domingo, 29 de junho de 2025

Homilia do Papa Bento XVI: São Pedro e São Paulo (2005)

Nesta Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos, recordamos a homilia e a meditação durante o Ângelus proferidas pelo Papa Bento XVI (†2022) nesta ocasião há 20 anos.

Em sua homilia o Papa refletiu sobre as quatro notas da Igreja que professamos no Creio (Símbolo Niceno-Constantinopolitano): una, santa, católica e apostólica.

Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo
Concelebração Eucarística e Imposição do Pálio aos novos Arcebispos Metropolitanos
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica de São Pedro
Quarta-feira, 29 de junho de 2005

Queridos irmãos e irmãs!
1. A festa dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo é ao mesmo tempo uma grata memória das grandes testemunhas de Jesus Cristo e uma solene confissão em favor da Igreja una, santa, católica e apostólica.

Antes de tudo é uma festa da catolicidade. O sinal do Pentecostes tornou-se realidade: a nova comunidade que fala todas as línguas e une todos os povos em um único povo, em uma família de Deus. A nossa assembleia litúrgica, na qual estão reunidos Bispos provenientes de todas as partes do mundo, pessoas de diversas culturas e nações, é uma imagem da família da Igreja distribuída por toda a terra. Estrangeiros tornaram-se amigos; para além de todos os confins, reconhecemo-nos irmãos. Com isto se cumpre a missão de São Paulo, que sabia ser “ministro de Jesus Cristo entre os pagãos... oferenda bem aceita santificada no Espírito Santo” (Rm 15,16).

Note-se a imagem de São Pedro e São Paulo na mitra do Papa

A finalidade da missão é uma humanidade que se tornou uma glorificação viva de Deus, o culto verdadeiro que Deus espera: eis o sentido mais profundo da catolicidade - uma catolicidade que já nos foi dada e para a qual, todavia, devemos sempre nos encaminhar de novo. A catolicidade não exprime só uma dimensão horizontal, a reunião de muitas pessoas na unidade; exprime também uma dimensão vertical: só dirigindo o olhar para Deus, só abrindo-se a Ele podemos nos tornar verdadeiramente uma coisa só. Como Paulo, assim também Pedro veio a Roma, à cidade que era o lugar de convergência de todos os povos e que precisamente por isso podia se tornar, antes de qualquer outra, expressão da universalidade do Evangelho. Empreendendo a viagem de Jerusalém a Roma, ele certamente sabia que era guiado pelas vozes dos profetas, pela fé e pela oração de Israel.

Com efeito, faz parte também do anúncio da Antiga Aliança a missão a todo o mundo: o povo de Israel estava destinado a ser luz para as nações. O grande salmo da Paixão, o Salmo 21, cujo primeiro versículo - “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” - Jesus pronunciou na cruz, terminava com a visão: “Os confins de toda a terra voltarão para o Senhor, se prostrarão diante d’Ele todas as famílias das nações” (cf. Sl 21,28). Quando Pedro e Paulo vieram a Roma, o Senhor, que iniciara aquele Salmo na cruz, tinha ressuscitado; esta vitória de Deus devia agora ser anunciada a todos os povos, cumprindo assim a promessa com a qual se concluía o Salmo.

2. Catolicidade significa universalidade - multiplicidade que se torna unidade; unidade que, todavia, permanece multiplicidade. A partir da palavra de Paulo sobre a universalidade da Igreja já vimos que a capacidade dos povos de superar a si mesmos para olhar para o único Deus faz parte desta unidade.

O verdadeiro fundador da teologia católica, Santo Irineu de Lião (século II), expressou este vínculo entre catolicidade e unidade de um modo muito belo: “A Igreja espalhada por todo o mundo conserva essa doutrina e essa fé com diligência, formando como uma única família: a mesma fé com uma só alma e um só coração, a mesma pregação, ensinamento, tradição, como se tivesse uma só boca. São diversas as línguas segundo as regiões, mas única e a mesma é a força da tradição. As Igrejas da Germânia não têm uma fé ou tradição diversa, nem as da Espanha, da Gália, do Egito, da Líbia, do Oriente, do centro da terra; como o sol, criatura de Deus, é um só e idêntico em todo o mundo, assim a luz da verdadeira pregação resplandece em toda a parte e ilumina todos os homens que desejam chegar ao conhecimento da verdade” (Adversus haereses I, 10, 2).

