Jesus Cristo como “Legislador divino” foi o tema da 30ª Catequese de São João Paulo II sobre Deus Filho.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO
30. Jesus Cristo, Legislador
divino
João Paulo II - 14 de outubro
de 1987
1. Nos Evangelhos encontramos outro
fato que atesta a consciência que Jesus tinha de possuir uma autoridade divina e
a convicção que os evangelistas e a primeira comunidade cristã tinham dessa
autoridade. Com efeito, os Sinóticos são concordes em dizer que os ouvintes de Jesus
“ficaram maravilhados com seu ensinamento, pois Ele os ensinava como quem
tem autoridade, não como os escribas” (Mc 1,22; Mt 7,29;
Lc 4,32). É uma informação preciosa, que Marcos nos dá já no início
do seu Evangelho, atestando que as pessoas haviam captado imediatamente a
diferença entre o ensinamento de Cristo e aquele dos escribas israelitas, não só
no modo, mas na própria substância: os escribas apoiavam seu ensinamento no
texto da Lei mosaica, da qual eram intérpretes e comentadores; Jesus não seguia
o método de um “professor” ou de um “comentador” da Lei antiga, mas se comportava como
um legislador e, definitivamente, como alguém que tinha autoridade sobre a
Lei. Notemos que os ouvintes sabiam bem que se tratava da Lei divina,
dada por Moisés em virtude de um poder que Deus mesmo lhe havia concedido como seu
representante e mediador junto ao povo de Israel.
Jesus pregando o “Sermão da Montanha” (Carl Bloch) |
Os evangelistas e a primeira comunidade
cristã, que refletiam sobre aquela observação dos ouvintes a respeito do ensinamento
de Jesus, compreenderam ainda melhor o seu significado integral, porque podiam confrontá-la
com todo o sucessivo ministério de Cristo. Para os Sinóticos e para seus leitores
era, pois, lógica a passagem da afirmação de um poder sobre a Lei mosaica e
sobre todo o Antigo Testamento àquela da presença de uma autoridade divina em Cristo.
E não só como um “enviado” ou “legado” de Deus, como no caso de Moisés: Cristo,
atribuindo a si o poder de completar e interpretar com autoridade ou, ainda
mais, de apresentar a Lei de Deus de um, mostrava sua consciência de ser “igual
a Deus” (cf. Fl 2,6).
2. Que o poder sobre a Lei que
Cristo se atribui comporte uma autoridade divina demonstra-o o fato de
que Ele não cria outra Lei abolindo a antiga: “Não penseis que vim
abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas completar” (Mt 5,17). É
claro que Deus não podia “abolir” a Lei que Ele mesmo entregou; mas pode - como
faz Jesus Cristo - esclarecer o seu pleno significado, dar a compreender
seu justo sentido, corrigir as falsas interpretações e as aplicações arbitrárias
às quais o povo e os seus próprios mestres e dirigentes a haviam submetido, cedendo
às fraquezas e limitações da condição humana.
Por isso Jesus anuncia, proclama e
pede uma “justiça” superior à dos escribas e fariseus (cf. Mt 5,20),
a “justiça” que o próprio Deus propôs e exige com a observância fiel da Lei em
ordem ao “reino dos céus”. O Filho do homem atua, pois, como um Deus que reestabelece
o que Deus quis e instituiu uma vez para sempre.
3. Sobre a Lei de Deus, com efeito,
Ele proclama: “Em verdade, Eu vos digo: antes que passem o céu e a terra, nem a
mínima letra ou traço serão tirados da Lei, até que se cumpram todas aa coisas”
(Mt 5,18). É uma declaração drástica, com a qual Jesus quer afirmar
tanto a imutabilidade substancial da Lei mosaica como o cumprimento messiânico
que esta recebe em sua palavra. Trata-se de uma “plenitude” da antiga Lei que Ele,
ensinando “como quem tem autoridade” sobre a Lei, faz ver que se manifesta
sobretudo no amor a Deus e ao próximo: “Toda a Lei e os Profetas
dependem desses dois mandamentos” (Mt 22,40). Trata-se de um “cumprimento”
que corresponde ao “espírito” da Lei, que transparece já na “letra” do Antigo
Testamento, que Jesus recolhe, sintetiza e propõe com a autoridade de quem é Senhor
também da Lei. Os preceitos do amor, e também da fé geradora de esperança na
obra messiânica, que Ele acrescenta à Lei antiga explicitando seu conteúdo e
desenvolvendo suas capacidades escondidas, são também um cumprimento.
