Daqui um mês, no dia 23 de fevereiro de 2020, se completarão vinte anos da comemoração de Abraão no contexto do Grande Jubileu do ano 2000, primeira etapa da peregrinação do Papa João Paulo II aos lugares associados à história da salvação.
Na ocasião o Pontífice publicou uma Carta sobre esta peregrinação, acompanhada de outros dois documentos, um sobre o sentido da peregrinação e outro sobre o santuário. Nos próximos dias, preparando os vinte anos de tão significativo evento, publicaremos os três documentos na íntegra:
Papa João Paulo II
Carta sobre a Peregrinação aos Lugares relacionados com a História da Salvação
A quantos se estão
preparando para celebrar
fielmente o Grande Jubileu
1. Depois de anos de
preparação, estamos para entrar no Grande Jubileu. Muito se fez nestes anos em
toda a Igreja, para preparar este acontecimento de graça. Mas agora, como na
iminência duma viagem, chegou o momento de prover aos últimos preparativos. Na
verdade, o Grande Jubileu não consiste numa série de práticas a cumprir, mas
numa grande experiência interior a ser vivida. As iniciativas exteriores têm
sentido na medida em que são expressão de um compromisso mais profundo, que
toca o coração das pessoas. Quis chamar a atenção de todos precisamente para
esta dimensão interior, seja na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente seja na Bula de proclamação do Jubileu Incarnationis mysterium. Ambas
foram objeto de cordial e amplo acolhimento. Delas, os Bispos tiraram
indicações significativas, e os temas propostos para os diversos anos de preparação
foram amplamente meditados. Por tudo isto, quero dar graças ao Senhor e
exprimir profundo apreço tanto aos Pastores como a todo o Povo de Deus.
Agora, a iminência do
Jubileu sugere-me que proponha uma reflexão, relacionada com o meu desejo de fazer
pessoalmente, se Deus quiser, uma especial peregrinação jubilar, detendo-me em
alguns dos lugares que estão particularmente ligados à Encarnação do Verbo de
Deus, fato este diretamente evocado pelo Ano Santo de 2000.
A minha meditação estende-se,
por isso, aos «lugares» de Deus, àqueles espaços que Ele escolheu para colocar
a sua «tenda» entre nós (Jo 1,14;
cf. Ex 40,34-35; 1Rs 8,10-13), a fim de permitir ao ser
humano um encontro mais direto com Ele. Completo assim, de certa forma, a
reflexão da Carta Apostólica Tertio
millennio adveniente, cuja perspectiva dominante, no horizonte da história
da salvação, era o «tempo» com a sua importância fundamental. Ora, a dimensão
do «espaço» não é menos importante que a do tempo, na realização concreta do
mistério da Encarnação.
2. À primeira vista, falar
de «espaços» determinados em relação a Deus poderia gerar qualquer
perplexidade. Não está porventura o espaço, tal como o tempo, integralmente sujeito
ao domínio de Deus? De fato, tudo saiu das suas mãos e não há lugar onde Ele
não se possa encontrar: «Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo
e quantos nele habitam. Ele a fundou sobre os mares e a consolidou sobre as
ondas» (Sl 23,1-2). Deus
está igualmente presente em todos os cantos da terra, pelo que o mundo inteiro
pode considerar-se «templo» da sua presença.
Mas, isto não impede que,
tal como o tempo pode ser marcado pelos kairoi,
momentos especiais de graça, analogamente também o espaço possa ficar
assinalado por particulares intervenções salvíficas de Deus. Aliás, esta
intuição acha-se presente em todas as religiões, que têm não apenas templos mas
também espaços sagrados, onde se pode experimentar o encontro com o divino de
forma mais intensa do que habitualmente se verifica na imensidão do mundo.
3. No âmbito desta tendência
geral das religiões, a Bíblia proporciona uma mensagem específica, ao colocar o
tema do «espaço sagrado» no horizonte da história da salvação. Por um lado,
acautela contra os riscos inerentes a uma definição desse espaço que vá na
linha de divinização da natureza - recorde-se, a tal respeito, a grande batalha
dos profetas contra a idolatria, em nome da fidelidade a Javé, Deus do Êxodo -,
mas, por outro, não exclui uma utilização cultual do espaço, já que isso
exprime plenamente a especificidade da intervenção de Deus na história de
Israel. Deste modo, o espaço sagrado foi-se «concentrando» progressivamente no
templo de Jerusalém, onde o Deus de Israel deseja ser honrado e, de certo modo,
encontrado. Para o templo se voltam os olhos do peregrino de Israel, e grande é
a sua alegria quando chega ao lugar onde Deus colocou a sua morada: «Que
alegria quando me disseram: “Vamos para a casa do Senhor”. Detiveram-se os
nossos passos às tuas portas, Jerusalém» (Sl 121,1-2).
