sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

A dimensão pastoral da Liturgia

No final de 2019 o site Vatican News publicou três textos sobre Liturgia, refletindo sobre seu valor pastoral a partir dos antecedentes da reforma do Concílio Vaticano II:

30 de outubro de 2019

No nosso espaço Memória Histórica - 50 anos do Concílio Vaticano II, vamos falar hoje sobre “a chave da reforma litúrgica: a pastoral”.
Depois da pausa durante os trabalhos sinodais, voltamos nesta quarta-feira com nosso espaço Memória Histórica, para falar sobre o Concílio Vaticano II, em particular, sobre a reforma litúrgica. E no programa de hoje, padre Gerson Schmidt, que tem nos acompanhado na exposição dos documentos conciliares, volta a citar, entre outros, o Arcebispo Annibale Bugnini, um personagem-chave da grande reforma litúrgica que já se desenhava desde o final da II Guerra Mundial e que foi implementada pelo Papa Paulo VI. O Arcebispo foi um dos principais coordenadores de sua implementação na América Latina durante o período imediatamente após o Concílio. Padre Gerson Schmidt, destaca que a pastoral é a chave da reforma litúrgica:
A reforma do Concílio Vaticano II se distingue por sua característica pastoral, ou seja, o pastoreio do Povo Santo de Deus que se reúne e celebra, convocados por Deus pela Palavra. “A participação e inserção do Povo de Deus na celebração litúrgica são a meta da reforma, foram o objetivo do movimento litúrgico” [1]. E essa participação não deve ser apenas exterior, mas interior, quando a assembleia reunida mergulha na raiz, no âmago do mistério que é celebrado, ao próprio Cristo presente.
O Movimento Litúrgico e a reforma da Sacrosanctum Concilium propuseram reconduzir os fiéis à sua ampla participação, compreensão e celebração na Liturgia. O abade Guéranger, falecido em 1875, já propunha esse ideal em suas Liturgias e publicações nos mosteiros beneditinos por ele fundados. Pio X viu na participação ativa dos fiéis na Liturgia uma fonte primária e indispensável do verdadeiro espírito cristão [2].
Pio X encontrou acolhida de seu pensamento papal na Abadia de Mont-César onde Dom Lamberto Beaudiun (falecido em 1960) em 1909 deu vida ao Movimento Litúrgico organizado. Também os beneditinos de Maria Laach, na Alemanha, deram um impulso com o aprofundamento teológico, bíblico e patrístico da Liturgia, sempre em vista da pastoral.
“Associações, jornais, semana e congressos litúrgicos se multiplicaram em toda a parte, em campo diocesano, nacional e internacional, até que a Santa Sé começou a apoiar e favorecer inicialmente o movimento, assumindo-o, a seguir, sob a própria direção” [3]. O apoio de Pio XI foi decisivo com a Constituição Apostólica Divini Cultus, de 1928 e pela fundação, em 1930, do departamento Histórico da Sagrada Congregação dos Ritos.
Já operante em toda a Igreja, o Movimento Litúrgico ainda recebe mais força com Pio XII com a Encíclica Mediator Dei, de 22 de novembro de 1947. A Liturgia assim estava se adentrando numa estrada definitiva que era a orientação pastoral, orientando-se a voltar às origens.
Antes da Encíclica Mediator Dei houve a nova versão latina dos salmos, levada a cabo por ordem de Pio XII e que impulsionou também a ideia da reforma de toda a Liturgia, de que o Saltério não devia constituir senão o primeiro tijolo.
A ideia da reforma geral da Liturgia ia ganhando peso e mais espaços, ganhando consistência no departamento histórico da Sagrada congregação dos Ritos, o organismo mais capaz para o trabalho dessa natureza.
Em 28 de maio de 1948 foi nomeada a Comissão para a reforma litúrgica, presidida pelo Cardeal Clemente Micara, Prefeito da Sagrada Congregação para os Ritos. Essa comissão, com diversos membros liturgistas respeitados e renomados, se dissolve apenas em 1960 com a instituição da Comissão preparatória do Concilio. Essa Comissão gozava da confiança do Papa e se chamou “Piana”, que revisou praticamente todos os livros litúrgicos, inclusive o Ritual, que foi redigido e composto tipograficamente, mas não publicado porque a Livraria Vaticana temia não conseguir publicá-lo para o acontecimento do Concilio.
O primeiro fruto da Comissão foi a restauração da Vigília Pascal em 1951, que provocou uma explosão de alegria em toda a Igreja. Foi a partir daí que a Liturgia enveredou decididamente pela estrada da pastoral. O Concílio Vaticano foi iminentemente ecumênico e pastoral. É assim, nesse foco e prisma, que devemos mergulhar na Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium.



