Após publicar aqui em nosso blog os primeiros três capítulos da Carta Apostólica Dies Domini do Papa João Paulo II sobre a santificação do domingo, nesta postagem propomos os capítulos 4 e 5, que abordam os fundamentos antropológicos (dia do homem) e escatológicos (dia dos dias) do domingo, além da conclusão da carta:
CARTA APOSTÓLICA DIES
DOMINI
SOBRE
A SANTIFICAÇÃO DO DOMINGO
CAPÍTULO IV: DIES HOMINIS
O domingo: dia
de alegria, repouso e solidariedade
A «alegria plena» de Cristo
55. «Bendito seja
Aquele que elevou o grande dia do Domingo acima de todos os dias. Os céus e a
terra, os anjos e os homens abandonam-se à alegria» [99]. Estas loas da Liturgia
maronita testemunham bem as intensas aclamações de alegria que sempre
caracterizaram o domingo, nas Liturgias ocidentais e orientais. Historicamente,
ainda antes de ser vivido como dia de repouso - aliás não previsto então no
calendário civil - os cristãos viveram o dia semanal do Senhor ressuscitado sobretudo
como dia de alegria. «Que todos estejam alegres, no primeiro dia da semana»:
lê-se na Didascália dos Apóstolos [100]. A manifestação da
alegria era visível também no uso litúrgico, mediante a escolha de gestos
apropriados [101]. S. Agostinho, fazendo-se intérprete da consciência
geral da Igreja, põe evidência tal caráter da Páscoa semanal: «Omitem-se os
jejuns e reza-se de pé como sinal da Ressurreição; também por isso se canta
todos os domingos o aleluia» [102].
56. Para além das
diversas expressões rituais que podem variar com o tempo segundo a disciplina
eclesial, resta o fato de o domingo, eco semanal da primeira experiência do
Ressuscitado, não poder deixar de conservar o tom da alegria com que os discípulos
acolheram o Mestre: «Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor» (Jo 20,20).
Cumpria-se neles, tal como se há de atuar em todas as gerações cristãs, aquilo
que Jesus disse antes da Paixão: «Vós estareis tristes, mas a vossa tristeza se
converterá em alegria» (Jo 16,20). Porventura não tinha Ele mesmo
rezado para que os discípulos tivessem «a plenitude da sua alegria» (cf. Jo 17,13)?
O caráter festivo da Eucaristia dominical exprime a alegria que Cristo
transmite à sua Igreja através do dom do Espírito; a alegria é precisamente um
dos frutos do Espírito Santo (cf. Rm 14,17; Gl 5,22).
57. Assim, para
apreender completamente o sentido do domingo, é preciso descobrir esta dimensão
da nossa existência de crentes. É certo que a alegria cristã deve caracterizar
toda a vida, e não só um dia da semana. Mas o domingo, em virtude do seu
significado de dia do Senhor ressuscitado, no qual se celebra a
obra divina da criação e da «nova criação», é, a título especial, um dia de
alegria, mais ainda um dia propício para educar à alegria, descobrindo
novamente os seus traços autênticos e as suas raízes profundas. Na realidade, a
alegria não deve ser confundida com fúteis sentimentos de saciedade e prazer,
que inebriam a sensibilidade e a afetividade por breves momentos, mas depois
deixam o coração na insatisfação e talvez mesmo na amargura. Do ponto de vista
cristão, ela é algo de muito mais duradouro e consolador, conseguindo mesmo,
como o comprovam os santos [103], resistir à noite escura da dor; de certo
modo, é uma «virtude» a ser cultivada.
58. Não existe
qualquer oposição entre a alegria cristã e as verdadeiras alegrias humanas.
Pelo contrário, estas ficam enaltecidas e encontram o seu fundamento último
precisamente na alegria de Cristo glorificado (cf. At 2,24-31),
imagem perfeita e revelação do homem segundo o desígnio de Deus. Na sua
Exortação Apostólica sobre a alegria cristã, o meu venerado predecessor Paulo
VI escreveu que, «por essência, a alegria cristã é participação espiritual na
alegria insondável, conjuntamente divina e humana, que está no coração de Jesus
Cristo glorificado» [104]. E o referido Sumo Pontífice concluía a sua
Exortação pedindo que, no dia do Senhor, a Igreja testemunhasse vigorosamente a
alegria experimentada pelos Apóstolos, quando viram o Senhor na tarde do dia de
Páscoa. Por isso, convidava os Pastores a insistirem «na fidelidade dos batizados
à celebração, com alegria, da Eucaristia dominical. Como poderiam eles, de fato,
negligenciar este encontro, este banquete que Cristo nos prepara com o seu
amor? Que a participação em tal celebração seja, ao mesmo tempo, digna e
festiva! É Cristo, crucificado e glorificado, que passa entre os seus
discípulos para conduzi-los todos juntos, consigo, na renovação da sua
Ressurreição. É o ápice, aqui neste mundo, da Aliança de amor entre Deus e o
seu povo: sinal e fonte de alegria cristã, preparação para a Festa eterna» [105].
Nesta perspectiva de fé, o domingo cristão é verdadeiramente um «fazer festa»,
um dia dado por Deus ao homem para o seu pleno crescimento humano e espiritual.
O cumprimento do sábado
59. Este aspecto do
domingo cristão põe especialmente em evidência a sua dimensão de cumprimento do
sábado veterotestamentário. No dia do Senhor, que o Antigo Testamento - como
foi dito - liga com a obra da criação (cf. Gn 2,1-3; Ex 20,8-11)
e do êxodo (cf. Dt 5,12-15), o cristão é chamado a anunciar a
nova criação e a nova aliança, realizadas no Mistério Pascal de Cristo. A
celebração da criação, longe de ser anulada, é aprofundada em perspectiva
cristocêntrica, ou seja, à luz do desígnio divino de «recapitular em Cristo
todas as coisas que há no Céu e na Terra» (Ef 1,10). E ao
memorial da libertação realizada no êxodo, é-lhe conferido também sentido
pleno, tornando-se memorial da redenção universal operada por Cristo morto e
ressuscitado. Portanto, mais do que uma «substituição» do sábado, o domingo
constitui a sua perfeita realização e, de certa forma, o seu desenvolvimento e
plena expressão no caminho da história da salvação, que tem o seu ponto
culminante em Cristo.
