No final de 2019 o site Vatican News publicou três textos sobre Liturgia, refletindo sobre seu valor pastoral a partir dos antecedentes da reforma do Concílio Vaticano II:
30 de outubro de 2019
No nosso espaço Memória Histórica - 50 anos do Concílio
Vaticano II, vamos falar hoje sobre “a chave da reforma litúrgica: a pastoral”.
Depois da pausa durante os trabalhos sinodais, voltamos
nesta quarta-feira com nosso espaço Memória Histórica, para falar sobre o
Concílio Vaticano II, em particular, sobre a reforma litúrgica. E no programa
de hoje, padre Gerson Schmidt, que tem nos acompanhado na exposição dos
documentos conciliares, volta a citar, entre outros, o Arcebispo Annibale
Bugnini, um personagem-chave da grande reforma litúrgica que já se desenhava
desde o final da II Guerra Mundial e que foi implementada pelo Papa Paulo VI. O
Arcebispo foi um dos principais coordenadores de sua implementação na América
Latina durante o período imediatamente após o Concílio. Padre Gerson Schmidt,
destaca que a pastoral é a chave da reforma litúrgica:
A reforma do Concílio Vaticano II se distingue por sua
característica pastoral, ou seja, o pastoreio do Povo Santo de Deus que se
reúne e celebra, convocados por Deus pela Palavra. “A participação e inserção
do Povo de Deus na celebração litúrgica são a meta da reforma, foram o objetivo
do movimento litúrgico” [1]. E essa participação não deve ser apenas exterior,
mas interior, quando a assembleia reunida mergulha na raiz, no âmago do
mistério que é celebrado, ao próprio Cristo presente.
O Movimento Litúrgico e a reforma da Sacrosanctum Concilium propuseram reconduzir os fiéis à sua ampla
participação, compreensão e celebração na Liturgia. O abade Guéranger, falecido
em 1875, já propunha esse ideal em suas Liturgias e publicações nos mosteiros
beneditinos por ele fundados. Pio X viu na participação ativa dos fiéis na Liturgia
uma fonte primária e indispensável do verdadeiro espírito cristão [2].
Pio X encontrou acolhida de seu pensamento papal na Abadia
de Mont-César onde Dom Lamberto Beaudiun (falecido em 1960) em 1909 deu vida ao
Movimento Litúrgico organizado. Também os beneditinos de Maria Laach, na
Alemanha, deram um impulso com o aprofundamento teológico, bíblico e patrístico
da Liturgia, sempre em vista da pastoral.
“Associações, jornais, semana e congressos litúrgicos se
multiplicaram em toda a parte, em campo diocesano, nacional e internacional,
até que a Santa Sé começou a apoiar e favorecer inicialmente o movimento,
assumindo-o, a seguir, sob a própria direção” [3]. O apoio de Pio XI foi
decisivo com a Constituição Apostólica Divini
Cultus, de 1928 e pela fundação, em 1930, do departamento Histórico da
Sagrada Congregação dos Ritos.
Já operante em toda a Igreja, o Movimento Litúrgico ainda
recebe mais força com Pio XII com a Encíclica Mediator Dei, de 22 de novembro de 1947. A Liturgia assim estava se
adentrando numa estrada definitiva que era a orientação pastoral, orientando-se
a voltar às origens.
Antes da Encíclica Mediator
Dei houve a nova versão latina dos salmos, levada a cabo por ordem de Pio
XII e que impulsionou também a ideia da reforma de toda a Liturgia, de que o Saltério
não devia constituir senão o primeiro tijolo.
A ideia da reforma geral da Liturgia ia ganhando peso e mais
espaços, ganhando consistência no departamento histórico da Sagrada congregação
dos Ritos, o organismo mais capaz para o trabalho dessa natureza.
Em 28 de maio de 1948 foi nomeada a Comissão para a reforma
litúrgica, presidida pelo Cardeal Clemente Micara, Prefeito da Sagrada
Congregação para os Ritos. Essa comissão, com diversos membros liturgistas
respeitados e renomados, se dissolve apenas em 1960 com a instituição da Comissão
preparatória do Concilio. Essa Comissão gozava da confiança do Papa e se chamou
“Piana”, que revisou praticamente todos os livros litúrgicos, inclusive o
Ritual, que foi redigido e composto tipograficamente, mas não publicado porque
a Livraria Vaticana temia não conseguir publicá-lo para o acontecimento do Concilio.
O primeiro fruto da Comissão foi a restauração da Vigília
Pascal em 1951, que provocou uma explosão de alegria em toda a Igreja. Foi a
partir daí que a Liturgia enveredou decididamente pela estrada da pastoral. O
Concílio Vaticano foi iminentemente ecumênico e pastoral. É assim, nesse foco e
prisma, que devemos mergulhar na Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium.
Congresso internacional em Assis - Embrião pastoral da Sacrosanctum Concilium
Congresso internacional em Assis - Embrião pastoral da Sacrosanctum Concilium
18 de dezembro de 2019
No nosso espaço Memória Histórica - 50 anos do Concílio
Vaticano II, vamos continuar a falar sobre Liturgia.
