Em sua 46ª Catequese sobre Jesus Cristo, o Papa São João Paulo II destacou as reflexões cristológicas dos primeiros dois Concílios Ecumênicos: Niceia (325) e Constantinopla (381).
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO
46. Definições conciliares (I): Niceia e Constantinopla
João Paulo II - 09 de março de 1988
1. “Cremos... em um só Senhor, Jesus
Cristo, o Filho de Deus, gerado unigênito (μονογενῆ) do Pai, isto é, da substância
do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não
criado, consubstancial ao Pai (ὁμοούσιον τῷ πατρί), por meio
do qual vieram a ser todas as coisas, tanto no céu como na terra; o qual, por nós,
homens, e para nossa salvação, desceu [do céu] e se encarnou, se fez homem,
padeceu, e ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, havendo de vir julgar os
vivos e os mortos...” (cf. Denzinger, n. 125).
Este é o texto da definição com que
o I Concílio de Niceia (325) proclamou a fé da Igreja em Jesus Cristo: verdadeiro
Deus e verdadeiro homem; Deus-Filho, consubstancial ao Pai Eterno, e homem verdadeiro,
com uma natureza como a nossa. Esse texto conciliar entrou quase literalmente na profissão
de fé que a Igreja repete na Liturgia e em outros momentos solenes, na
versão do Símbolo Niceno-Constantinopolitano (cf. Denzinger,
n. 150), em torno do qual gira todo o ciclo das nossas Catequeses.
I Concílio de Niceia (Afresco do século XVI) |
2. O texto da definição dogmática
conciliar reproduz os elementos essenciais da cristologia bíblica,
que analisamos ao longo das Catequeses anteriores deste ciclo. Esses elementos constituíam,
desde o princípio, o conteúdo da fé viva da Igreja dos tempos apostólicos, como
vimos na última Catequeses. Seguindo o testemunho dos Apóstolos, a Igreja acreditava
e professava desde o princípio que Jesus de Nazaré, filho de Maria e, portanto,
verdadeiro homem, crucificado e ressuscitado, é o Filho de Deus, é o Senhor (“Kyrios”),
é o único Salvador do mundo, dado à humanidade “na plenitude dos tempos” (cf. Gl 4,4).
3. A Igreja desde o princípio guardou
essa fé e transmitiu-a às sucessivas gerações cristãs. Ensinou-a
e defendeu-a, buscando - sob a guia do Espírito da Verdade - aprofundá-la e
explicar seu conteúdo essencial, presente nos dados da Revelação.
O Concílio de Niceia (325)
foi um autêntico “marco” nesse itinerário de conhecimento e formulação do dogma
[1]. Foi um acontecimento importante e solene, que indicou o caminho da verdadeira
fé a todos os seguidores de Cristo, muito antes das divisões do Cristianismo
ocorridas em tempos sucessivos. É particularmente significativo o fato de que
esse Concílio tenha se reunido pouco depois da Igreja ter conquistado a liberdade
de ação na vida pública sobre todo o território do Império Romano (313), como que
representando a vontade de permanecer na “una fides” (única
fé) dos Apóstolos enquanto se abriam para o Cristianismo novos caminhos de
expansão.
4. Naquela época, a definição
conciliar refletia não só a verdade sobre Jesus Cristo herdada dos
Apóstolos e fixada nos livros do Novo Testamento, mas também o ensinamento dos Padres do período pós-apostólico,
que - como sabemos - foi também o período das perseguições e das catacumbas. É
um agradável dever para nós nomear aqui ao menos os dois primeiros Padres que,
com o seu ensinamento, unido à santidade de vida, contribuíram decididamente a
transmitir a tradição e o patrimônio perene da Igreja: Santo Inácio de
Antioquia, lançado às feras selagens em Roma no ano 106 ou 107, e Santo
Irineu de Lião, que sofreu o martírio provavelmente em 202. Ambos foram Bispos
e pastores de suas Igrejas. De Santo Irineu queremos recordar aqui que, ensinando
que Cristo é “verdadeiro homem e verdadeiro Deus”, escrevia: “Como poderiam os
homens alcançar a salvação se Deus não tivesse realizado sua salvação
sobre a terra? Ou como o homem poderia ir a Deus se Deus não tivesse vindo ao homem?”
(Adversus haereses IV, 33, 4). Como podemos ver, é um argumento soteriológico,
que, por sua vez, encontrou expressão na definição do Concílio de Niceia.
