Continuando a refletir sobre a Cristologia dos primeiros Concílios Ecumênicos, em suas Catequeses nn. 47-48 sobre Jesus Cristo o Papa São João Paulo II abordou os Concílios de Éfeso (431) e Constantinopla (451).
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO
47. Definições conciliares (II): Éfeso e Calcedônia
João Paulo II - 16 de março de 1988
1. Os grandes Concílios cristológicos
de Niceia e Constantinopla formularam a verdade fundamental da nossa fé, fixada
também no Símbolo: Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem,
consubstancial ao Pai no que diz respeito à divindade, da nossa mesma natureza no
que diz respeito à humanidade. Neste ponto da nossa Catequese, é preciso notar
que, depois das explicações conciliares acerca da verdade revelada sobre a
verdadeira divindade e a verdadeira humanidade de Cristo, surgiu a questão
sobre a correta compreensão da unidade de Cristo, que é, ao mesmo tempo,
plenamente Deus e plenamente homem.
A questão dizia respeito ao conteúdo
essencial do mistério da Encarnação e, por conseguinte, da concepção e do nascimento
humano de Cristo da Virgem Maria. Desde o século III se havia estendido o costume
de chamá-la “Theotokos”, “Mãe de Deus”, expressão que se encontra,
entre outros lugares, na mais antiga oração mariana que conhecemos, o “Sub tuum praesidium”: “À tua proteção
recorremos, Santa Mãe de Deus...”. É uma antífona frequentemente
recitada pela Igreja até hoje: o texto mais antigo que a relata se conserva em
um papiro encontrado no Egito, datado entre os séculos III e IV.
Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (Mosaico da Catedral de Santa Sofia, Constantinopla) |
2. Mas precisamente essa invocação, Theotokos,
foi contestada por Nestório e seus discípulos no início do
século V. Ele argumentava que Maria podia ser chamada apenas Mãe de Cristo,
e não Mãe de Deus (“Dei Genetrix”, Geradora de Deus).
Esta posição fazia parte da atitude de Nestório em relação ao problema da unidade
de Cristo. Segundo ele, a divindade e a humanidade não haviam se unido,
como em um só sujeito pessoal, no ser terreno que tinha começado a existir no
seio da Virgem Maria desde o momento da Anunciação. Em contraposição ao arianismo,
que apresentava o Filho de Deus como inferior ao Pai, e ao docetismo, que reduzia
a humanidade de Cristo a uma simples aparência, Nestório falava de uma presença
especial de Deus na humanidade de Cristo, como em um ser santo,
como em um templo, de modo que subsistiria em Cristo uma dualidade não só de
natureza, mas também de pessoa, a divina e a humana; e a Virgem Maria, sendo Mãe de
Cristo-homem, não podia ser considerada nem chamada Mãe de Deus.
3. O Concílio de Éfeso (431),
contra as ideias nestorianas, confirmou a unidade de Cristo, como
resultava da Revelação e havia sido acreditada e afirmada pela tradição cristã -
os “Santos Padres” (“Sancti Patres”) - (cf. Denzinger,
nn. 250-266), e definiu que Cristo é o mesmo Verbo eterno, Deus de Deus,
que como Filho é “gerado” desde sempre pelo Pai e, segundo a carne, nasceu no tempo
da Virgem Maria. Portanto, sendo Cristo um só ser, Maria tem o pleno direito
de receber o título de Mãe de Deus, como já há algum tempo se expressava a
oração cristã e o pensamento dos Padres (ibid., n. 251).
4. A doutrina do Concílio de Éfeso
foi sucessivamente formulada na chamada “Fórmula de união” (433), que pôs fim às
residuais controvérsias pós-conciliares com as seguintes palavras: “Confessamos,
portanto, nosso Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, perfeito Deus e
perfeito homem, composto de alma racional e de corpo, gerado do Pai antes dos
séculos segundo a divindade, no fim dos tempos, por nós e para nossa salvação,
nascido da Virgem Maria segundo a humanidade, consubstancial ao Pai segundo a
divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade. Aconteceu, de fato, a
união das duas naturezas (humana e divina), e por isso confessamos um só
Cristo, um só Filho, um só Senho” (Denzinger, n. 272).
