terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Jubileu dos Artistas no ano 2000

No dia 18 de fevereiro do ano 2000, o Cardeal Roger Etchegaray, Presidente do Comitê para o Grande Jubileu do ano 2000, presidiu a Santa Missa na Basílica de São Pedro por ocasião do Jubileu dos Artistas no Ano Santo.

A data foi escolhida por ser a memória do Beato Fra Angelico, padroeiro dos artistas.

No final da Missa o Papa João Paulo II foi até a Basílica e proferiu o seguinte discurso:

Jubileu dos Artistas
Discurso do Papa João Paulo II
18 de fevereiro de 2000

Senhor Cardeal,
Venerados irmãos no Episcopado e no Sacerdócio,
Estimados irmãos e irmãs!
1. É com grande alegria que me encontro convosco nesta Basílica, onde realizaram a sua obra alguns dos máximos gênios da arquitetura e da escultura. Sede bem-vindos! Saúdo o Cardeal Roger Etchegaray, que presidiu a celebração da Santa Missa. Com ele saúdo Dom Francesco Marchisano, Presidente da Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja, e os demais Prelados e sacerdotes. Saúdo de igual modo as autoridades civis participantes e os artistas presentes. Manifesto a todos o meu apreço por este intenso testemunho de fé. Ninguém como vós, estimados cultores da arte, se pode sentir aqui como se estivesse na própria casa, neste lugar onde fé e arte se encontram de maneira tão singular, elevando-nos à contemplação da glória divina.
Acabastes de constatá-lo, precisamente durante a Celebração Eucarística, centro da vida eclesial. Se, como disse o Concílio, “pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na celeste” (Sacrosanctum Concilium, 8), isto adquire uma particular evidência no esplendor deste templo. Ele leva-nos com o pensamento à Jerusalém celeste, na qual segundo a expressão do Apocalipse os alicerces estão “adornados com toda a espécie de pedras preciosas” (Ap 21,19), e já não é preciso a luz do sol e da lua, “pois é iluminada pela glória de Deus e a sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21,23).

2. Sinto-me feliz por vos renovar hoje os sentimentos de estima que manifestei no ano passado na minha Carta aos artistas. Chegou o momento de restabelecer aquela profunda aliança entre Igreja e arte, que marcou profundamente o caminho do cristianismo ao longo destes dois milênios. Estimados artistas e crentes, isto requer a vossa capacidade de viver profundamente a realidade da fé cristã, de tal forma que ela se torne geradora de cultura e proporcione ao mundo novas “epifanias” da beleza divina, refletida na criação. É precisamente para exprimir a vossa fé que hoje estais aqui. Viestes para celebrar o Jubileu. Em suma, qual é o seu significado a não ser fixar o olhar no rosto de Cristo, para d'Ele receber misericórdia e deixar-se penetrar pela sua luz? O Jubileu é Cristo! Ele é a nossa salvação e a nossa alegria, o nosso cântico e esperança. Quem entra nesta Basílica através da Porta Santa, encontra-O em primeiro lugar dirigindo o olhar para a estátua da Pietà de Michelangelo, como que confundindo o olhar com o de Maria que abraça o corpo sem vida do Filho. Aquele corpo martirizado, e no entanto suave, do “mais belo dos homens” (Sl 45,3), é fonte de vida. Maria, figura da nova humanidade, ela que por sua vez foi salva, entrega-o a cada um de nós como semente de ressurreição. Com efeito, como ensina o apóstolo Paulo, nós “pelo Batismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa vida nova” (Rm 6,4).