60. Nesta perspectiva,
a teologia bíblica do «shabbat» pode
ser plenamente recuperada, sem causar dano ao caráter cristão do domingo. Ela
leva-nos, sempre de novo e com uma maravilha cada vez maior, àquele início
misterioso, quando a eterna Palavra de Deus, por livre decisão de amor, tirou
do nada o mundo. Chancela da obra criadora foi a bênção e consagração do dia em
que Deus repousou de «toda a obra da criação» (Gn 2,3). Deste dia
do repouso de Deus, brota o sentido do tempo, que assume, na sucessão das
semanas, não apenas um ritmo cronológico, mas, por assim dizer, um respiro
teológico. O constante retorno do shabbat salva efetivamente o
tempo do risco de fechar-se sobre si mesmo, para que permaneça aberto ao
horizonte da eternidade, através do acolhimento de Deus e dos seus kairoì ou
seja, dos tempos da sua graça e das suas iniciativas de salvação.
61. O shabbat,
o sétimo dia abençoado e consagrado por Deus, ao mesmo tempo em que encerra
toda a obra da criação, está em ligação imediata com a obra do sexto dia,
quando Deus fez o homem «à sua imagem e semelhança» (cf. Gn 1,26).
Esta relação mais direta entre o «dia de Deus» e o «dia do homem» não passou
despercebida aos Padres, na sua meditação sobre o relato bíblico da criação. A
este propósito, S. Ambrósio diz: «Demos, pois, graças ao Senhor nosso Deus, que
fez uma obra onde Ele pudesse encontrar descanso. Fez o céu, mas não leio que
aí tenha repousado; fez as estrelas, a lua, o sol, e nem aqui leio que tenha
descansado neles. Mas, ao contrário, leio que Ele fez o homem e que então Se
repousou, tendo nele alguém a quem podia perdoar os pecados» [106]. Assim,
o «dia de Deus» estará sempre diretamente relacionado com o «dia do homem». Quando
o mandamento de Deus diz: «Recorda-te do dia de sábado, para o santificares» (Ex 20,8),
a pausa prescrita para honrar o dia a Ele dedicado não constitui de modo algum
uma imposição gravosa para o homem, mas antes uma ajuda, para que se
consciencialize da sua dependência vital e libertadora do Criador e,
simultaneamente, da vocação para colaborar na sua obra e acolher a sua graça.
Deste modo, honrando o «repouso» de Deus, o homem encontra-se plenamente a si
próprio, e assim o dia do Senhor fica profundamente marcado pela bênção divina
(cf. Gn 2,3) e, graças a ela, dir-se-ia dotado, como acontece
com os animais e com os homens (cf. Gn 1,22.28), de uma
espécie de «fecundidade». Esta exprime-se, não só no constante acompanhamento
do ritmo do tempo, mas sobretudo no reanimar e, de certo modo, «multiplicar» o
próprio tempo, aumentando no homem, com a lembrança do Deus vivo, a alegria de
viver e o desejo de promover e dar a vida.
62. Assim, se é
verdade que, para o cristão, decaíram as modalidades do sábado judaico, porque
superadas pelo «cumprimento» dominical, ele deverá lembrar-se que permanecem
válidos os motivos de base que obrigam à santificação do «dia do Senhor»,
fixados pela solenidade do Decálogo, mas que hão de ser interpretados à luz da
teologia e da espiritualidade do domingo: «Guardarás o dia de Sábado, para o
santificares, como te ordenou o Senhor, teu Deus. Trabalharás durante seis
dias, e neles farás todas as tuas obras; mas, no sétimo dia, que é o sábado do
Senhor, teu Deus, não farás trabalho algum: tu, o teu filho ou a tua filha, o
teu escravo ou a tua escrava, o teu boi, o teu jumento ou qualquer outro dos
teus animais; nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas, para que o teu
servo e a tua serva descansem como tu. Recorda-te de que foste escravo no país
do Egito, donde o Senhor, teu Deus, te fez sair com mão forte e braço poderoso.
É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de Sábado» (Dt 5,12-15).
Aqui a observância do sábado aparece intimamente ligada à obra de libertação
realizada por Deus em favor do seu povo.
63. Cristo veio para
realizar um novo «êxodo», para dar a liberdade aos oprimidos. Ele realizou
muitas curas ao sábado (cf. Mt 12,9-14 e paralelos), certamente
não para violar o dia do Senhor, mas para realizar o seu pleno significado: «O
sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado» (Mc 2,27).
Opondo-Se à interpretação demasiado legalista de alguns dos seus contemporâneos
e desenvolvendo o sentido autêntico do sábado bíblico, Jesus, «Senhor do sábado»
(Mc 2,28), devolve o caráter libertador à observância deste dia,
instituído simultaneamente para a defesa dos direitos de Deus e dos homens.
Compreende-se, assim, porque era justo que os cristãos, anunciadores da
libertação realizada pelo sangue de Cristo, se sentissem autorizados a transpor
o significado do sábado para o dia da ressurreição. De fato, a Páscoa de Cristo
libertou o homem duma escravidão muito mais radical do que aquela que grava
sobre um povo oprimido: a escravidão do pecado, que afasta o homem de Deus, que
o afasta também de si mesmo e dos outros, introduzindo continuamente na
história novos gérmens de maldade e violência.
O dia do descanso
64. Durante alguns
séculos, os cristãos viveram o domingo apenas como dia do culto, sem poderem
juntar-lhe também o significado específico de descanso sabático. Só no século
IV é que a lei civil do Império Romano reconheceu o ritmo semanal, fazendo com
que, no «dia do sol», os juízes, os habitantes das cidades e as corporações dos
diversos ofícios parassem de trabalhar [107]. Grande contentamento
sentiram os cristãos ao verem assim afastados os obstáculos que, até então,
tinham tornado por vezes heroica a observância do dia do Senhor. Podiam agora
dedicar-se à oração comum, sem qualquer impedimento [108].