A unidade dos homens na sua multiplicidade tornou-se possível porque Deus, este único Deus do céu e da terra, mostrou-se a nós; porque a verdade fundamental sobre a nossa vida, sobre o nosso “de onde?” e “para onde?”, tornou-se visível quando Ele se mostrou a nós e em Jesus Cristo nos fez ver o seu rosto, a si mesmo. Esta verdade sobre a essência do nosso ser, sobre o nosso viver e o nosso morrer, verdade que de Deus se tornou visível, nos une e nos torna irmãos. Catolicidade e unidade caminham juntas. E a unidade tem um conteúdo: a fé que os Apóstolos nos transmitiram da parte de Cristo.

3. Sinto-me feliz porque ontem - na Memória de Santo Irineu e Vigília da Solenidade dos Santos Pedro e Paulo - pude entregar à Igreja um novo guia para a transmissão da fé, que nos ajuda a conhecer melhor e depois também a viver melhor a fé que nos une: o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. Aquilo que no grande Catecismo, através dos testemunhos dos santos de todos os séculos e com as reflexões amadurecidas na teologia, é apresentado de maneira detalhada, é aqui recapitulado nos seus conteúdos fundamentais, que depois devem ser traduzidos na linguagem quotidiana e concretizados sempre de novo.

O livro está estruturado como diálogo de perguntas e respostas; quatorze imagens associadas aos vários campos da fé convidam à contemplação e à meditação. Resumem por assim dizer de modo visível aquilo que a palavra desenvolve nos detalhes. No início há um ícone de Cristo do século VI, que se encontra no Monte Athos e representa Cristo na sua dignidade de Senhor da terra, mas ao mesmo tempo como arauto do Evangelho, que tem nas mãos. “Eu sou aquele que sou” - este misterioso nome de Deus proposto na Antiga Aliança - está representado ali como o seu nome próprio: tudo o que existe vem d’Ele; Ele é a fonte originária de todo ser. E porque é único, também está sempre presente, está sempre perto de nós e ao mesmo tempo sempre nos precede: como “indicador” no caminho da nossa vida, antes, sendo Ele mesmo o caminho.

Não se pode ler este livro como se lê um romance. É preciso meditá-lo com calma em cada uma das suas partes e permitir que o seu conteúdo, através das imagens, penetre na alma. Espero que seja acolhido desta forma e possa se tornar um bom guia na transmissão da fé.

4. Dissemos que catolicidade da Igreja e unidade da Igreja caminham juntas. O fato de que ambas as dimensões se tornem visíveis a nós nas figuras dos santos Apóstolos indica já a característica sucessiva da Igreja: ela é apostólica. O que significa?

O Senhor instituiu doze Apóstolos, assim como doze eram os filhos de Jacó, indicando-os como iniciadores do povo de Deus que, tendo se tornado universal, de agora em diante abrange todos os povos. São Marcos nos diz que Jesus chamou os Apóstolos “para que ficassem com Ele e para enviá-los” (Mc 3,14). Parece quase uma contradição. Nós diríamos: ou estão com Ele ou são enviados e se põem a caminho.

Há uma palavra sobre os anjos do Papa São Gregório Magno que nos ajuda a desfazer a contradição. Ele diz que os anjos são sempre enviados e ao mesmo tempo estão sempre diante de Deus: “Onde quer que sejam enviados, onde quer que vão, caminham sempre no seio de Deus” (Homilia 34, 13). O Apocalipse qualificou os Bispos como “anjos” da sua Igreja; portanto, podemos fazer esta aplicação: os Apóstolos e os seus sucessores deveriam estar sempre com o seu Senhor e precisamente assim - onde quer que vão - estar sempre em comunhão com Ele e viver desta comunhão.