5. O texto de Santo Irineu que citamos
provém da obra “Adversus
haereses” (Contra as heresias), ou seja, de um livro que visava a
defesa da verdade cristã contra os erros dos hereges, que neste caso eram os ebionitas.
Os Padres Apostólicos, no seu ensinamento, frequentemente tinham que assumir a defesa da
autêntica verdade revelada diante dos erros que continuamente
se faziam ouvir de diversos modos.
No início do século IV foi
famoso Ário, o qual deu origem a uma heresia que, por seu nome, foi
chamada arianismo. Segundo Ário, Jesus Cristo não é Deus: embora
preexistente ao nascimento de Maria, Ele teria sido criado no tempo. O Concílio
de Niceia rejeitou este erro de Ário e, ao fazê-lo, explicou e formulou
a verdadeira doutrina da fé da Igreja com as palavras que citamos no início desta
Catequese. Ao afirmar que Cristo, como Filho Unigênito de Deus, é consubstancial
ao Pai (ὁμοούσιον τῷ πατρί), o Concílio expressou, em uma fórmula
adaptada à cultura (grega) de então, a verdade que encontramos em todo o Novo
Testamento. Com efeito, sabemos que Jesus diz ser “um” com o Pai - “Eu e o Pai
somos um” (Jo 10,30) - e afirma-o diante de ouvintes que, por causa
disso, querem apedrejá-lo como blasfemo (v. 31). Afirma-o ainda durante o julgamento,
diante do Sinédrio, o que o leva a ser condenado à morte. Um elenco mais
detalhado das passagens bíblicas sobre este tema se encontra nas Catequeses anteriores.
Do seu conjunto emerge claramente que o Concílio de Niceia, ao falar
de Cristo como Filho de Deus, “da [mesma] substância do Pai” (ἐκ τῆς οὐσίας τοῦ
πατρός), como “Deus de Deus”, eternamente “gerado, não criado”, não faz senão confirmar
uma verdade precisa contida na Revelação divina, feita verdade da fé da Igreja,
verdade central de todo o Cristianismo.
6. Quando essa verdade foi
definida pelo Concílio, podemos dizer que já estava tudo maduro no pensamento e
na consciência da Igreja para essa definição. Podemos dizer igualmente que essa
definição não cessa de ser atual também para nosso tempo, no
qual antigas e novas tendências a reconhecer Cristo apenas como um homem, ainda
que extraordinário, e não como Deus, se manifestam de muitos modos. Admiti-las
ou apoiá-las seria destruir o dogma cristológico e, ao mesmo tempo, aniquilar
toda a soteriologia cristã. Se Cristo não é verdadeiro Deus, não transmite à
humanidade a vida divina; portanto, não é o Salvador do homem no sentido destacado
pela Revelação e pela Tradição. Violando-se esta verdade
da fé da Igreja, toda a construção do dogma cristão colapsa, anula-se a lógica
integral da fé e da vida cristã, porque se elimina a pedra angular de todo o edifício.
7. Mas devemos acrescentar imediatamente
que, confirmando de modo solene e definitivo esta verdade no Concílio
de Niceia, a Igreja, ao mesmo tempo, sustentou, ensinou e defendeu a
verdade sobre a verdadeira humanidade de Cristo. Também essa verdade
havia se tornado objeto de opiniões erradas e de teorias heréticas. Em
particular é preciso recordar aqui o docetismo (da expressão
grega “δοκείν”, “parecer”). Esta concepção anulava a natureza humana de Cristo,
defendendo que Ele não possuía um corpo verdadeiro, mas apenas uma
aparência de carne humana. Os docetas acreditavam que Deus não poderia nascer
realmente de uma mulher, que não poderia morrer verdadeiramente na cruz. Desta sua
posição se seguia que, em toda a esfera da Encarnação e da redenção, teríamos apenas uma
ilusão da carne, em aberto contraste com a Revelação contida em diversos
textos do Novo Testamento, entre os quais os de São João - “Jesus Cristo, vindo
na carne...” (1Jo 4,2);
“O Verbo se fez carne” (Jo 1,14) - e de São Paulo, segundo o qual,
nesta carne, Cristo se fez “obediente até a morte - e morte de cruz” (Fl 2,8).
