quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Jesus Cristo 29

Em sua 46ª Catequese sobre Jesus Cristo, o Papa São João Paulo II destacou as reflexões cristológicas dos primeiros dois Concílios Ecumênicos: Niceia (325) e Constantinopla (381).

Confira a postagem introdutória desta série, com os links para as demais Catequeses, clicando aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO


46. Definições conciliares (I): Niceia e Constantinopla
João Paulo II - 09 de março de 1988

1. “Cremos... em um só Senhor, Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado unigênito (μονογενῆ) do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai (ὁμοούσιον τῷ πατρί), por meio do qual vieram a ser todas as coisas, tanto no céu como na terra; o qual, por nós, homens, e para nossa salvação, desceu [do céu] e se encarnou, se fez homem, padeceu, e ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, havendo de vir julgar os vivos e os mortos...” (cf. Denzinger, n. 125).

Este é o texto da definição com que o I Concílio de Niceia (325) proclamou a fé da Igreja em Jesus Cristo: verdadeiro Deus e verdadeiro homem; Deus-Filho, consubstancial ao Pai Eterno, e homem verdadeiro, com uma natureza como a nossa. Esse texto conciliar entrou quase literalmente na profissão de fé que a Igreja repete na Liturgia e em outros momentos solenes, na versão do Símbolo Niceno-Constantinopolitano (cf. Denzinger, n. 150), em torno do qual gira todo o ciclo das nossas Catequeses.

I Concílio de Niceia (Afresco do século XVI)

2. O texto da definição dogmática conciliar reproduz os elementos essenciais da cristologia bíblica, que analisamos ao longo das Catequeses anteriores deste ciclo. Esses elementos constituíam, desde o princípio, o conteúdo da fé viva da Igreja dos tempos apostólicos, como vimos na última Catequeses. Seguindo o testemunho dos Apóstolos, a Igreja acreditava e professava desde o princípio que Jesus de Nazaré, filho de Maria e, portanto, verdadeiro homem, crucificado e ressuscitado, é o Filho de Deus, é o Senhor (“Kyrios”), é o único Salvador do mundo, dado à humanidade “na plenitude dos tempos” (cf. Gl 4,4).

3. A Igreja desde o princípio guardou essa fé e transmitiu-a às sucessivas gerações cristãs. Ensinou-a e defendeu-a, buscando - sob a guia do Espírito da Verdade - aprofundá-la e explicar seu conteúdo essencial, presente nos dados da Revelação.

O Concílio de Niceia (325) foi um autêntico “marco” nesse itinerário de conhecimento e formulação do dogma [1]. Foi um acontecimento importante e solene, que indicou o caminho da verdadeira fé a todos os seguidores de Cristo, muito antes das divisões do Cristianismo ocorridas em tempos sucessivos. É particularmente significativo o fato de que esse Concílio tenha se reunido pouco depois da Igreja ter conquistado a liberdade de ação na vida pública sobre todo o território do Império Romano (313), como que representando a vontade de permanecer na una fides” (única fé) dos Apóstolos enquanto se abriam para o Cristianismo novos caminhos de expansão.

4. Naquela época, a definição conciliar refletia não só a verdade sobre Jesus Cristo herdada dos Apóstolos e fixada nos livros do Novo Testamento, mas também o ensinamento dos Padres do período pós-apostólico, que - como sabemos - foi também o período das perseguições e das catacumbas. É um agradável dever para nós nomear aqui ao menos os dois primeiros Padres que, com o seu ensinamento, unido à santidade de vida, contribuíram decididamente a transmitir a tradição e o patrimônio perene da Igreja: Santo Inácio de Antioquia, lançado às feras selagens em Roma no ano 106 ou 107, e Santo Irineu de Lião, que sofreu o martírio provavelmente em 202. Ambos foram Bispos e pastores de suas Igrejas. De Santo Irineu queremos recordar aqui que, ensinando que Cristo é “verdadeiro homem e verdadeiro Deus”, escrevia: “Como poderiam os homens alcançar a salvação se Deus não tivesse realizado sua salvação sobre a terra? Ou como o homem poderia ir a Deus se Deus não tivesse vindo ao homem?” (Adversus haereses IV, 33, 4). Como podemos ver, é um argumento soteriológico, que, por sua vez, encontrou expressão na definição do Concílio de Niceia.