5. A Igreja é apostólica porque professa a fé dos Apóstolos e procura vivê-la. Há uma unicidade que caracteriza os Doze chamados pelo Senhor, mas ao mesmo tempo há uma continuidade na missão apostólica. São Pedro na sua Primeira Carta qualificou-se como “presbítero” com os presbíteros aos quais escreve (1Pd 5,1). E com isso expressou o princípio da Sucessão Apostólica: o mesmo ministério que ele tinha recebido do Senhor agora continua na Igreja graças à Ordenação Sacerdotal. A Palavra de Deus não só está escrita, mas, graças às testemunhas que o Senhor inseriu no ministério apostólico pelo sacramento, permanece palavra viva.

Assim me dirijo agora a vós, queridos irmãos Bispos. Saúdo-vos com afeto, juntamente com os vossos familiares e com os peregrinos das respectivas Dioceses. Estais para receber o pálio das mãos do Sucessor de Pedro. Fizemo-lo abençoar, como pelo próprio Pedro, colocando-o junto ao seu túmulo. Agora ele é expressão da nossa responsabilidade comum diante do “pastor supremo”, Jesus Cristo, do qual fala Pedro (1Pd 5,4).


O pálio é expressão da nossa missão apostólica. É expressão da nossa comunhão, que no ministério petrino tem a sua garantia visível. O serviço petrino está relacionado com a unidade e com a apostolicidade, reunindo visivelmente a Igreja de todas as partes e de todos os tempos, defendendo assim cada um de nós de escorregar em falsas autonomias, que muito facilmente se transformam em particularismos da Igreja e podem comprometer a sua independência interna.

Com isso não queremos esquecer que, no fundo, o sentido de todas as funções e ministérios é que “cheguemos todos juntos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao estado do homem perfeito e à estatura de Cristo em sua plenitude”, para que cresça o corpo de Cristo “para a sua edificação no amor” (Ef 4,13.16).

6. Nessa perspectiva, saúdo de coração e com gratidão a delegação da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, que é enviada pelo Patriarca Ecumênico Bartolomeu, ao qual dirijo um pensamento cordial. Guiada pelo Metropolita Ioannis, veio a esta nossa festa e participa da nossa celebração. Mesmo se ainda não concordamos sobre a questão da interpretação e do alcance do ministério petrino, estamos unidos na Sucessão Apostólica, estamos profundamente unidos uns aos outros pelo ministério episcopal e pelo sacramento do sacerdócio e professamos juntos a fé dos Apóstolos como nos é dada pelas Escrituras e como é interpretada pelos grandes Concílios.

Neste momento da história cheio de ceticismo e de dúvidas, mas também rico de desejo de Deus, reconhecemos novamente a nossa missão comum de testemunhar juntos Cristo Senhor e, com base naquela unidade que já nos foi dada, ajudar o mundo para que creia. E suplicamos ao Senhor de todo o coração para que nos guie à unidade plena, de modo que o esplendor da verdade, a única que pode criar a unidade, se torne de novo visível no mundo.

7. O Evangelho deste dia nos fala da confissão de São Pedro com a qual teve início a Igreja: “Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo’ (Mt 16,16). Tendo falado hoje da Igreja una, católica e apostólica, mas não ainda da Igreja santa, desejamos recordar neste momento outra confissão de Pedro, pronunciada em nome dos Doze, no momento do grande abandono: “Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus” (Jo 6,69). O que isto significa? Jesus, na grande oração sacerdotal, diz se santificar pelos discípulos, aludindo ao sacrifício da sua morte (cf. Jo 17,19). Com isso Jesus exprime implicitamente a sua função de verdadeiro Sumo Sacerdote que realiza o mistério do “Dia da Reconciliação”, não mais apenas nos ritos substitutivos, mas na concretude do seu próprio Corpo e Sangue.