“Segundo esse conceito de união
inconfusa, confessamos a Santa Virgem Deípara (Mãe de Deus), porquanto Deus, o
Verbo, foi encarnado e se fez homem e, desde a concepção, uniu a si o templo
que dela recebeu” (ibid.). Estupendo conceito da humanidade-templo
verdadeiramente assumida pelo Verbo na unidade da pessoa no seio de Maria!
5. O documento que leva o nome de “Fórmula
de união” (“Formula unionis”) foi resultado de ulteriores diálogos entre
o Bispo João de Antioquia e São Cirilo de Alexandria, os quais receberam
por este motivo as felicitações do Papa São Sisto III (432-440). O texto falava
já da união das duas naturezas no mesmo e único sujeito, Jesus
Cristo. Mas, como surgiram novas controvérsias, especialmente por obra de Êutiques
e dos monofisistas, os quais defendiam a unificação e quase a fusão das duas
naturezas no único Cristo, alguns anos depois se reuniu o Concílio de Calcedônia
(451), que, em consonância com o ensinamento do Papa São Leão Magno (440-461),
para precisar melhor o sujeito dessa união de naturezas, introduziu o termo “pessoa”.
Foi um novo marco no caminho do dogma cristológico.
6. Na fórmula da definição
dogmática, o Concílio de Calcedônia repetia a de Niceia e Constantinopla, e fazia
sua a doutrina de São Cirilo em Éfeso e aquela contida na “Carta que o beatíssimo
e santíssimo Leão, Arcebispo da máxima e antiga cidade de Roma, escreveu ao Arcebispo
Flaviano... em harmonia com a profissão de fé do grande Apóstolo Pedro e para nós
coluna segura” (cf. Denzinger, n. 300), e por fim precisava: “Seguindo,
pois, os Santos Padres, unanimemente ensinamos que se confesse um só e mesmo Filho,
o Senhor nosso Jesus Cristo... um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito,
reconhecido em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem
separação, não sendo de modo algum anulada a diferença das naturezas por causa
da sua união, mas, pelo contrário, salvaguardada a propriedade de cada uma das
naturezas e concorrendo em uma só pessoa e em uma só
hipóstase, não dividido ou separado em duas pessoas, mas um único e mesmo Filho,
Unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo, como anteriormente nos ensinaram os
profetas, e também o próprio Jesus Cristo, e como nos transmitiu o Símbolo dos Padres”
(ibid., nn. 301-302).
Era uma clara e vigorosa síntese da fé no mistério de Cristo, recebida da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição (“Sanctos Patres sequentes”), que se servia de conceitos e expressões racionais: natureza, pessoa, pertencentes à linguagem
corrente, elevados à dignidade da terminologia filosófica e teológica, especialmente
depois da definição conciliar. O Concílio, porém, assumia esses conceitos e
termos da linguagem corrente, sem referência a um sistema filosófico particular.
É preciso notar também a preocupação que tiveram os Padres conciliares pela precisão
na escolha dos vocábulos. No texto grego, a palavra “prósopon” (“πρόσωπον”),
correspondente a “pessoa”, indicava sobretudo o lado externo, fenomenológico
(literalmente, a máscara no teatro) do homem, e, portanto, os Padres se serviram,
junto a esta palavra, de outro termo: “hipóstase”
(“ὑπόστασις”), que indica a especificidade ontológica da pessoa.
Renovemos também nós a profissão da
fé em Cristo, nosso Salvador, com as palavras dessa fórmula veneranda, à qual se
remeteram inumeráveis gerações de cristãos, haurindo dela luz e força para um testemunho
que os levou, às vezes, à prova suprema do derramamento do sangue.
48. Definições conciliares (III): Calcedônia
João Paulo II - 23 de março de 1988
1. Em nossas Catequeses estamos
refletindo sobre as antigas definições conciliares, nas quais foi sendo formulada
a fé da Igreja. Um marco desta formulação foi colocado pelo Concílio de Calcedônia
(451), o qual, com uma definição solene, precisou que em Jesus Cristo as
duas naturezas, a divina e a humana, se uniram (sem confusão) em um único sujeito
pessoal, que é a Pessoa divina do Verbo-Deus. Por causa do termo
“hipóstase” (“ὑπόστασις”) se costuma falar de união hipostática. Com
efeito, a mesma pessoa do Verbo-Filho é gerada eternamente pelo Pai no que diz
respeito à sua divindade e, no tempo, foi concebida e nasceu da Virgem Maria no
que diz respeito à sua humanidade. A definição de Calcedônia, portanto,
reafirma, desenvolve e explica o que a Igreja tinha ensinado nos Concílios
anteriores e o que tinham testemunhado os Padres, por exemplo, Santo Irineu,
que falava de “Cristo, uno e o mesmo” (cf. Adversus Haereses III,
17, 4).