Por isso, seria um
erro ver a legislação que defende o ritmo semanal como uma mera circunstância
histórica, sem valor para a Igreja ou que esta poderia abandonar. Os Concílios
não cessaram de manter, mesmo depois do fim do Império, as disposições
relativas ao descanso festivo. Mesmo nos países, onde os cristãos são um
pequeno número e os dias festivos do calendário não coincidem com o domingo,
este permanece sempre o dia do Senhor, o dia em que os fiéis se reúnem para a
assembleia eucarística. Mas isto se verifica à custa de sacrifícios não
pequenos. Para os cristãos, é anormal que o domingo, dia de festa e de alegria,
não seja também dia de descanso, tornando-se para eles difícil «santificar» o
domingo, já que não dispõem de tempo livre suficiente.
65. Por outro lado, a
ligação entre o dia do Senhor e o dia do descanso na sociedade civil tem uma
importância e um significado que ultrapassam o horizonte propriamente cristão.
De fato, a alternância de trabalho e descanso, inscrita na natureza humana, foi
querida pelo próprio Deus, como se deduz da perícope da criação no livro do Gênesis
(cf. Gn 2,2-3; Ex 20,8-11):
o repouso é coisa «sagrada», constituindo a condição necessária para o homem se
subtrair ao ciclo, por vezes excessivamente absorvente, dos afazeres terrenos e
retomar consciência de que tudo é obra de Deus. O poder sobre a criação, que
Deus concede ao homem, é tão prodigioso que este corre o risco de esquecer-se
que Deus é o Criador, de quem tudo depende. Este reconhecimento é ainda mais
urgente na nossa época, porque a ciência e a técnica aumentaram incrivelmente o
poder que o homem exerce através do seu trabalho.
66. Por último,
importa não perder de vista que o trabalho é, ainda no nosso tempo, uma dura
escravidão para muitos, seja por causa das condições miseráveis em que é efetuado
e dos horários impostos, especialmente nas regiões mais pobres do mundo, seja
por subsistirem, mesmo nas sociedades economicamente mais desenvolvidas,
demasiados casos de injustiça e exploração do homem pelo homem. Quando a
Igreja, ao longo dos séculos, legislou sobre o descanso dominical [109],
teve em consideração sobretudo o trabalho dos servos e dos operários,
certamente não porque este fosse um trabalho menos digno relativamente às
exigências espirituais da prática dominical, mas sobretudo porque mais carente
duma regulamentação que aliviasse o seu peso e permitisse a todos santificarem
o dia do Senhor. Nesta linha, o meu venerado predecessor Leão XIII, na Encíclica Rerum
novarum apontava o descanso festivo como um direito do trabalhador,
que o Estado deve garantir [110].
E, no contexto
histórico atual, permanece a obrigação de batalhar para que todos possam
conhecer a liberdade, o descanso e o relaxamento necessários à sua dignidade de
homens, com as conexas exigências religiosas, familiares, culturais,
interpessoais, que dificilmente podem ser satisfeitas, se não ficar
salvaguardado pelo menos um dia semanal para gozarem juntos da
possibilidade de repousar e fazer festa. Obviamente, este direito do
trabalhador ao descanso pressupõe o seu direito ao trabalho, pelo que, ao refletirmos
sobre esta problemática ligada à concepção cristã do domingo, não podemos
deixar de recordar, com sentida solidariedade, a situação penosa de tantos
homens e mulheres que, por falta dum emprego, se veem constrangidos à
inatividade mesmo nos dias laborativos.
67. Graças ao descanso
dominical, as preocupações e afazeres quotidianos podem reencontrar a sua justa
dimensão: as coisas materiais, pelas quais nos afadigamos, dão lugar aos
valores do espírito; as pessoas com quem vivemos, recuperam, no encontro e
diálogo mais tranquilo, a sua verdadeira fisionomia. As próprias belezas da
natureza - frequentemente malbaratadas por uma lógica de domínio, que se volta
contra o homem - podem ser profundamente descobertas e apreciadas. Assim o
domingo, dia de paz do homem com Deus, consigo mesmo e com os seus semelhantes,
torna-se também ocasião em que o homem é convidado a lançar um olhar regenerado
sobre as maravilhas da natureza, deixando-se envolver por aquela estupenda e
misteriosa harmonia que, como diz S. Ambrósio, por uma «lei inviolável de
concórdia e de amor», une os diversos elementos do universo num «vínculo de
união e de paz» [111]. Então, o homem torna-se mais consciente, segundo as
palavras do Apóstolo, de que «tudo o que Deus criou é bom, e não é para desprezar,
contanto que se tome em ação de graças, pois é santificado pela palavra de Deus
e pela oração» (1Tm 4,4-5). Portanto, se depois de seis dias de
trabalho - para muitos, na verdade, reduzidos já a cinco - o homem procura um
tempo para relaxamento e para cuidar melhor dos outros aspectos da própria
vida, isso corresponde a uma real necessidade, em plena harmonia com a perspectiva
da mensagem evangélica. Consequentemente, o crente é chamado a satisfazer esta
exigência, harmonizando-a com as expressões da sua fé pessoal e comunitária,
manifestada na celebração e santificação do dia do Senhor.
Por isso, é natural
que os cristãos se esforcem para que, também nas circunstâncias específicas do
nosso tempo, a legislação civil tenha em conta o seu dever de santificar o
domingo. Em todo o caso, têm a obrigação de consciência de organizar o descanso
dominical de forma que lhes seja possível participar na Eucaristia, abstendo-se
dos trabalhos e negócios incompatíveis com a santificação do dia do Senhor, com
a sua alegria própria e com o necessário repouso do espírito e do corpo [112].