8. Segundo a fé da Igreja, tomada
da Revelação, Jesus Cristo era verdadeiro homem. Precisamente por isso o seu
corpo humano era animado por uma alma verdadeiramente humana. Ao testemunho
dos evangelistas, unívoco sobre este ponto, correspondia o ensinamento da Igreja
primitiva, como também o dos primeiros escritores eclesiásticos, como Tertuliano,
que escrevia: “Em Cristo... encontramos alma e carne, isto é, uma alma ‘alma’
(humana) e uma carne ‘carne’” (De carne Christi, 13, 4). No entanto, também
sobre este ponto haviam opiniões contrárias, em particular as de Apolinário, Bispo
de Laodiceia (que nasceu por volta de 310 em Laodiceia da Síria e morreu por
volta de 390), e seus seguidores (chamados justamente “apolinaristas”), segundo
os quais não havia em Cristo uma verdadeira alma humana, porque esta teria sido
substituída pelo Verbo de Deus. Mas está claro que também neste caso se negava a
verdadeira humanidade de Cristo.
9. O Papa Dâmaso I (366-384), com
efeito, em uma Carta aos Bispos orientais (escrita por volta de 374), ao mesmo
tempo indicava e rejeitava os erros tanto de Ário como de Apolinário: “Estes (os
arianos) põem no Filho de Deus uma divindade imperfeita; aqueles (os
apolinaristas) afirmam falsamente uma humanidade incompleta no Filho do homem. Mas,
se verdadeiramente foi assumido um homem incompleto, imperfeita é a obra de Deus,
imperfeita a nossa salvação, porque não foi salvo todo o homem (...) E nós, que
sabemos ter sido salvos na plenitude do ser humano, segundo a fé da Igreja
católica, professamos que Deus, na plenitude do seu ser, assumiu o homem na
plenitude do seu ser” (cf. Denzinger, n. 146). O
documento damasiano, redigido cerca de cinquenta anos depois de Niceia, era
dirigido principalmente contra os apolinaristas. Poucos anos depois, o I
Concílio de Constantinopla (381) condenou todas as heresias da época,
incluindo o arianismo e o apolinarismo, confirmando o que o Papa Dâmaso I havia
proclamado sobre a humanidade de Cristo, à qual pertence por natureza uma
verdadeira alma humana - e, portanto, um verdadeiro intelecto humano, uma livre
vontade (cf. Denzinger, nn. 146.149.151).
10. O argumento soteriológico com o
qual o Concílio de Niceia explicou a Encarnação, ensinando que o Filho,
consubstancial ao Pai, se fez homem “por nós, homens, e para nossa salvação”, encontrou nova expressão na defesa
da verdade integral sobre Cristo, tanto frente ao arianismo como contra o
apolinarismo, feita pelo Papa Dâmaso e pelo Concílio de Constantinopla. Particularmente
em relação àqueles que negavam a verdadeira humanidade do Filho de Deus, o
argumento soteriológico foi apresentado de um modo novo: para que o homem
inteiro pudesse ser salvo, a inteira (perfeita)
humanidade devia ser assumida na unidade do Filho; “Quod non est assumptum, non est sanatum” - “O que não é assumido, não é salvo” (cf.
São Gregório Nazianzeno, Epistula 101 ad Cledonium).
11. O Concílio de
Calcedônia (451), ao condenar mais uma vez o apolinarismo, completou em
certo sentido o Símbolo Niceno da fé, proclamando Cristo “perfectum in deitate, eundem perfectum
in humanitate”: “o Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na sua divindade
e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, (composto) de
alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade, e
consubstancial a nós segundo a humanidade (ὁμοούσιον ἡμῖν... κατὰ τὴν ἀνθρωπότητα)
‘semelhante a nós em tudo, menos no pecado’ (cf. Hb 4,15),
gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a divindade, e, nestes últimos tempos, por
nós e para nossa salvação, (gerado) de Maria, Virgem e Mãe de Deus, segundo
a humanidade, um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor Unigênito...” (cf. Denzinger,
nn. 301-302).
Como podemos ver, a intrincada
elaboração do dogma cristológico realizada pelos Padres e Concílios nos remete
sempre ao mistério do único Cristo, Verbo encarnado para nossa salvação, como
nos é dado conhecer pela Revelação, para que crendo n’Ele e amando-o, sejamos
salvos e tenhamos a vida (cf. Jo 20,31).
Santos Padres com o Símbolo Niceno-Constantinopolitano |
Nota:
[1] O Papa se refere aqui ao Concílio de Niceia como “pedra
miliar” (pietra miliare).
Esta era uma coluna de pedra colocada junto às estradas romanas para marcar
distâncias, geralmente a cada milha romana (o equivalente a cerca de 1,48 Km).
Tradução nossa a partir do texto italiano
divulgado no site da Santa Sé (09 de março de 1988).
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