Congresso internacional em Assis - Embrião pastoral da Sacrosanctum Concilium
18 de dezembro de 2019

No nosso espaço Memória Histórica - 50 anos do Concílio Vaticano II, vamos continuar a falar sobre Liturgia.
A reforma litúrgica trazida pelo Concílio Vaticano II com a Sacrosanctum Concilium, é fruto também do Movimento Litúrgico surgido bem antes, como já tratado em programas anteriores. Em 1956, poucos anos antes de o Concílio ser convocado pelo Papa João XXIII, realizou-se em Assis o primeiro Congresso Internacional de Pastoral Litúrgica. Para esse Congresso, o Papa Pio XII fez um precioso discurso, excelente complemento da anterior Encíclica sobre a música sagrada, colocando a excelência e elevada significação da Liturgia católica, como símbolo da graça e da pessoa de Cristo.
No programa desta quarta-feira, Padre Gerson Schmidt, que tem nos acompanhado neste percurso dos documentos conciliares, nos fala sobre o Congresso Internacional em Assis, embrião pastoral da Sacrosanctum Concilium:
 Já falamos em nosso resgate histórico que o Movimento Litúrgico começou a fervilhar antes do Concílio Vaticano II. A Sacrosanctum Concilium não caiu do céu, de uma hora pra outra. Houve várias iniciativas anteriores, uma delas foi o primeiro Congresso Internacional de Liturgia que aconteceu em Assis, na cidade onde viveu São Francisco, 3 anos antes da convocação do Concílio Vaticano II. Aconteceu de 18 a 21 de setembro de 1956, concluindo-se em Roma, com a audiência pontifícia no dia 22 de setembro.
Quem teria dito que depois desse Congresso Internacional, que reivindicou mudanças na Liturgia, e que por meio das mesmas pessoas de Assis, teriam encontrado plena realização justamente no esplendor do Concílio? [4]. O elemento novo foi a oficialidade resultante do Congresso a partir da intervenção do Cardeal Gaetano Cicognani – Prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos, presidente do Congresso. Participaram desse Congresso, que anunciou uma aurora resplandecente, 5 cardeais (um por língua) como vice-presidentes, 80 Bispos e abades, e mais de 1400 sacerdotes provenientes do mundo inteiro. Foi um verdadeiro embrião para a Sacrosanctum Concilium, já sendo cozinhado poucos anos antes.
O foco principal do Congresso foi a pastoralidade da Liturgia, ou seja, a Liturgia não simplesmente enquanto essência teológica, mas aplicação pastoral. Desta forma se lançava a Liturgia como elemento determinante na vida da Igreja. Para esse fim pastoral, objetivo principal da renovação que se estava costurando, duas intervenções e conferências no Congresso foram determinantes:
1. A primeira do Pe. André Jungmann: A Pastoral, chave da História Litúrgica;
2. A segunda do Pe. Agostinho Bea: O valor Pastoral da Palavra de Deus.
Os princípios expostos por esses dois conferencistas ainda perduram na Sacrosanctum Concilium. No Congresso de Assis dois pontos foram objeto de preocupação e polêmica: a língua vernácula e a reforma do Ofício Divino, a Liturgia das Horas.
O Cardeal Cicognani, por motivos médicos, teve que adiantar seu retorno a Roma, deixando a presidência ao Cardeal Lercaro. Não se sabia até então os motivos da volta prematura do Cardeal presidente dos sagrados Ritos. Embora houvesse controvérsias e até discussões sobre o uso da língua latina, Pio XII, em Roma, no dia 22 de setembro, fez um belo discurso conclusivo com a seguinte frase histórica:
“O movimento Litúrgico apareceu como um sinal das disposições providenciais de Deus em relação ao tempo presente, como uma passagem do Espírito Santo na Igreja” [5].
A reforma do Oficio foi tratada pelo Cardeal Giacomo Lercaro por meio da aplaudidíssima conferência “A simplificação das rubricas e a reforma do Breviário”. Houve sugestões na Liturgia das Horas para a distribuição dos salmos, das leituras, dos hinos.
Essas indicações e ideias hoje concretizadas revelam como a renovação proposta pelo Concílio teve seu germe embrionário e um longo período de maturação, realizado na meditação e na oração por espíritos eleitos e especialistas e, pouco a pouco, transmitida para todo o povo de Deus.