No Novo Testamento, esta
«concentração» do espaço sagrado tem o seu ponto culminante em Cristo, que é
agora pessoalmente o novo «templo» (cf. Jo 2,21), onde habita a «plenitude da
divindade» (Cl 2,9). Com a
sua vinda, o culto tende a superar radicalmente os templos materiais, para se
tornar culto «em espírito e verdade» (Jo 4,24). E, em Cristo, também a Igreja é
considerada «templo» pelo Novo Testamento (cf. 1Cor 3,17), que diz o mesmo de cada um dos
discípulos de Cristo, enquanto habitado pelo Espírito Santo (cf. 1Cor 6,19; Rm 8,11). É claro que tudo isto não
exclui que os cristãos, como o demonstra a história da Igreja, possam ter
lugares de culto; é preciso, todavia, não perder de vista o seu caráter
completamente funcional ao serviço da vida cultual e fraterna da comunidade, na
certeza de que a presença de Deus, por sua natureza, não pode ser encerrada em
lugar algum, já que os preenche a todos, tendo em Cristo a plenitude da sua
expressão e irradiação.
Assim, o mistério da
Encarnação modifica a experiência universal do «espaço sagrado», por um lado
redimensionando-a e por outro sublinhando em novos termos a sua importância. Na
realidade, a referência ao espaço está contida no próprio fato de o Verbo
«fazer-Se carne» (cf. Jo 1,14). Em Jesus de Nazaré, Deus
assumiu as características próprias da natureza humana, incluindo a pertença
obrigatória do indivíduo a um povo concreto e a uma determinada terra. Possui
um significado muito peculiar esta frase, que se encontra em Belém,
precisamente no lugar onde, segundo a tradição, nasceu Jesus: «Hic de
Virgine Maria Iesus Christus natus est», «Aqui nasceu Jesus Cristo da
Virgem Maria». A dimensão concreta e física da terra e as suas coordenadas
geográficas fazem parte da verdade da carne humana assumida pelo Verbo.
4. Por isso mesmo, na
perspectiva do ano bimilenar da Encarnação, sinto grande desejo de ir
pessoalmente rezar nos principais lugares onde, desde o Antigo ao Novo
Testamento, se verificaram as intervenções de Deus, que atingiram o seu apogeu
no mistério da Encarnação e da Páscoa de Cristo. Estes lugares encontram-se já
gravados indelevelmente na minha memória desde 1965, ano em que tive a
oportunidade de visitar a Terra Santa. Foi uma experiência inesquecível. Ainda
hoje repasso de bom grado as páginas onde registei os densos sentimentos de
então. «Chego a estes lugares que de Ti encheste de uma vez para sempre. (...)
Ó lugar, quantas vezes, quantas vezes te transformaste antes de passares d'Ele
a mim! Quando Ele te encheu pela primeira vez, ainda não eras nenhum lugar exterior,
mas apenas o ventre de Sua Mãe. Ó, que sensação saber que as pedras sobre as
quais caminho em Nazaré são as mesmas que tocava o seu pé, quando ainda era ela
o Teu lugar, único no mundo. Encontrar-Te através duma pedra que foi tocada
pelo pé de Tua Mãe! Ó lugar, lugar de Terra Santa, como é grande o espaço que
ocupas em mim! Por isso, não posso pisar-te com os meus pés, devo ajoelhar-me.
E assim atestar hoje que tu foste um lugar de encontro. Eu me ajoelho - e deste
modo aponho o meu sigilo. Aqui permanecerás com o meu sigilo - permanecerás,
permanecerás - e eu levar-te-ei comigo, transformar-te-ei dentro de mim num
lugar de novo testemunho. Eu parto como uma testemunha que dará o seu
testemunho através dos séculos» (K. Wojtyla, Obras
literárias. Poesias e dramas, Livraria
Editora Vaticana, 1993, p. 124).