No Antigo Testamento, a expressão “o Santo de Deus” indicava Aarão como Sumo Sacerdote que tinha a tarefa de realizar a santificação de Israel (cf. Sl 105,16; Eclo 45,6). A confissão de Pedro em favor de Cristo, que ele declara o Santo de Deus, está no contexto do discurso eucarístico, no qual Jesus anuncia o grande Dia da Reconciliação através da oferta de si mesmo em sacrifício: “O pão que Eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51).

Assim, sobre o pano de fundo dessa confissão está o mistério sacerdotal de Jesus, o seu sacrifício por todos nós. A Igreja não é santa por si mesma; com efeito, ela é formada por pecadores - todos nós o sabemos e o vemos. Porém, é santificada sempre de novo pelo amor purificador de Cristo. Deus não só falou: Ele nos amou de modo muito realista, amou-nos até a morte do próprio Filho. É precisamente daqui que deriva toda a grandeza da revelação que de certa forma inscreveu no coração do próprio Deus as feridas. Então cada um de nós pode dizer pessoalmente com São Paulo: “Vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20).

Peçamos ao Senhor que a verdade desta palavra se imprima profundamente, com a sua alegria e a sua responsabilidade, no nosso coração; peçamos que, irradiando-se da Celebração Eucarística, ela se torne cada vez mais a força que plasma a nossa vida.

Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo
Papa Bento XVI
Ângelus
Quarta-feira, 29 de junho de 2005

Caríssimos irmãos e irmãs,
Peço humildemente desculpas pelo meu atraso. Como sabeis, celebramos com grande solenidade, na Basílica, os Santos Pedro e Paulo. Está em festa especialmente Roma, onde estas duas insignes testemunhas de Cristo sofreram o martírio e onde se veneram as suas relíquias. A recordação dos santos Patronos faz-me sentir particularmente próximo de vós, queridos fiéis da Diocese de Roma. A Providência Divina chamou-me para ser o vosso Pastor: agradeço pelo afeto com que me acolhestes e peço que rezeis para que os Santos Pedro e Paulo me obtenham a graça de cumprir com fidelidade o ministério pastoral que me foi confiado. Como Bispo de Roma, o Papa desempenha um serviço único e indispensável à Igreja universal: é o perpétuo e visível princípio e fundamento da unidade dos Bispos e de todos os fiéis.

Sinal litúrgico da comunhão que une a Sé de Pedro e o seu Sucessor aos Metropolitas e, através deles, aos outros Bispos do mundo, é o pálio, que esta manhã, durante a Celebração Eucarística na Basílica de São Pedro, impus a mais de trinta Pastores provenientes de várias Comunidades. A estes queridos irmãos e a quantos os acompanham renovo a minha fraterna saudação.

Dirijo com afeto uma saudação cordial também à Delegação do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla que veio para esta especial circunstância. Como não recordar hoje que o primado da Igreja que está em Roma e do seu Bispo é um primado de serviço à comunhão católica. A partir do duplo acontecimento do martírio de Pedro e de Paulo, com efeito, todas as Igrejas começaram a olhar para aquela de Roma como ponto de referência central para a unidade doutrinal e pastoral. O Concílio Vaticano II afirma: “na comunhão eclesiástica, existem legitimamente Igrejas particulares, que possuem tradições próprias, permanecendo íntegro o primado da Cátedra de Pedro, que preside a comunhão universal da caridade (cf. Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, Prefácio), protege as legítimas variedades e, ao mesmo tempo, vigia para que as particularidades não prejudiquem a unidade, mas antes a sirvam” (Constituição Lumen gentium, n. 13).

 A Virgem Maria nos obtenha que o ministério petrino do Bispo de Roma não seja visto como obstáculo, mas como apoio no caminho pela via da unidade, e nos ajude a alcançar quanto antes a realização do anseio de Cristo: “ut unum sint”, “para que sejam um”. Intercedam por nós os Santos Apóstolos Pedro e Paulo.

São Pedro e São Paulo, Apóstolos
(Catedral de Gliwice, Polônia)

Fonte: Santa Sé (Homilia / Ângelus), com pequenas correções do autor deste blog. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário