Santo
Agostinho
Sermão
293
“Voz
do que clama no deserto”
A Igreja celebra o nascimento de João como
um acontecimento sagrado. Dentre os nossos antepassados, não há nenhum cujo
nascimento seja celebrado solenemente. Celebramos o de João, celebramos também
o de Cristo: tal fato tem, sem dúvida, uma explicação. E se não a soubermos dar
tão bem, como exige a importância desta solenidade, pelo menos meditemos nela
mais frutuosa e profundamente. João nasce de uma anciã estéril; Cristo nasce de
uma jovem virgem.
O pai de João não acredita que ele possa
nascer e fica mudo; Maria acredita, e Cristo é concebido pela fé. Eis o assunto
que quisemos meditar e prometemos tratar. E se não formos capazes de perscrutar
toda a profundeza de tão grande mistério, por falta de aptidão ou de tempo,
aquele que fala dentro de vós, mesmo em nossa ausência, vos ensinará melhor.
Nele pensais com amor filial, a ele recebestes no coração, dele vos tornastes
templos.
João apareceu, pois, como ponto de encontro
entre os dois Testamentos, o Antigo e o Novo. O próprio Senhor o chama de
limite quando diz: A lei e os profetas até João Batista (Lc
16,16). Ele representa o antigo e anuncia o novo. Porque representa o Antigo
Testamento, nasce de pais idosos; porque anuncia o Novo Testamento, é declarado
profeta ainda estando nas entranhas da mãe. Na verdade, antes mesmo de nascer,
exultou de alegria no ventre materno, à chegada de Maria. Antes de nascer, já é
designado; revela-se de quem seria o precursor, antes de ser visto por ele.
Tudo isto são coisas divinas, que ultrapassam a limitação humana. Por fim,
nasce. Recebe o nome e solta-se a língua do pai. Relacionemos o acontecido com
o simbolismo de todos estes fatos.
Zacarias emudece e perde a voz até o nascimento
de João, o precursor do Senhor; só então recupera a voz. Que significa o
silêncio de Zacarias? Não seria o sentido da profecia que, antes da pregação de
Cristo, estava, de certo modo, velado, oculto, fechado? Mas com a vinda daquele
a quem elas se referiam, tudo se abre e torna-se claro. O fato de Zacarias
recuperar a voz no nascimento de João tem o mesmo significado que o rasgar-se o
véu do templo, quando Cristo morreu na cruz. Se João se anunciasse a si mesmo,
Zacarias não abriria a boca. Solta-se a língua, porque nasce aquele que é a
voz. Com efeito, quando João já anunciava o Senhor, perguntaram-lhe: Quem és
tu? (Jo 1,19). E ele respondeu: Eu sou a voz do que clama no
deserto (Jo 1,23). João é a voz; o Senhor, porém, no princípio era
a Palavra (Jo 1,1). João é a voz no tempo; Cristo é, desde o
princípio, a Palavra eterna.
Fonte: Liturgia das Horas, v. III, p.
1374-1375.
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