pediram que explicasse esta sentença: “Onde não
há irritação, não há combate”. Se ao começo da perturbação, assim como aparecem
a fumaça e as chispas, alguém se adianta e acusa a si mesmo e oferece uma
satisfação, antes que se eleve a chama da irritação, permanece em paz. Mas se,
provocada a irritação, esta não se acalma e persiste na perturbação e na
exaltação, se parece ao que lança madeira ao fogo e continua a alimentá-lo até
que se torne em brasas vivas. Como as brasas, feitas carvão e postas de lado,
subsistem anos sem se corromper, mesmo que se lance água em cima, assim a
cólera que se prolonga se converte em rancor e já não é possível livrar-se dele
a não ser vertendo sangue.
Disse-vos a
diferença dos quatro graus: compreendam-nos bem. Agora sabeis o que é a
primeira perturbação, o que é a exasperação, o que é a cólera e o que é o
rancor. Percebeis como uma só palavra chega a produzir um mal tão grande? Se
desde o começo se tivesse censurado a si mesmo, se tivesse suportado
pacientemente a palavra do irmão, sem querer se vingar, nem responder duas ou
cinco palavras por uma só, e responder ao mal com o mal, se teriam evitado
todos esses males. Por isso não cesso de recomendar-vos, extirpai vossas
paixões enquanto são jovens, antes que se endureçam em vós e que não tenhais
que sofrer. Pois uma coisa é arrancar uma planta pequena e outra desarraigar
uma grande árvore.
Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp.
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