É preciso notar aqui que, com a doutrina
sobre a Pessoa divina do Verbo-Filho, o qual, assumindo a natureza humana, entrou no
mundo das pessoas humanas, foi destacada pelo Concílio também a dignidade do
homem-pessoa e as relações existentes entre as distintas pessoas. Mais
ainda, podemos dizer o Concílio chamou a atenção para a realidade e a dignidade
do homem em particular, do homem como sujeito inconfundível de existência, de vida
e, portanto, de direitos e deveres. Como não ver nisso o ponto de partida de
toda uma nova história de pensamento e de vida? Por isso a Encarnação do Filho
de Deus é o fundamento, a fonte e o modelo, tanto de uma nova ordem sobrenatural
de existência para todos os homens, que precisamente desse mistério obtêm a graça
que os santifica e salva, como de uma antropologia cristã, que se projeta também
na esfera natural do pensamento e da vida, com sua exaltação do homem como pessoa,
colocado no centro da sociedade e - podemos dizer - do mundo inteiro.
2. Retornemos ao Concílio de Calcedônia
para dizer que ele confirmou o ensinamento tradicional sobre as duas naturezas em
Cristo contra a doutrina monofisista (mono-physis, uma natureza)
que se havia propagado. Precisando que a união das duas naturezas (“ἐν δύο
φύσεσιν”) acontece em uma Pessoa, o Concílio de Calcedônia destacou ainda
mais plenamente a dualidade dessas duas naturezas, como lemos no texto da definição
de citamos na Catequese anterior: “Ensinamos que se confesse... um só e mesmo
Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, reconhecido em duas naturezas, sem confusão, sem
mudança, sem divisão, sem separação, não sendo de modo algum anulada a diferença
das naturezas por causa da sua união, mas, pelo contrário, salvaguardada a propriedade
de cada uma das naturezas” (Denzinger, n. 302). Isto significa que a
natureza humana de nenhum modo foi “absorvida” pela divina. Graças à sua natureza
divina, Cristo é “consubstancial ao Pai segundo a divindade”; graças à sua
natureza humana, é “consubstancial também a nós, segundo a humanidade” (ὁμοούσιον
ἡμῖν... κατὰ τὴν ἀνθρωπότητα).
Portanto, Jesus Cristo é verdadeiro
Deus e verdadeiro homem. Por outro lado, a dualidade das naturezas não fere,
de nenhum modo, a unidade de Cristo, que é dada pela perfeita unidade
da Pessoa divina.
3. É preciso observar ainda que,
segundo a lógica do dogma cristológico, o efeito da dualidade de naturezas em
Cristo é a dualidade de vontade e de operações, embora na unidade da
pessoa. Esta verdade foi definida pelo III Concílio de Constantinopla (o
VI Concílio Ecumênico) em 681 - como, aliás, já havia feito o Sínodo
Lateranense de 649 (cf. Denzinger, n. 500) - contra os erros
dos monotelistas, que atribuíam a Cristo uma só vontade.
O Concílio condenou a heresia de um
só vontade e uma só operação nas duas naturezas de Cristo, que mutilava o
próprio Cristo de uma parte essencial da sua humanidade, e, seguindo os cinco santos
Concílios Ecumênicos anteriores e os santos e insignes Padres, de acordo com eles,
definia e confessava que em Cristo há “duas vontades naturais e duas operações
naturais... e as duas vontades naturais não estão em contraste entre si..., mas
a sua vontade humana é obediente, sem oposição ou relutância, ou melhor, é submetida
à sua vontade divina e onipotente. (...) segundo o que Ele mesmo afirma: ‘Desci
do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade d’Aquele que me enviou’ (Jo 6,38)”
(Denzinger, n. 556).