68. Uma vez que o
descanso, para não se tornar vazio nem fonte de tédio, deve gerar
enriquecimento espiritual, maior liberdade, possibilidade de contemplação e
comunhão fraterna, os fiéis hão de escolher, de entre os meios da cultura
humana e as diversões que a sociedade proporciona, aqueles que estão mais de
acordo com uma vida segundo os preceitos do Evangelho. Nesta perspectiva, o
descanso dominical e festivo adquire uma dimensão «profética», defendendo não
só o primado absoluto de Deus, mas também o primado e a dignidade da pessoa
sobre as exigências da vida social e econômica, e antecipando de certo modo os
«novos céus» e a «nova terra», onde a libertação da escravidão das necessidades
será definitiva e total. Em resumo, o dia do Senhor, na sua forma mais
autêntica, torna-se também o dia do homem.
Dia de solidariedade
69. O domingo deve dar
oportunidade aos fiéis para se dedicarem também às atividades de misericórdia,
caridade e apostolado. A participação interior na alegria de Cristo
ressuscitado implica a partilha total do amor que pulsa no seu coração: não há
alegria sem amor! O próprio Jesus no-lo explica, ao pôr em relação o
«mandamento novo» com o dom da alegria: «Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor, do mesmo modo que Eu tenho guardado os mandamentos
de meu Pai, e permaneço no seu amor. Digo-vos isto para que a minha alegria
esteja em vós, e a vossa alegria seja completa. O meu mandamento é este: Que
vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15,10-12).
Assim, a Eucaristia
dominical não só não desvia dos deveres de caridade, mas, pelo contrário,
estimula os fiéis «a tudo o que seja obra de caridade, de piedade e apostolado,
onde os cristãos possam mostrar que são a luz do mundo, embora não sejam deste
mundo, e que glorificam o Pai diante dos homens» [113].
70. De fato, a reunião
dominical constituiu para os cristãos, desde os tempos apostólicos, um momento
de partilha fraterna com os mais pobres. «No primeiro dia da semana, cada um de
vós ponha de parte, em sua casa, o que tiver podido poupar» (1Cor 16,2).
Trata-se aqui da coleta organizada por S. Paulo em favor das Igrejas pobres da
Judeia: na Eucaristia dominical, o coração crente cresce até assumir as
dimensões da Igreja. Mas, é preciso compreender profundamente o convite do
Apóstolo, que, longe de promover uma mentalidade mesquinha que se contente do
«óbolo», faz apelo sobretudo a uma exigente cultura da solidariedade,
concretizada tanto entre os próprios membros da comunidade como em favor da
sociedade inteira [114]. Há uma grande necessidade de
escutar de novo as severas advertências que ele faz à comunidade de Corinto,
culpada de ter humilhado os pobres na ágape fraterna que acompanhava a «ceia do
Senhor»: «Deste modo, quando vos reunis, não o fazeis para comer a ceia do
Senhor, pois cada um de vós se apressa a tomar a sua própria ceia; e, enquanto
uns passam fome, outros se fartam. Porventura não tendes casas para comer e
beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada
têm?» (1Cor 11,20-22). E não é menos vigorosa esta palavra de S.
Tiago: «Porque, se entrar na vossa assembleia um homem com anel de ouro no dedo
e com vestidos preciosos e entrar também um pobre sordidamente vestido, e
atenderdes ao que está magnificamente vestido, dizendo-lhe: “Senta-te tu aqui,
neste lugar de honra”, e dizendo ao pobre: “Fica de pé aí”, ou: “Senta-te
abaixo de meu estrado”, não é verdade que fazeis distinção entre vós mesmos e
que sois juízes de pensamentos iníquos?» (2,2-4).
71. Estas indicações
dos Apóstolos foram solicitamente seguidas logo desde os primeiros séculos, e
suscitaram apelos vigorosos na pregação dos Padres da Igreja. Aos ricos que
presumiam ter satisfeito suas obrigações religiosas frequentando a igreja mas
sem partilharem os seus bens com os pobres ou mesmo oprimindo-os, S. Ambrósio
dirige estas palavras ardentes: «Ouves, ó rico, o que diz o Senhor Deus!? E tu
vens à igreja, não para dar qualquer coisa a quem é pobre, mas para te
aproveitares» [115]. Igualmente exigente é S. João Crisóstomo: «Queres
honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros,
isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com
vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que
disse: “Isto é o meu Corpo”, confirmando o fato com a sua palavra, também
afirmou: “Vistes-Me com fome e não me destes de comer”, e ainda: “Na medida em
que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes”.
(...) De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se
Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e
depois ornamenta a sua mesa com o que sobra» [116].
São palavras que
lembram, eficazmente, à comunidade cristã o dever de fazer da Eucaristia o
lugar onde a fraternidade se torne solidariedade concreta, onde os últimos
sejam os primeiros na consideração e na estima dos irmãos, onde o próprio
Cristo, através da doação generosa dos ricos aos pobres, possa de algum modo
continuar ao longo dos tempos o milagre da multiplicação dos pães [117].
72. A Eucaristia é
acontecimento e projeto de fraternidade. Da Missa dominical parte uma onda de
caridade destinada a estender-se a toda a vida dos fiéis, começando por animar
o próprio modo de viver o resto do domingo. Se este é dia de alegria, é preciso
que o cristão mostre, com as suas atitudes concretas, que não se pode ser feliz
«sozinho». Ele olha ao seu redor, para individuar as pessoas que possam ter
necessidade da sua solidariedade. Pode suceder que, entre os vizinhos ou no
âmbito das suas relações, hajam doentes, idosos, crianças, imigrantes, que,
precisamente ao domingo, sentem ainda mais dura a sua solidão, a sua
necessidade, a sua condição dolorosa. É certo que a atenção por eles não pode
limitar-se a uma esporádica iniciativa dominical. Mas, suposta esta atitude de
compromisso mais global, porque não dar ao dia do Senhor uma tonalidade maior
de partilha, pondo em ação toda a capacidade inventiva da caridade cristã?
Sentar à própria mesa alguma pessoa que viva sozinha, visitar os doentes, levar
de comer a qualquer família necessitada, dedicar algumas horas a iniciativas
específicas de voluntariado e de solidariedade, seria, sem dúvida, um modo de
transferir para a vida a caridade de Cristo recebida na Mesa Eucarística.