3. O Jubileu pede que acolhamos esta graça de ressurreição de forma que ela atinja todos os aspectos da nossa vida, curando-a não só do pecado, mas também de todos os vestígios que ele deixa em nós, até depois de nos termos reconciliado com Deus. Num certo sentido, trata-se de “esculpir” a pedra do nosso coração, a fim de evidenciar os traços de Cristo, novo Homem.
O artista que pode fazer isto em profundidade é o Espírito Santo. Contudo, Ele exige a nossa adesão e docilidade. A conversão do coração é, por assim dizer, obra de arte comum ao Espírito e à nossa liberdade. Vós artistas, habituados a modelar as mais diversas matérias segundo a inventiva do vosso gênio, sabeis quanto se assemelha ao anseio artístico o esforço quotidiano de melhorar a própria existência. Na Carta a vós dedicada, eu escrevi: “na ‘criação artística’, mais do que em qualquer outra atividade, o homem revela-se como ‘imagem de Deus’, e realiza aquela tarefa, em primeiro lugar plasmando a ‘matéria’ estupenda da sua humanidade e depois exercendo um domínio criativo sobre o universo que o circunda” (Carta aos artistas, 1). Entre a arte de formar a si próprio e a que se pratica na transformação da matéria há uma particular analogia.

4. Em ambas as tarefas o ponto de partida é sempre um dom do alto. Se a criação artística precisa duma “inspiração”, o caminho espiritual tem necessidade da graça, que é o dom com o qual Deus se comunica, enchendo a nossa vida de amor, iluminando os nossos passos, tocando o nosso coração, chegando ao ponto de habitá-lo e de torná-lo templo da sua santidade: “Se alguém Me ama, guarda a Minha palavra e Meu Pai o amará. Eu e Meu Pai viremos e faremos nele morada” (Jo 14,23).
Este diálogo com a graça empenha sobretudo a nível ético, mas alcança todas as dimensões da nossa existência, e adquire uma dimensão peculiar no exercício do talento artístico. Deus deixa-se entrever no vosso espírito através do fascínio e da nostalgia da beleza. De fato, não há dúvida de que o artista tem uma relação particular com a beleza e até se pode dizer que a beleza é “a vocação a que o Criador o chamou” (Carta aos artistas, 3). Se formos capazes de discernir nas numerosas manifestações do belo um raio da beleza suprema, então a arte torna-se um caminho rumo a Deus, e estimula o artista a conjugar o seu talento criativo com o empenho de uma vida cada vez mais em sintonia com a lei divina. Por vezes, precisamente o confronto entre o esplendor da realização artística e o peso do próprio coração pode despertar aquela inquietação salutar, que origina o desejo de vencer a mediocridade e iniciar uma vida nova, aberta com generosidade ao amor de Deus e dos fiéis.

5. É assim que a nossa humanidade se eleva, numa experiência de liberdade, diria de infinito, como a que Michelângelo ainda nos inspira na cúpula que, ao mesmo tempo, domina e coroa este templo. Vista de fora, parece que ela desenha um curvar-se do céu sobre a comunidade reunida em oração, como se simbolizasse o amor com que Deus se aproxima dela. Contemplada de dentro, no seu vertiginoso impulso para o alto, ela recorda ao mesmo tempo o fascínio e a dificuldade de se elevar para o encontro total com Deus.
Caríssimos artistas, a celebração jubilar chama-vos precisamente a esta elevação. É convite a praticar a arte maravilhosa da santidade. Se ela parecer demasiado difícil, confortai-vos com a certeza de que neste caminho não estamos sós: a graça ampara-nos também através daquele acompanhamento eclesial, com o qual a Igreja se torna mãe para cada um de nós, obtendo do Esposo divino superabundância de misericórdia e de dons. Não é este porventura o sentido da mater Ecclesia que Bernini representou de modo eficaz no abraço solene da colunata? Aqueles braços majestosos são sempre braços maternos, que se abrem à inteira humanidade. Por eles circundado, cada membro da Igreja se pode sentir confortado nos seus passos de peregrino, a caminho rumo à pátria.
Desta forma, a nossa reflexão volta ao ponto de partida, ao esplendor da Jerusalém celeste, à qual aspiramos como povo de Deus peregrino.
Estimados artistas, desejo que vos sintais sempre atraídos por esse esplendor e, para o conforto do vosso empenho, concedo-vos de coração a minha bênção.


Fonte: Santa Sé

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