5. O texto de Santo Irineu que citamos provém da obra “Adversus haereses” (Contra as heresias), ou seja, de um livro que visava a defesa da verdade cristã contra os erros dos hereges, que neste caso eram os ebionitas. Os Padres Apostólicos, no seu ensinamento, frequentemente tinham que assumir a defesa da autêntica verdade revelada diante dos erros que continuamente se faziam ouvir de diversos modos.

No início do século IV foi famoso Ário, o qual deu origem a uma heresia que, por seu nome, foi chamada arianismo. Segundo Ário, Jesus Cristo não é Deus: embora preexistente ao nascimento de Maria, Ele teria sido criado no tempo. O Concílio de Niceia rejeitou este erro de Ário e, ao fazê-lo, explicou e formulou a verdadeira doutrina da fé da Igreja com as palavras que citamos no início desta Catequese. Ao afirmar que Cristo, como Filho Unigênito de Deus, é consubstancial ao Pai (ὁμοούσιον τῷ πατρί), o Concílio expressou, em uma fórmula adaptada à cultura (grega) de então, a verdade que encontramos em todo o Novo Testamento. Com efeito, sabemos que Jesus diz ser “um” com o Pai - “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30) - e afirma-o diante de ouvintes que, por causa disso, querem apedrejá-lo como blasfemo (v. 31). Afirma-o ainda durante o julgamento, diante do Sinédrio, o que o leva a ser condenado à morte. Um elenco mais detalhado das passagens bíblicas sobre este tema se encontra nas Catequeses anteriores. Do seu conjunto emerge claramente que o Concílio de Niceia, ao falar de Cristo como Filho de Deus, “da [mesma] substância do Pai” (ἐκ τῆς οὐσίας τοῦ πατρός), como “Deus de Deus”, eternamente “gerado, não criado”, não faz senão confirmar uma verdade precisa contida na Revelação divina, feita verdade da fé da Igreja, verdade central de todo o Cristianismo.

6. Quando essa verdade foi definida pelo Concílio, podemos dizer que já estava tudo maduro no pensamento e na consciência da Igreja para essa definição. Podemos dizer igualmente que essa definição não cessa de ser atual também para nosso tempo, no qual antigas e novas tendências a reconhecer Cristo apenas como um homem, ainda que extraordinário, e não como Deus, se manifestam de muitos modos. Admiti-las ou apoiá-las seria destruir o dogma cristológico e, ao mesmo tempo, aniquilar toda a soteriologia cristã. Se Cristo não é verdadeiro Deus, não transmite à humanidade a vida divina; portanto, não é o Salvador do homem no sentido destacado pela Revelação e pela Tradição. Violando-se esta verdade da fé da Igreja, toda a construção do dogma cristão colapsa, anula-se a lógica integral da fé e da vida cristã, porque se elimina a pedra angular de todo o edifício.

7. Mas devemos acrescentar imediatamente que, confirmando de modo solene e definitivo esta verdade no Concílio de Niceia, a Igreja, ao mesmo tempo, sustentou, ensinou e defendeu a verdade sobre a verdadeira humanidade de Cristo. Também essa verdade havia se tornado objeto de opiniões erradas e de teorias heréticas. Em particular é preciso recordar aqui o docetismo (da expressão grega “δοκείν”, “parecer”). Esta concepção anulava a natureza humana de Cristo, defendendo que Ele não possuía um corpo verdadeiro, mas apenas uma aparência de carne humana. Os docetas acreditavam que Deus não poderia nascer realmente de uma mulher, que não poderia morrer verdadeiramente na cruz. Desta sua posição se seguia que, em toda a esfera da Encarnação e da redenção, teríamos apenas uma ilusão da carne, em aberto contraste com a Revelação contida em diversos textos do Novo Testamento, entre os quais os de São João - “Jesus Cristo, vindo na carne...” (1Jo 4,2); “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14) - e de São Paulo, segundo o qual, nesta carne, Cristo se fez “obediente até a morte - e morte de cruz” (Fl 2,8).