73. Vivido assim, não
só a Eucaristia dominical, mas o domingo inteiro torna-se uma grande escola de
caridade, de justiça e de paz. A presença do Ressuscitado no meio dos seus
torna-se projeto de solidariedade, urgência de renovação interior, impulso para
alterar as estruturas de pecado onde se encontram enredados os indivíduos, as
comunidades e às vezes povos inteiros. Longe de ser evasão, o domingo cristão é
antes «profecia» inscrita no tempo, profecia que obriga os crentes a seguir os
rastos d'Aquele que veio «para anunciar a Boa Nova aos pobres, (...) para
proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; para
mandar em liberdade os oprimidos, e proclamar um ano de graça do Senhor» (Lc 4,18-19).
Frequentando a escola d'Ele, na comemoração dominical da Páscoa, e recordando a
sua promessa: «Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou» (Jo 14,27), o
crente torna-se por sua vez agente de paz.
CAPÍTULO V: DIES DIERUM
O domingo:
festa primordial, reveladora do sentido do tempo
Cristo, Alfa e Ômega do tempo
74. «No cristianismo, o tempo tem uma importância fundamental. Dentro da
sua dimensão, foi criado o mundo; no seu âmbito se desenrola a história da
salvação, que tem o seu ponto culminante na “plenitude do tempo” da Encarnação
e a sua meta no regresso glorioso do Filho de Deus no fim dos tempos. Em Jesus
Cristo, Verbo encarnado, o tempo torna-se uma dimensão de Deus, que em Si mesmo
é eterno» [118].
À luz do Novo Testamento, os anos da existência terrena de Cristo
constituem realmente o centro do tempo. Este centro tem o seu ápice na Ressurreição.
Com efeito, se é verdade que Ele é Deus feito homem desde o primeiro instante
da concepção no seio da Virgem Santa, é verdade também que somente com a Ressurreição
é que a sua humanidade foi totalmente transfigurada e glorificada, revelando
assim plenamente a sua identidade e glória divina. No discurso feito na
sinagoga de Antioquia da Pisídia (cf. At 13,33), Paulo aplica
precisamente à Ressurreição de Cristo a afirmação do Salmo 2: «Tu és meu Filho,
Eu hoje Te gerei» (v. 7). Por isso mesmo, na celebração da Vigília Pascal, a
Igreja apresenta Cristo ressuscitado como «princípio e fim, alfa e ômega».
Estas palavras, pronunciadas pelo celebrante na preparação do círio pascal que
nele tem gravado o número do respectivo ano, põem em evidência que «Cristo é o
Senhor do tempo; é o seu princípio e o seu cumprimento; cada ano, cada dia, e
cada momento ficam abraçados pela sua Encarnação e Ressurreição,
reencontrando-se assim na “plenitude do tempo”» [119].
75. Sendo o domingo a Páscoa semanal que evoca e torna presente o dia em
que Cristo ressuscitou dos mortos, ele é também o dia que revela o sentido do
tempo. Não tem qualquer afinidade com os ciclos cósmicos que, segundo a
religião natural e a cultura humana, poderiam ritmar o tempo, fazendo crer
talvez ao mito do eterno retorno. O domingo cristão é diverso! Nascendo da
Ressurreição, ele sulca os tempos do homem, os meses, os anos, os séculos como
uma seta lançada que os atravessa, orientando-os para a meta da segunda vinda
de Cristo. O domingo prefigura o dia final, o da parusia, já
antecipada de algum modo pela glória de Cristo no acontecimento da
Ressurreição.
De fato, tudo aquilo que suceder até ao fim do mundo será apenas uma
expansão e explicitação do que aconteceu no dia em que o corpo martirizado do
Crucificado ressuscitou pela força do Espírito e se tornou, por sua vez, a
fonte do Espírito para a humanidade. Por isso, o cristão sabe que não deve
esperar outro tempo de salvação, visto que o mundo, qualquer que seja a sua
duração cronológica, já vive no último tempo. Não só a Igreja, mas
o próprio universo e a história são continuamente dominados e guiados por
Cristo glorificado. É esta energia de vida que impele a criação - esta «tem
gemido e sofrido as dores do parto, até ao presente» (Rm 8,22) -
para a meta do seu pleno resgate. Deste caminho, o homem pode ter apenas uma
vaga percepção; mas os cristãos possuem a chave de interpretação e a certeza
dele, constituindo a santificação do domingo um testemunho significativo que
eles são chamados a dar, para que os tempos do homem sejam sempre sustentados
pela esperança.
O domingo no ano litúrgico
76. Se o dia do Senhor, com o seu ritmo semanal, está radicado na
tradição mais antiga da Igreja e é de importância vital para o cristão, muito
cedo também começou a afirmar-se outro ritmo: o ciclo anual. Na realidade, é
próprio da psicologia humana celebrar os aniversários, associando à repetição
das datas e das estações a lembrança de acontecimentos passados. E se, para
além disso, se trata de fatos decisivos para a vida dum povo, é normal que a
sua ocorrência gere um clima de festa que vem quebrar a monotonia dos dias.
Ora, os principais acontecimentos de salvação sobre os quais se
fundamenta a vida da Igreja estiveram, por desígnio de Deus, intimamente ligados
com festas anuais dos judeus - a Páscoa e o Pentecostes - e nelas foram
prefigurados profeticamente. A partir do século segundo, a celebração feita
pelos cristãos da Páscoa anual, juntando-se à celebração da Páscoa semanal,
permitiu dar maior amplitude à meditação do mistério de Cristo morto e
ressuscitado. Precedida por um jejum que a prepara, celebrada durante uma longa
vigília, prolongada nos cinquenta dias que vão até ao Pentecostes, a festa da
Páscoa - «a solenidade das solenidades» - tornou-se o dia por excelência da
iniciação dos catecúmenos. Com efeito, se estes, pelo Batismo, morrem para o
pecado e ressuscitam para uma vida nova, é porque Cristo «foi entregue por
causa das nossas faltas e ressuscitado para nossa justificação» (Rm 4,25;
cf. 6,3-11). Intimamente unida com o Mistério Pascal, adquire relevo especial a
solenidade de Pentecostes, na qual se celebra a vinda do Espírito Santo sobre
os Apóstolos, reunidos com Maria, e o início da missão ao encontro de todos os
povos [120].