Quando há mais de trinta
anos escrevia estas palavras, não podia imaginar que o testemunho, ao qual
então me comprometia, haveria de prestá-lo hoje como Sucessor de Pedro, posto
ao serviço de toda a Igreja. É um testemunho que me insere numa longa cadeia de
pessoas, que, desde há dois mil anos, têm ido procurar os «passos» de Deus naquela
terra, justamente chamada «santa», de algum modo esquadrinhando-os nas pedras,
nos montes e nas águas, que serviram de cenário à vida terrena do Filho de
Deus. É conhecido, desde a Antiguidade, o diário de viagem da peregrina Etéria.
Quantos peregrinos, quantos santos seguiram o seu itinerário no decorrer dos
séculos! Mesmo quando as circunstâncias históricas turvaram o caráter
essencialmente pacífico da peregrinação à Terra Santa, dando-lhe uma fisionomia
que, intenções aparte, mal se conciliava com a imagem do Crucificado, a mente
dos cristãos mais conscientes pretendia apenas encontrar naquela terra a
recordação viva de Cristo. E quis a Divina Providência que, ao lado dos irmãos
das Igrejas Orientais, ficassem, para a cristandade ocidental, sobretudo os
filhos de Francisco de Assis, santo da pobreza, da mansidão e da paz, a
interpretar de forma genuinamente evangélica o legítimo desejo cristão de
guardar os lugares onde se entranham as nossas raízes espirituais.
5. É com este espírito que,
se Deus quiser, penso percorrer, por ocasião do Grande Jubileu do ano 2000, as
marcas da história da salvação na terra onde ela se desenrolou.
Ponto de partida serão
alguns lugares típicos do Antigo Testamento. Desejo, assim, exprimir a
consciência que tem a Igreja do seu vínculo indivisível com o antigo povo da
Aliança. Também para nós, Abraão é o «pai na fé» por excelência (cf. Rm 4; Gl 3,6-9; Hb 11,8-19). No evangelho de João,
encontra-se esta frase que Cristo disse um dia acerca dele: «Abraão exultou com
a ideia de ver o meu dia; viu-o e rejubilou» (8,56).
Precisamente com Abraão está
ligada a primeira etapa da viagem que desejo fazer. De fato, gostaria de ir, se
for da vontade de Deus, a Ur dos Caldeus, que corresponde à atual
Tal-al-Muqayyar no sul do Iraque, cidade onde Abraão, segundo a narração
bíblica, ouviu a palavra do Senhor que o arrancava da sua terra, do seu povo e,
em certo sentido, de si próprio, para fazer dele o instrumento dum desígnio de
salvação que abraçava o futuro povo da aliança e mesmo todos os povos do mundo:
«O Senhor disse a Abrão: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai,
e vai para a terra que Eu te indicar. Farei de ti um grande povo,
abençoar-te-ei, engrandecerei o teu nome e serás uma fonte de bênçãos. (...) E
todas as famílias da terra serão em ti abençoadas» (Gn 12,1-3). Com estas palavras, tem
início o longo caminho do Povo de Deus. Para Abraão se voltam os olhos não só
de quantos se gloriam de descenderem dele fisicamente, mas também de todos
aqueles - e são inumeráveis - que se sentem sua descendência «espiritual»,
porque partilham a sua fé e abandono sem reservas à iniciativa salvífica do Onipotente.
6. As vicissitudes do povo
de Abraão foram-se desenrolando ao longo de centenas de anos, tocando muitos
lugares do Médio Oriente. Lugar central ocupam os acontecimentos do Êxodo,
quando o povo de Israel, depois duma dura experiência de escravidão, se
encaminhou guiado por Moisés para a Terra da sua liberdade. Este caminho está
assinalado por três momentos, relacionados com lugares montanhosos densos de
mistério. Aparece em primeiro lugar, na fase preliminar, o monte Horeb, uma das
denominações bíblicas do Sinai, onde Moisés teve a revelação do nome de Deus,
sinal do seu mistério e da sua presença salvífica eficaz: «Eu sou Aquele que
sou» (Ex 3,14). Também a
Moisés, não menos que a Abraão, era pedido que tivesse confiança no desígnio de
Deus e se colocasse à frente do seu povo. Começava assim a dramática história
da libertação, que ficaria impressa na memória de Israel como experiência
basilar da sua fé.