8. Segundo a fé da Igreja, tomada da Revelação, Jesus Cristo era verdadeiro homem. Precisamente por isso o seu corpo humano era animado por uma alma verdadeiramente humana. Ao testemunho dos evangelistas, unívoco sobre este ponto, correspondia o ensinamento da Igreja primitiva, como também o dos primeiros escritores eclesiásticos, como Tertuliano, que escrevia: “Em Cristo... encontramos alma e carne, isto é, uma alma ‘alma’ (humana) e uma carne ‘carne’” (De carne Christi, 13, 4). No entanto, também sobre este ponto haviam opiniões contrárias, em particular as de Apolinário, Bispo de Laodiceia (que nasceu por volta de 310 em Laodiceia da Síria e morreu por volta de 390), e seus seguidores (chamados justamente “apolinaristas”), segundo os quais não havia em Cristo uma verdadeira alma humana, porque esta teria sido substituída pelo Verbo de Deus. Mas está claro que também neste caso se negava a verdadeira humanidade de Cristo.

9. O Papa Dâmaso I (366-384), com efeito, em uma Carta aos Bispos orientais (escrita por volta de 374), ao mesmo tempo indicava e rejeitava os erros tanto de Ário como de Apolinário: “Estes (os arianos) põem no Filho de Deus uma divindade imperfeita; aqueles (os apolinaristas) afirmam falsamente uma humanidade incompleta no Filho do homem. Mas, se verdadeiramente foi assumido um homem incompleto, imperfeita é a obra de Deus, imperfeita a nossa salvação, porque não foi salvo todo o homem (...) E nós, que sabemos ter sido salvos na plenitude do ser humano, segundo a fé da Igreja católica, professamos que Deus, na plenitude do seu ser, assumiu o homem na plenitude do seu ser” (cf. Denzinger, n. 146). O documento damasiano, redigido cerca de cinquenta anos depois de Niceia, era dirigido principalmente contra os apolinaristas. Poucos anos depois, o I Concílio de Constantinopla (381) condenou todas as heresias da época, incluindo o arianismo e o apolinarismo, confirmando o que o Papa Dâmaso I havia proclamado sobre a humanidade de Cristo, à qual pertence por natureza uma verdadeira alma humana - e, portanto, um verdadeiro intelecto humano, uma livre vontade (cf. Denzinger, nn. 146.149.151).

10. O argumento soteriológico com o qual o Concílio de Niceia explicou a Encarnação, ensinando que o Filho, consubstancial ao Pai, se fez homem “por nós, homens, e para nossa salvação”, encontrou nova expressão na defesa da verdade integral sobre Cristo, tanto frente ao arianismo como contra o apolinarismo, feita pelo Papa Dâmaso e pelo Concílio de Constantinopla. Particularmente em relação àqueles que negavam a verdadeira humanidade do Filho de Deus, o argumento soteriológico foi apresentado de um modo novo: para que o homem inteiro pudesse ser salvo, a inteira (perfeita) humanidade devia ser assumida na unidade do Filho; “Quod non est assumptum, non est sanatum” - “O que não é assumido, não é salvo” (cf. São Gregório Nazianzeno, Epistula 101 ad Cledonium).

11. O Concílio de Calcedônia (451), ao condenar mais uma vez o apolinarismo, completou em certo sentido o Símbolo Niceno da fé, proclamando Cristo “perfectum in deitate, eundem perfectum in humanitate”: “o Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na sua divindade e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, (composto) de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade, e consubstancial a nós segundo a humanidade (ὁμοούσιον ἡμῖν... κατὰ τὴν ἀνθρωπότητα) ‘semelhante a nós em tudo, menos no pecado’ (cf. Hb 4,15), gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a divindade, e, nestes últimos tempos, por nós e para nossa salvação, (gerado) de Maria, Virgem e Mãe de Deus, segundo a humanidade, um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor Unigênito...” (cf. Denzinger, nn. 301-302).

Como podemos ver, a intrincada elaboração do dogma cristológico realizada pelos Padres e Concílios nos remete sempre ao mistério do único Cristo, Verbo encarnado para nossa salvação, como nos é dado conhecer pela Revelação, para que crendo n’Ele e amando-o, sejamos salvos e tenhamos a vida (cf. Jo 20,31).

Santos Padres com o Símbolo Niceno-Constantinopolitano

Nota:
[1] O Papa se refere aqui ao Concílio de Niceia como “pedra miliar” (pietra miliare). Esta era uma coluna de pedra colocada junto às estradas romanas para marcar distâncias, geralmente a cada milha romana (o equivalente a cerca de 1,48 Km).

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (09 de março de 1988). 

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