77. A mesma lógica comemorativa presidiu à estruturação de todo o ano
litúrgico. Como recorda o Concílio Vaticano II, a Igreja quis distribuir «todo
o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão,
ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor. Com esta
recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas
das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de torná-los como que presentes
em todo o tempo, para que os fiéis, em contato com eles, se encham de graça» [121].
A celebração mais solene depois da Páscoa e do Pentecostes é, sem
dúvida, o Natal do Senhor, quando os cristãos meditam o mistério da Encarnação
e contemplam o Verbo de Deus que Se digna assumir a nossa humanidade para nos
tornar participantes da sua divindade.
78. De igual modo, «na celebração deste ciclo anual dos mistérios de
Cristo, a santa Igreja venera com especial amor, porque indissoluvelmente unida
à obra de salvação do seu Filho, a bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus» [122]. Da mesma forma, introduzindo no ciclo anual as
memórias dos mártires e de outros santos, por ocasião do seu aniversário, a
Igreja «proclama o Mistério Pascal realizado na paixão e glorificação deles com
Cristo» [123]. A recordação dos santos, se celebrada com o espírito
autêntico da Liturgia, não obscura a centralidade de Cristo, antes pelo
contrário exalta-a, mostrando a força da sua redenção. Como canta S. Paulino de
Nola, «tudo passa, mas a glória dos santos perdura em Cristo, que tudo renova, enquanto
Ele permanece o mesmo» [124]. Esta relação intrínseca da glória dos santos
com a de Cristo está inscrita no próprio estatuto do ano litúrgico e encontra a
sua expressão mais eloquente precisamente no caráter fundamental e dominante do
domingo como dia do Senhor. Seguindo os tempos do ano litúrgico com a
observância do domingo que o ritma inteiramente, o compromisso eclesial e
espiritual do cristão radica-se profundamente em Cristo, em quem encontra a sua
razão de ser e de quem recebe alimento e estímulo.
79. Deste modo, o domingo constitui o modelo natural para se compreender
e celebrar aquelas solenidades do ano litúrgico, cujo valor espiritual para a
existência cristã é tão grande que a Igreja decidiu sublinhar a sua
importância, impondo aos fiéis a obrigação de participar na Missa e observar o
descanso, mesmo quando coincidem em dia de semana [125]. O número destas
festas foi variando ao longo das diferentes épocas, tendo em conta as condições
sociais e econômicas, o arraigamento delas na tradição, e ainda o apoio da
legislação civil [126].
O ordenamento canônico-litúrgico atual prevê a possibilidade de cada
Conferência Episcopal, em virtude de circunstâncias próprias do seu país,
reduzir a lista dos dias de preceito. Uma eventual decisão nesse sentido,
porém, precisa ser confirmada por uma aprovação especial da Sé Apostólica [127],
e, se fosse o caso da celebração dum mistério do Senhor, como a Epifania, a
Ascensão ou a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, tal celebração deve
passar para o domingo seguinte, segundo as normas litúrgicas, para que os fiéis
não sejam privados da meditação do mistério [128]. Os Pastores procurarão
diligentemente encorajar os fiéis a participarem na Missa também nas festas de
certa importância que caiam durante a semana [129].
80. Merecem uma reflexão pastoral específica aquelas situações,
frequentes, em que tradições populares e culturais típicas dum ambiente ameaçam
invadir a celebração dos domingos e outras festas litúrgicas, incorporando no
espírito da fé cristã autêntica elementos que lhe são alheios e poderiam
desfigurá-la. Nestes casos, importa pôr as coisas claras através da catequese e
de oportunas iniciativas pastorais, rejeitando tudo o que for incompatível com
o Evangelho de Cristo. Porém, é preciso não esquecer que muitas vezes tais
tradições - e o mesmo vale, analogamente, para as novas propostas culturais da
sociedade civil - possuem valores que se harmonizam, sem dificuldade, com as
exigências da fé. Compete aos Pastores efetuar um discernimento que salve os
valores presentes na cultura dum determinado contexto social e, sobretudo, na
religiosidade popular, de forma que a celebração litúrgica, sobretudo a dos
domingos e dias festivos, não fique prejudicada, mas antes seja valorizada com
eles [130].
CONCLUSÃO
81. Verdadeiramente grande é a riqueza espiritual e pastoral do domingo,
tal como a tradição no-la confiou. Vista na totalidade dos seus significados e
implicações, constitui, de algum modo, uma síntese da vida cristã e uma
condição necessária para bem vivê-la. Compreende-se, assim, por que razão a
Igreja tenha particularmente a peito a observância do dia do Senhor,
permanecendo ela uma verdadeira e própria obrigação no âmbito da disciplina
eclesial. Mas, tal observância, antes ainda de ser sentida como preceito, deve
ser vista como uma exigência inscrita profundamente na existência cristã. É de
importância verdadeiramente capital que cada fiel se convença de que não pode
viver a sua fé, na plena participação da vida da comunidade cristã, sem tomar parte
regularmente na assembleia eucarística dominical. Se se realiza na Eucaristia
aquela plenitude de culto que os homens devem a Deus e que não tem comparação
com qualquer outra experiência religiosa, uma expressão particularmente eficaz
disso verifica-se precisamente quando, ao domingo, se congrega toda a
comunidade, obedecendo à voz do Ressuscitado que a convoca para lhe dar a luz
da sua Palavra e o alimento do seu Corpo, como fonte sacramental perene de
redenção. A graça, que dimana dessa fonte, renova os homens, a vida, a
história.