A reforma litúrgica trazida pelo Concílio Vaticano II com a Sacrosanctum Concilium, é fruto também
do Movimento Litúrgico surgido bem antes, como já tratado em programas
anteriores. Em 1956, poucos anos antes de o Concílio ser convocado pelo Papa
João XXIII, realizou-se em Assis o primeiro Congresso Internacional de Pastoral
Litúrgica. Para esse Congresso, o Papa Pio XII fez um precioso discurso,
excelente complemento da anterior Encíclica sobre a música sagrada, colocando a
excelência e elevada significação da Liturgia católica, como símbolo da graça e
da pessoa de Cristo.
No programa desta quarta-feira, Padre Gerson Schmidt, que
tem nos acompanhado neste percurso dos documentos conciliares, nos fala sobre o
Congresso Internacional em Assis, embrião pastoral da Sacrosanctum Concilium:
Já falamos em nosso
resgate histórico que o Movimento Litúrgico começou a fervilhar antes do
Concílio Vaticano II. A Sacrosanctum
Concilium não caiu do céu, de uma hora pra outra. Houve várias iniciativas
anteriores, uma delas foi o primeiro Congresso Internacional de Liturgia que
aconteceu em Assis, na cidade onde viveu São Francisco, 3 anos antes da
convocação do Concílio Vaticano II. Aconteceu de 18 a 21 de setembro de 1956,
concluindo-se em Roma, com a audiência pontifícia no dia 22 de setembro.
Quem teria dito que depois desse Congresso Internacional,
que reivindicou mudanças na Liturgia, e que por meio das mesmas pessoas de
Assis, teriam encontrado plena realização justamente no esplendor do Concílio? [4].
O elemento novo foi a oficialidade resultante do Congresso a partir da
intervenção do Cardeal Gaetano Cicognani – Prefeito da Sagrada Congregação dos
Ritos, presidente do Congresso. Participaram desse Congresso, que anunciou uma
aurora resplandecente, 5 cardeais (um por língua) como vice-presidentes, 80 Bispos
e abades, e mais de 1400 sacerdotes provenientes do mundo inteiro. Foi um
verdadeiro embrião para a Sacrosanctum
Concilium, já sendo cozinhado poucos anos antes.
O foco principal do Congresso foi a pastoralidade da
Liturgia, ou seja, a Liturgia não simplesmente enquanto essência teológica, mas
aplicação pastoral. Desta forma se lançava a Liturgia como elemento
determinante na vida da Igreja. Para esse fim pastoral, objetivo principal da
renovação que se estava costurando, duas intervenções e conferências no
Congresso foram determinantes:
1. A primeira do Pe. André Jungmann: A Pastoral, chave da
História Litúrgica;
2. A segunda do Pe. Agostinho Bea: O valor Pastoral da
Palavra de Deus.
Os princípios expostos por esses dois conferencistas ainda
perduram na Sacrosanctum Concilium.
No Congresso de Assis dois pontos foram objeto de preocupação e polêmica: a
língua vernácula e a reforma do Ofício Divino, a Liturgia das Horas.
O Cardeal Cicognani, por motivos médicos, teve que adiantar
seu retorno a Roma, deixando a presidência ao Cardeal Lercaro. Não se sabia até
então os motivos da volta prematura do Cardeal presidente dos sagrados Ritos.
Embora houvesse controvérsias e até discussões sobre o uso da língua latina,
Pio XII, em Roma, no dia 22 de setembro, fez um belo discurso conclusivo com a
seguinte frase histórica:
“O movimento Litúrgico apareceu como um sinal das
disposições providenciais de Deus em relação ao tempo presente, como uma
passagem do Espírito Santo na Igreja” [5].
A reforma do Oficio foi tratada pelo Cardeal Giacomo Lercaro
por meio da aplaudidíssima conferência “A simplificação das rubricas e a
reforma do Breviário”. Houve sugestões na Liturgia das Horas para a
distribuição dos salmos, das leituras, dos hinos.
Essas indicações e ideias hoje concretizadas revelam como a
renovação proposta pelo Concílio teve seu germe embrionário e um longo período
de maturação, realizado na meditação e na oração por espíritos eleitos e
especialistas e, pouco a pouco, transmitida para todo o povo de Deus.
29 de dezembro de 2019
No nosso espaço Memória Histórica - 50 anos do Concílio
Vaticano II, damos continuidade aos nossos programas dedicados à Liturgia.
No programa passado, Padre Gerson Schmidt, que tem nos
acompanhado neste percurso de exposição dos documentos conciliares, nos trouxe
uma reflexão sobre o Congresso Internacional realizado em Assis, como embrião
pastoral da Sacrosanctum Concilium.