A sua vida é um
modelo deste cumprimento, de modo que Jesus pode dizer aos seus discípulos
não só: “Segui minha Lei”, mas: “Segui a mim, imitai-me, caminhai na luz que
vem de mim”.
4. O Sermão da Montanha,
como relatado por Mateus, é o lugar do Novo Testamento onde se vê claramente afirmado
e decididamente exercido por Jesus o poder sobre a Lei que Israel recebeu de Deus
como pedra angular da aliança. É ali que, depois de ter declarado o valor perene
da Lei e o dever de observá-la (cf. Mt 5,18-19), Jesus
passa a afirmar a necessidade de uma “justiça” superior àquela “dos escribas e
fariseus”, ou seja, de uma observância da Lei animada pelo novo espírito
evangélico de caridade e de sinceridade.
Os exemplos concretos são conhecidos.
O primeiro consiste na vitória sobre a ira, o ressentimento, a animosidade que facilmente
se aninham no coração humano, mesmo quando se pode exibir uma exterior observância
dos preceitos mosaicos, entre os quais o de não matar: “Ouvistes o que foi dito
aos antigos: ‘Não matarás’; quem cometer homicídio, será réu no julgamento.
Eu, porém, vos digo: todo aquele que tratar seu irmão com ira, será réu no julgamento”
(Mt 5,21-22). O mesmo vale para quem ofendeu o outro com palavras
injuriosas, com burlas e escárnio. É a condenação de toda concessão diante do instinto
de aversão, que potencialmente é já um ato de lesão e mesmo de morte, ao menos
espiritual, porque viola a economia do amor nas relações humanas e faz mal aos
demais. Nesta condenação Jesus pretende contrapor a Lei da caridade que
purifica e reordena o homem até nos mais íntimos sentimentos e movimentos do seu
espírito.
Jesus faz da fidelidade a esta Lei
uma condição indispensável da própria prática religiosa: “Se, portanto, ao
levares a tua oferenda ao altar, te lembrares de que teu irmão tem algo contra
ti, deixa a tua oferenda lá diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com teu
irmão e, então, volta para apresentar a tua oferenda” (vv. 23-24). Tratando-se
de uma lei de amor, é irrelevante
o que quer que tenhamos no coração contra o outro:
o amor pregado por Jesus iguala e unifica todos no querer o bem, no estabelecer
ou restabelecer a harmonia nas relações com o próximo, mesmo nos casos de contendas
e de procedimentos judiciais (cf. v. 25).
5. Outro exemplo de aperfeiçoamento
da Lei é aquele a respeito do sexto mandamento do Decálogo, no qual Moisés proibia
o adultério. Com uma linguagem hiperbólica e até mesmo paradoxal, adequada para
chamar a atenção e abalar o estado de ânimo dos ouvintes, Jesus anuncia: “Ouvistes
o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo...” (Mt 5,27-28);
e condena também os olhares e os desejos impuros, enquanto recomenda a fuga das
ocasiões de pecado, a coragem da mortificação, a subordinação de todos os atos e
comportamentos às exigências da salvação da alma e do homem como um todo (cf. vv.
29-30).
A este exemplo se une de certo
modo outro que Jesus aborda em seguida: “Foi dito também: ‘Que repudia sua mulher,
dê-lhe um documento de divórcio’. Eu, porém, vos digo...” (Mt 5,31-32)
e declara abolida a concessão feita pela antiga Lei ao povo de Israel “por causa
da dureza do coração” (cf. Mt 19,8), proibindo também
essa forma de violação da lei do amor em harmonia com o restabelecimento da
indissolubilidade do matrimônio (cf. v. 9).
6. Com o mesmo procedimento Jesus
contrapõe à antiga proibição de perjurar o não jurar absolutamente (Mt 5,33-38),
e a razão que emerge com bastante clareza também está fundada no amor: não devemos
ser incrédulos ou desconfiados com o próximo quando é habitualmente franco e
leal, mas é preciso que uma parte e outra sigam esta lei fundamental do falar e
do agir: “Seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não. O que passa disso vem do
Maligno” (v. 37).