82. É com esta intensa convicção de fé, acompanhada pela consciência do
patrimônio de valores, mesmo humanos, presentes na prática dominical, que,
hoje, os cristãos devem olhar as solicitações de uma cultura que proveitosamente
assumiu as exigências de repouso e tempo livre, mas vive-as amiúde de modo
superficial e, às vezes, é seduzida por formas de divertimento que são
moralmente discutíveis. O cristão condivide certamente com os outros homens o
gozo do dia de descanso semanal; mas, ao mesmo tempo, tem viva consciência da
novidade e originalidade do domingo, dia em que ele se sente chamado a celebrar
a sua salvação e a da humanidade inteira. Se o domingo é dia de alegria e
descanso, isso resulta precisamente do fato de ser o «dia do Senhor», o dia do
Senhor ressuscitado.
83. Sentido e vivido assim, o domingo torna-se de algum modo a alma dos
outros dias, como o supõe uma reflexão de Orígenes, segundo a qual o cristão
perfeito «vive sempre no dia do Senhor, celebra sempre o domingo» [131].
Este é uma autêntica escola, um itinerário permanente de pedagogia eclesial;
pedagogia insubstituível, sobretudo nas condições da sociedade atual, sempre
mais intensamente marcada pela fragmentação e pluralismo cultural, que põem
continuamente à prova a fidelidade dos cristãos às exigências específicas da
sua fé. Em muitas partes do mundo, desenha-se a condição dum cristianismo da
«diáspora», isto é, provado por uma situação de dispersão tal que os discípulos
de Cristo já não conseguem manter facilmente os contatos entre eles, nem gozam
do apoio das estruturas e tradições próprias da cultura cristã. Neste contexto
problemático, a possibilidade de se encontrar ao domingo com todos os irmãos da
mesma fé, trocando entre si os dons da fraternidade, é uma ajuda
imprescindível.
84. Instituído para amparo da vida cristã, o domingo adquire
naturalmente também um valor de testemunho e anúncio. Dia de oração, de
comunhão, de alegria, ele repercute-se sobre a sociedade, irradiando sobre ela
energias de vida e motivos de esperança. O domingo é o anúncio de que o tempo,
habitado por Aquele que é o Ressuscitado e o Senhor da história, não é o túmulo
das nossas ilusões, mas o berço dum futuro sempre novo, a oportunidade que nos
é dada de transformar os momentos fugazes desta vida em sementes de eternidade.
O domingo é convite a olhar para diante, é o dia em que a comunidade cristã eleva
para Cristo o seu grito: «Maranatha: Vinde, Senhor!» (1Cor 16,22).
Com este grito de esperança e expectativa, ela faz-se companheira e
sustentáculo da esperança dos homens. E domingo a domingo, iluminada por
Cristo, caminha para o domingo sem fim da Jerusalém celeste, quando estiver
completa em todas as suas feições a mística Cidade de Deus, que «não necessita
de Sol nem de Lua para a iluminar, porque é iluminada pela glória de Deus, e a
sua luz é o Cordeiro» (Ap 21,23).
85. Nesta tensão para a meta, a Igreja é sustentada e animada pelo
Espírito. Este refresca a sua memória, e atualiza para cada geração dos crentes
o acontecimento da Ressurreição. É o dom interior que nos une ao Ressuscitado e
aos irmãos na intimidade de um único corpo, reavivando a nossa fé, infundindo
no nosso coração a caridade, reanimando a nossa esperança. O Espírito está
presente ininterruptamente em cada dia da Igreja, irrompendo, imprevisível e
generoso, com a riqueza dos seus dons; mas, na assembleia dominical congregada
para a celebração semanal da Páscoa, a Igreja coloca-se especialmente à escuta
d'Ele e com Ele tende para Cristo, no desejo ardente do seu regresso glorioso:
«O Espírito e a Esposa dizem: “Vem!”» (Ap 22,17). Foi precisamente
em consideração do papel do Espírito que eu desejei que esta exortação a
descobrir o sentido do domingo viesse à luz este ano que, dentro da preparação
imediata para o Jubileu, é dedicado precisamente ao Espírito Santo.
86. Confio o acolhimento frutuoso desta Carta Apostólica pela comunidade
cristã à intercessão da Virgem Santa. Sem nada tirar à centralidade de Cristo e
do seu Espírito, Ela está presente em cada domingo da Igreja. Exige-o precisamente
o mistério de Cristo: de fato, como poderia Ela, Mater Domini e Mater
Ecclesiae, não estar presente a título especial no dia que é
simultaneamente dies Domini e dies Ecclesiae?
Para a Virgem Maria, olham os fiéis que escutam a Palavra proclamada na
assembleia dominical, aprendendo com Ela a conservá-la e meditá-la no seu
coração (cf. Lc 2,19). Com Maria, aprendem a estar ao pé da
cruz, para oferecer ao Pai o sacrifício de Cristo e associar ao mesmo a oferta
da própria vida. Com Maria, vivem a alegria da Ressurreição, fazendo suas as
palavras do Magnificat que cantam o dom inexaurível da
misericórdia divina no fluxo inexorável do tempo: «A sua misericórdia
estende-se de geração em geração sobre aqueles que O temem» (Lc 1,50).
Domingo a domingo, o povo peregrino segue o rasto de Maria, e a sua intercessão
materna torna particularmente intensa e eficaz a oração que a Igreja eleva à
Santíssima Trindade.
87. A iminência do Jubileu, queridos irmãos e irmãs, convida-nos a
aprofundar o nosso compromisso espiritual e pastoral. De fato, é este o seu
verdadeiro objetivo. No ano em que aquele vai ser celebrado, muitas iniciativas
o caracterizarão, dando-lhe aquele timbre singular que não pode deixar de ter a
conclusão do segundo e o início do terceiro milênio da Encarnação do Verbo de
Deus. Mas este ano e este tempo especial passarão, dando lugar à expectativa de
outros jubileus e de outras datas solenes. O domingo, com a sua ordinária
«solenidade», permanecerá a ritmar o tempo da peregrinação da Igreja até ao
domingo sem ocaso.
Exorto-vos, portanto, amados irmãos no episcopado e no sacerdócio, a
trabalhar incansavelmente, unidos com os fiéis, para que o valor deste dia
sagrado seja reconhecido e vivido cada vez melhor. Isto produzirá frutos nas comunidades
cristãs, e não deixará de exercer uma benéfica influência sobre toda a
sociedade civil.