4. Este é o ensinamento dos primeiros
Concílios: nele, juntamente com a divindade, fica totalmente clara também a dimensão
humana de Cristo. Ele é verdadeiro homem por natureza, capaz do agir humano, do
conhecimento humano, da vontade humana, da consciência humana e, acrescentemos,
do sofrimento humano, da paciência, obediência, paixão e morte. Só por força dessa
plenitude humana podem ser compreendidos e explicados os textos sobre a obediência
de Cristo até a morte (cf. Fl 2,8; Rm 5,19;
Hb 5,8) e sobretudo a oração no Getsêmani: “Pai... não seja feita a
minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42).
Mas é igualmente verdade que a
vontade humana e o agir humano de Jesus pertencem à Pessoa divina do Filho:
precisamente no Getsêmani tem lugar a invocação: “Abbá, Pai!” (Mc 14,36).
Ele é bem consciente dessa sua Pessoa divina, como revela, por exemplo, quando
declara: “Antes que Abraão existisse, Eu sou” (Jo 8,58), além de outras
passagens evangélicas que já examinamos. É certo que, como verdadeiro homem, Jesus
possui uma consciência especificamente humana, que descobrimos continuamente nos
Evangelhos. Mas, ao mesmo tempo, sua consciência humana pertence a esse
“Eu” divino,
pelo qual Ele pode dizer: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30).
Não há nenhum texto evangélico que demonstre que Cristo fala de si mesmo como
de uma pessoa humana, mesmo quando se apresenta voluntariamente como
“Filho do homem”: palavra densa de significado que, sob os véus da expressão
bíblica e messiânica, parece indicar já a pertença daquele que a aplica a si mesmo
a uma ordem diversa e superior àquela dos comuns mortais enquanto à realidade do
seu “eu”. Palavra na qual ressoa o testemunho da íntima consciência da sua própria
identidade divina.
5. Como conclusão da nossa exposição
sobre a cristologia dos grandes Concílios, podemos saborear toda a densidade do
texto do Papa São Leão Magno em sua Carta ao Bispo Flaviano de
Constantinopla (Tomus Leonis, 13 de junho de 449), que foi como que a
premissa do Concílio de Calcedônia e que resume o dogma cristológico da Igreja antiga:
“O Filho de Deus entra, portanto, no que no mundo é fraco, descendo do trono
celeste, sem abandonar a glória do Pai, gerado em uma ordem nova, em um novo nascimento.
(...) De fato, Ele que é verdadeiro Deus é ao mesmo tempo verdadeiro homem, e nesta
unidade não há mentira alguma, enquanto são imutáveis a humildade do homem e a
elevação da divindade. Pois assim como Deus não muda pela misericórdia (com a
qual se faz homem), assim o homem não é absorvido pela dignidade (divina). De
fato, cada uma das duas formas opera em comunhão com a outra o que lhe é
próprio: isto é, o Verbo opera o que é do Verbo, a carne opera o que é da
carne. Dessas, uma brilha nos milagres, a outra é submetida nos ultrajes. E como
o Verbo não abandona a igualdade da glória do Pai, também a carne não abandona a
natureza do nosso gênero” (Denzinger, n. 294).
E, depois de fazer referência a
numerosos textos evangélicos que constituem a base da sua doutrina, São Leão
Magno conclui: “Não é da mesma natureza dizer: ‘Eu e o Pai somos um’ (Jo 10,30),
e dizer: ‘O Pai é maior do que Eu’ (Jo 14,28). De fato, se bem que no
Senhor Jesus Cristo seja una a pessoa de Deus e do homem, todavia, uma coisa é
de onde deriva em ambos o comum ultraje, e outra coisa de onde deriva a glória
comum. Com efeito, da nossa natureza Ele tem a humanidade inferior ao Pai, do Pai
a divindade igual ao Pai” (ibid., n. 295).
Embora possam parecer difíceis, essas
formulações do dogma cristológico encerram e deixam transparecer o mistério do “Verbum
caro factum” (“Verbo que se fez carne”), anunciado no Prólogo joanino, diante
do qual sentimos a necessidade de prostrar-nos e, adoração junto àqueles espíritos
elevados que o honraram também com seus estudos e reflexões para nosso bem e de
toda a Igreja.
Ícone dos sete primeiros Concílios Ecumênicos |
Tradução nossa a partir do texto italiano
divulgado no site da Santa Sé (16 de março e 23 de março de 1988).
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