7. E ainda: “Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Eu, porém, vos digo: não ofereçais resistência ao
malvado” (Mt 5,38-39). Com linguagem metafórica, Jesus ensina a oferecer
a outra face; a ceder não só a túnica, mas também o manto; a não responder com violência
à opressão dos outros; e, sobretudo: “Dá a quem te pedir, e não vires as costas
a quem te pedir emprestado” (v. 42). Exclusão radical da “lei do talião” na
vida pessoal do discípulo de Jesus, qualquer que seja o dever da sociedade de
defender os próprios membros dos malfeitores e de punir os culpados de violação
dos direitos dos cidadãos e do próprio Estado.
8. E eis o aperfeiçoamento definitivo,
no qual encontram o centro dinâmico todos os demais: “Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás
o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos
inimigos e orai pelos que vos perseguem! Assim vos tornareis filhos do vosso Pai
que está nos céus, pois Ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e faz descer
a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,43-45). À interpretação
vulgar da antiga Lei, que identificava o próximo com o israelita e, antes, com o
israelita piedoso, Jesus opõe a interpretação autêntica do mandamento de Deus e
lhe acrescenta a dimensão religiosa da referência ao Pai celeste, clemente e
misericordioso, que beneficia a todos e, portanto, é o exemplo supremo do amor
universal.
Com efeito, Jesus conclui: “Sede
perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (v. 48). Ele pede aos seus seguidores
a perfeição do amor. A nova Lei trazida por Ele tem sua síntese no amor. Este
amor fará com que o homem supere a clássica contraposição amigo-inimigo nas suas
relações com os outros e tenderá, desde o interior dos corações, a traduzir-se nas
correspondentes formas de solidariedade social e política, inclusive
institucionalizadas. Será, pois, muito amplia na história a irradiação do
“mandamento novo” de Jesus.
9. Neste momento é preciso sobretudo
enfatizar que nas passagens importantes do “Sermão da Montanha” se repete a
contraposição: “Ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo...”
não para “abolir” a Lei divina da antiga aliança, mas para indicar seu “perfeito
cumprimento”, segundo o sentido pretendido pelo Deus-Legislador, que Jesus
ilumina com luz nova e explica em todo o seu valor realizador de vida nova e gerador
de nova história: e o faz atribuindo-se uma autoridade que é a mesma do Deus-Legislador.
Podemos dizer que nessa sua expressão, repetida seis vezes: “Eu vos digo”,
ressoa o eco daquela autodefinição de Deus, que Jesus também atribuiu a si: “Eu
sou” (cf. Jo 8,58).
10. Por fim, é preciso recordar a
resposta que Jesus deu aos fariseus que repreenderam seus discípulos por
arrancar as espigas dos campos cheios de grão para comê-las em dia de sábado,
violando assim a Lei mosaica. Jesus primeiramente cita o exemplo de Davi e dos
seus companheiros, que não hesitaram em comer os “pães da oferenda” para saciar
sua fome; e o exemplo dos sacerdotes, que no dia de sábado não observam a lei do
repouso porque desempenham suas funções no templo. Depois conclui com duas
afirmações definitivas, inéditas para os fariseus: “Eu vos digo: aqui está quem
é maior que o templo...”; e: “O Filho do homem é senhor do sábado”
(Mt 12,6.8; cf. Mc 2,27-28). São declarações
que revelam claramente a consciência que Jesus tinha da sua autoridade divina. O
definir-se “maior que o templo” era uma alusão bastante clara à sua transcendência
divina. E proclamar-se “senhor do sábado”, ou seja, senhor de uma Leu dada pelo
próprio Deus a Israel, era a proclamação aberta da própria autoridade como cabeça
do reino messiânico e promulgador da nova Lei. Não se tratava, pois, de simples
exceções à Lei mosaica, admitidas também pelos rabinos em alguns casos específicos,
mas de uma reintegração, de uma completude e de uma renovação que Jesus anuncia
como eternas: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras jamais passarão” (Mt 24,35).
O que vem de Deus é eterno, como Deus é eterno.
“Sermão da Montanha” (Henrik Olrik - Igreja luterana de Copenhagen, Dinamarca) |
Tradução nossa a partir do texto
italiano divulgado no site da Santa Sé (14 de outubro de 1987).
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