29 de dezembro de 2019

No nosso espaço Memória Histórica - 50 anos do Concílio Vaticano II, damos continuidade aos nossos programas dedicados à Liturgia.
No programa passado, Padre Gerson Schmidt, que tem nos acompanhado neste percurso de exposição dos documentos conciliares, nos trouxe uma reflexão sobre o Congresso Internacional realizado em Assis, como embrião pastoral da Sacrosanctum Concilium. No programa de hoje, o sacerdote incardinado na Arquidiocese de Porto Alegre aprofunda o discurso de Pio XII na conclusão do encontro. “Nos albores do Concílio Vaticano II é o tema de sua reflexão”:
Em 1956, aconteceu um fato interessante, ou seja, o primeiro Congresso Internacional de Pastoral Litúrgica, celebrado em Assis, que foi um verdadeiro encontro de especialistas e troca de experiências pastorais. Tudo isso vai ter sua culminância, em forma de compêndio, na reforma litúrgica do Vaticano II. Para esse Congresso de 1956, Papa Pio XII fez um precioso discurso conclusivo, excelente complemente da anterior Encíclica sobre a música sagrada, colocando a excelência e elevada significação da liturgia católica, como símbolo da graça e da pessoa de Cristo [6].
Embora houvesse controvérsias e até discussões sobre o uso da língua latina, Pio XII, em Roma, no dia 22 de setembro, fez um belo discurso conclusivo com a seguinte frase histórica: “O Movimento Litúrgico apareceu como um sinal das disposições providenciais de Deus em relação ao tempo presente, como uma passagem do Espírito Santo na Igreja”.
O Papa Pio XII na ocasião ainda disse muitas coisas interessantes, para a sua época, falando assim, ainda antes do Concilio: “Se se compara a situação atual do Movimento Litúrgico com o que já foi há trinta anos, constata-se que alcançou um progresso inegável, tanto na extensão quanto na profundidade. O interesse pela Liturgia, as realizações práticas e a participação ativa dos fiéis conquistaram um desenvolvimento que seria difícil de prever naquele momento”. Pio XII já falava da participação ativa dos fiéis, tônica endossada pela Sacrosanctum Concilium.
Na mensagem enviada por Pio XII aos participantes, o Papa falou que é no coração da Liturgia que se desenrola a celebração da Eucaristia, sacrifício e banquete, dois adjetivos importantes aqui que resumem grandes controvérsias até então discutidas amplamente. E falou da participação não passiva dos fiéis: “Se a hierarquia comunica pela Liturgia a verdade e a graça de Cristo, os fiéis, por sua vez, têm por dever de recebê-las, com toda a alma, e transformá-las em valores vitais. Tudo que lhes é oferecido, as graças do sacrifício do altar, dos sacramentos e dos sacramentais, que eles aceitem, não de modo passivo, deixando apenas que sejam derramadas sobre si, mas colaborando com toda a vontade e com toda força e, sobretudo, participando dos ofícios litúrgicos ou ao menos seguindo o seu desenrolar com fervor”.
Também o Papa Pio XII já faz ponderações sobre o tabernáculo, a capela do Santíssimo, como hoje entendemos, afirmando que o altar é mais importante que o tabernáculo. Disse assim: “A estas considerações devemos acrescentar algumas indicações sobre o tabernáculo. Assim como dissemos acima: ‘O Senhor é de alguma forma maior que o altar e que o sacrifício’, poderíamos dizer em seguida: ‘o tabernáculo, onde habita o Senhor que desceu no meio do seu povo, é maior que o altar e que o sacrifício’? O altar é mais importante que o tabernáculo, porque nele é oferecido o sacrifício do Senhor. Sem dúvida o tabernáculo guarda o Sacramentum permanens (Sacramento permanente), mas não é um altare permanens (altar permanente), pois o Senhor se oferece em sacrifício apenas sobre o altar durante a celebração da Santa Missa, não depois ou fora da Missa. No tabernáculo, por sua vez, ele está presente por todo o tempo em que perdurarem as espécies consagradas, sem, no meio tempo, oferecer-se de modo permanente”. Por isso a Sacrosactum Concilium recolhe essa renovação litúrgica colocando o sacrário não mais no centro da nave das igrejas, mas, nas igrejas novas e novas construções dos templos, num espaço lateral especial, para justamente primar pelo altar, o principal lugar do sacrifício eucarístico, centro de todo o Mistério Pascal, celebrado em cada Missa.


[1] BUGNINI, A. “Movimento liturgico o pastorale litúrgica”, in: A Reforma Litúrgica (1948-1975), trad. Paulo F. Valério, 2ª ed., Paulus, Paulinas e Loyola, SP, 2018, p. 39.
[2] Motu Proprio Tra le Sollecitiduni, 22 nov. 1902.
[3] Annibale Bugnini, A Reforma Litúrgica, p.39.
[4] Annibale Bugnini, A Reforma Litúrgica, p. 43.
[5] La restaurazione litúrgica nell’opera di Pio XII. Atti del primo Congresso Internacionale di pastorale litúrgica. Assisi-Roma,18-22 settembre 1956, Genova, Centro de Azione litúrgica, 1957,35-48. in: Annibale Bugnini, A Reforma Litúrgica, p.44.
[6] FRANCISCO J. MONTALBAN et all. História de la Iglesia Catolica, IV: Edad Moderna, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1958, p. 843.

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