No programa de hoje, o sacerdote incardinado na Arquidiocese de Porto Alegre
aprofunda o discurso de Pio XII na conclusão do encontro. “Nos albores do
Concílio Vaticano II é o tema de sua reflexão”:
Em 1956, aconteceu um fato interessante, ou seja, o primeiro
Congresso Internacional de Pastoral Litúrgica, celebrado em Assis, que foi um
verdadeiro encontro de especialistas e troca de experiências pastorais. Tudo
isso vai ter sua culminância, em forma de compêndio, na reforma litúrgica do
Vaticano II. Para esse Congresso de 1956, Papa Pio XII fez um precioso discurso
conclusivo, excelente complemente da anterior Encíclica sobre a música sagrada,
colocando a excelência e elevada significação da liturgia católica, como
símbolo da graça e da pessoa de Cristo [6].
Embora houvesse controvérsias e até discussões sobre o uso
da língua latina, Pio XII, em Roma, no dia 22 de setembro, fez um belo discurso
conclusivo com a seguinte frase histórica: “O Movimento Litúrgico apareceu como
um sinal das disposições providenciais de Deus em relação ao tempo presente,
como uma passagem do Espírito Santo na Igreja”.
O Papa Pio XII na ocasião ainda disse muitas coisas
interessantes, para a sua época, falando assim, ainda antes do Concilio: “Se se
compara a situação atual do Movimento Litúrgico com o que já foi há trinta
anos, constata-se que alcançou um progresso inegável, tanto na extensão quanto
na profundidade. O interesse pela Liturgia, as realizações práticas e a
participação ativa dos fiéis conquistaram um desenvolvimento que seria difícil
de prever naquele momento”. Pio XII já falava da participação ativa dos fiéis,
tônica endossada pela Sacrosanctum Concilium.
Na mensagem enviada por Pio XII aos participantes, o Papa
falou que é no coração da Liturgia que se desenrola a celebração da Eucaristia,
sacrifício e banquete, dois adjetivos importantes aqui que resumem grandes
controvérsias até então discutidas amplamente. E falou da participação não
passiva dos fiéis: “Se a hierarquia comunica pela Liturgia a verdade e a graça
de Cristo, os fiéis, por sua vez, têm por dever de recebê-las, com toda a alma,
e transformá-las em valores vitais. Tudo que lhes é oferecido, as graças do
sacrifício do altar, dos sacramentos e dos sacramentais, que eles aceitem, não
de modo passivo, deixando apenas que sejam derramadas sobre si, mas colaborando
com toda a vontade e com toda força e, sobretudo, participando dos ofícios
litúrgicos ou ao menos seguindo o seu desenrolar com fervor”.
Também o Papa Pio XII já faz ponderações sobre o
tabernáculo, a capela do Santíssimo, como hoje entendemos, afirmando que o
altar é mais importante que o tabernáculo. Disse assim: “A estas considerações
devemos acrescentar algumas indicações sobre o tabernáculo. Assim como dissemos
acima: ‘O Senhor é de alguma forma maior que o altar e que o sacrifício’,
poderíamos dizer em seguida: ‘o tabernáculo, onde habita o Senhor que desceu no
meio do seu povo, é maior que o altar e que o sacrifício’? O altar é mais
importante que o tabernáculo, porque nele é oferecido o sacrifício do Senhor.
Sem dúvida o tabernáculo guarda o Sacramentum
permanens (Sacramento permanente), mas não é um altare permanens (altar permanente), pois o Senhor se oferece em
sacrifício apenas sobre o altar durante a celebração da Santa Missa, não depois
ou fora da Missa. No tabernáculo, por sua vez, ele está presente por todo o
tempo em que perdurarem as espécies consagradas, sem, no meio tempo,
oferecer-se de modo permanente”. Por isso a Sacrosactum
Concilium recolhe essa renovação litúrgica colocando o sacrário não mais no
centro da nave das igrejas, mas, nas igrejas novas e novas construções dos
templos, num espaço lateral especial, para justamente primar pelo altar, o
principal lugar do sacrifício eucarístico, centro de todo o Mistério Pascal,
celebrado em cada Missa.
[1] BUGNINI, A. “Movimento
liturgico o pastorale litúrgica”, in: A
Reforma Litúrgica (1948-1975), trad. Paulo F. Valério, 2ª ed., Paulus, Paulinas
e Loyola, SP, 2018, p. 39.
[2] Motu Proprio Tra le
Sollecitiduni, 22 nov. 1902.
[3] Annibale Bugnini, A
Reforma Litúrgica, p.39.
[4] Annibale Bugnini, A
Reforma Litúrgica, p. 43.
[5] La restaurazione
litúrgica nell’opera di Pio XII. Atti del primo Congresso Internacionale di
pastorale litúrgica. Assisi-Roma,18-22 settembre 1956, Genova, Centro de
Azione litúrgica, 1957,35-48. in: Annibale
Bugnini, A Reforma Litúrgica, p.44.
[6] FRANCISCO J. MONTALBAN et all. História de la
Iglesia Catolica, IV: Edad Moderna,
Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1958, p. 843.
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