Os homens e as mulheres do terceiro milênio, ao encontrarem a Igreja que
cada domingo celebra alegremente o mistério donde lhe vem toda a sua vida,
possam encontrar o próprio Cristo ressuscitado. E os seus discípulos,
renovando-se constantemente no memorial semanal da Páscoa, tornem-se
anunciadores cada vez mais credíveis do Evangelho que salva e construtores ativos
da civilização do amor.
A todos, a minha Bênção!
Vaticano, 31 de maio, solenidade de Pentecostes, de 1998, vigésimo ano
de Pontificado.
JOÃO PAULO II
Notas
[99] Proclamação diaconal em memória do dia do Senhor: cf. o texto siríaco no Missal próprio do
rito da Igreja de Antioquia dos Maronitas (edição em siríaco e árabe) Jounieh
(Líbano), 1959, p. 38.
[100] Didascália dos Apóstolos,
V, 20, 11: ed. F. X. Funk (1905), 298. cf.
também Didaké 14, 1: ed. F. X. Funk (1901), 32; Tertuliano, Apologeticum 16,
11: CCL 1, 116. Veja-se, em particular, a Epístola de
Barnabé 15, 9 SC 172, 188-189: «é por isso que
celebramos como uma festa jubilosa o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos
mortos e, depois de ter aparecido aos seus discípulos, subiu ao céu».
[101] Tertuliano, por exemplo, conta que era proibido ajoelhar-se aos
domingos, porque, sendo esta posição considerada, então, sobretudo como gesto
penitencial, parecia pouco adequada no dia da alegria: cf. De corona 3,
4: CCL 2, 1043.
[102] Epistula 55, 28: CSEL 342, 202.
[103] cf. S. Teresa do Menino
Jesus e da Santa Face, Derniers entretiens (5-6 de Julho de
1897): Oeuvres complètes, Cerf-Desclée de Brouwer, Paris,
1992, pp. 1024-1025.
[104] Exort. Ap. Gaudete in Domino (09 de maio de
1975), II.
[105] ibid., VII (conclusão).
[106] Hex. 6, 10, 76: CSEL 321, 261.
[107] Veja-se o edito de Constantino, de 03 de julho de 321: Codex Theodosianus II, 8, 1, ed. Th.
Mommsen 12, 87; Codex Iustiniani, 3, 12, 2, ed. P. Krueger, 248.
[108] cf. Eusébio de
Cesareia, Vida de Constantino, 4, 18: PG 20,1165.
[109] O documento eclesiástico mais antigo sobre este tema é o cân. 29
do Concílio de Laodiceia (2ª metade do séc. IV): Mansi, Conc., t.
II, 569-570. Muitos Concílios, desde o século VI até ao IX, proibiram as opera
ruralia. A legislação sobre os trabalhos proibidos, apoiada também pelas
leis civis, foi-se tornando sempre mais detalhada.
[110] cf. Carta Enc. Rerum
novarum (15 de maio de 1891).
[111] Hex. 2, 1, 1: CSEL 321, 41.
[112] Cf. Código de Direito Canônico, cân. 1247; Código
dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 881-§§ 1.4.
[113] Sacrosanctum Concilium, n. 09.
[114] E S. Justino afirma: «Os que são ricos e querem, dão, cada um
conforme o que a si mesmo se impôs; o que se recolhe é entregue àquele que
preside e ele, por seu turno, presta assistência aos órfãos, às viúvas, aos
doentes, aos pobres, aos prisioneiros, aos estrangeiros de passagem, numa
palavra, a todos os que sofrem necessidade» [Apologia I, 67,
6: PG 6, 430].
[115] De Nabuthae, 10, 45: «Audis, dives, quid Dominus
Deus dicat? Et tu ad ecclesiam venis, non ut aliquid largiaris pauperi, sed ut
auferas» [in: CSEL 322,
492].
[116] Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: PG 58,
508-509.
[117] cf. S. Paulino de
Nola, Epistula 13,11-12, dirigida a Pamáquio: CSEL 29,
92-93. Aí Pamáquio, senador romano, é louvado precisamente por ter de certo
modo reproduzido o milagre evangélico, unindo a participação na Eucarística com
a distribuição de alimento aos pobres.
[118] João Paulo II, Carta Ap. Tertio millennio adveniente (10
de novembro de 1994), 10.
[119] ibid. 10.
[120] cf. Catecismo da
Igreja Católica, 731-732.
[121] Sacrosanctum Concilium, 102.
[122] ibid., 103.
[123] ibid., 104.
[124] Carm. XVI, 3-4: « Omnia prætereunt, sanctorum
gloria durat in Christo qui cuncta novat, dum permanet ipsum» [in: CSEL 30, 67].
[125] cf. Código de
Direito Canônico, cân. 1247; Código dos Cânones das Igrejas
Orientais, cân. 881 §§ 1 e 3.
[126] Por direito comum, são festas de preceito, na Igreja latina, os
dias do Natal de nosso Senhor Jesus Cristo, Epifania, Ascensão, Santíssimo
Corpo e Sangue de Cristo, Santa Maria Mãe de Deus, a sua Imaculada Conceição e
Assunção, S. José, os Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, e Todos os Santos:
cf. Código de Direito Canónico, cân. 1246. São festas de preceito
comuns a todas as Igrejas Orientais os dias do Natal de nosso Senhor Jesus
Cristo, Epifania, Ascensão, Dormição de Santa Maria Mãe de Deus, os Santos
Apóstolos Pedro e Paulo: cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais,
cân. 880 § 3.
[127] cf. Código de
Direito Canônico, cân. 1246 § 2; para as Igrejas Orientais, cf. Código
dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 880 § 3.
[128] cf. S. Congr. dos
Ritos, Normæ universales de Anno Liturgico et de Calendario (21
de março de 1969), 5.7.
[129] cf. Cærimoniale
Episcoporum, ed. typica 1995, n. 230.
[130] cf. ibid.,
n. 233.
[131] Contra Celso VIII, 22: SC 150,
222-224.
Fonte: Santa Sé
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