Ao longo do caminho pelo
deserto, aparece de novo o Sinai como o cenário onde foi estipulada a aliança
entre Javé e o seu povo. Este monte permanece, por isso, associado com o dom do
Decálogo, as dez «palavras» com que Israel se comprometia a uma vida de plena
adesão à vontade de Deus. Na realidade, estas «palavras» traduziam os pilares
da lei moral de caráter universal escrita no coração de cada homem, mas foram
entregues a Israel no contexto de um pacto recíproco de fidelidade, segundo o
qual o povo se comprometia a amar a Deus, recordando as maravilhas que Ele
operou no Êxodo, e Deus garantia-lhe a sua benevolência perene: «Eu sou o
Senhor, teu Deus, que te fez sair do Egito, de uma casa de escravidão» (Ex 20,2). Comprometiam-se reciprocamente
Deus e o povo. Se, na visão da sarça ardente, o Horeb, lugar do «nome» e do
«projeto» de Deus, tinha sido sobretudo o «monte da fé», agora, para o povo
peregrino no deserto, aquele tornava-se lugar do encontro e de um pacto
recíproco, tornava-se de certo modo o «monte do amor». Quantas vezes no
decorrer dos séculos os profetas, ao denunciarem a infidelidade do povo à
aliança, haveriam de a considerar como uma espécie de infidelidade «conjugal»,
uma autêntica traição do povo-esposa a Deus, seu esposo (cf. Jr 2,2; Ez 16,1-43).
No final do caminho do
Êxodo, destaca-se outro lugar elevado, o monte Nebo, donde Moisés pôde
contemplar a Terra Prometida (cf. Dt 32,49), sem a alegria de poder
pisá-la, mas com a certeza de tê-la finalmente alcançado. Aquele seu olhar a
partir do monte Nebo é o próprio símbolo da esperança. Daquele monte, ele podia
constatar que Deus tinha mantido as suas promessas. Uma vez mais, porém, devia
confiadamente abandonar-se à omnipotência divina quanto ao pleno cumprimento do
desígnio preanunciado.
Provavelmente não será
possível, na minha peregrinação, passar por todos estes lugares. Mas queria
pelo menos, se for da vontade do Senhor, deter-me em Ur, lugar das origens
abraâmicas, e fazer depois uma paragem no célebre Mosteiro de Santa Catarina,
no Sinai, aquele monte da Aliança que de algum modo resume todo o mistério do
Êxodo, paradigma perene do novo Êxodo que encontrará no Gólgota a sua
realização completa.
7. Se estes itinerários e
outros semelhantes do Antigo Testamento são tão densos de significado para nós,
é óbvio que o Ano Jubilar, recordação solene da Encarnação do Verbo, nos convida
a parar sobretudo nos lugares onde decorreu a vida de Jesus.
Vivíssimo é o meu desejo de
ir, antes de mais, a Nazaré, cidade ligada ao próprio momento da Encarnação e,
depois, lugar onde Jesus cresceu «em sabedoria, em estatura e em graça, diante
de Deus e dos homens» (Lc 2,52).
Lá ouviu Maria a saudação do Anjo: «Alegra-te, ó cheia de graça, o Senhor está
contigo» (Lc 1,28). Lá
pronunciou Ela o seu fiat como resposta ao anúncio que A chamava
para ser mãe do Salvador e tornar-se, à sombra do Espírito Santo, um ventre
acolhedor para o Filho de Deus.
Depois, como não deslocar-se
a Belém, onde Cristo veio à luz, e os pastores e os magos deram voz à adoração
da humanidade inteira? Em Belém, ressoaram também pela primeira vez aqueles
votos de paz que, formulados pelos Anjos, haveriam de continuar a ecoar de
geração em geração até aos nossos dias.
Paragem particularmente
significativa será Jerusalém, lugar da morte na cruz e da ressurreição do
Senhor Jesus.
Certamente são muitos mais
os lugares que evocam a existência terrena do Salvador e tantos deles mereciam
ser visitados. Por exemplo, como não lembrar o monte das Bem-Aventuranças, o
monte da Transfiguração, ou Cesareia de Filipe, localidade onde Jesus confiou a
Pedro as chaves do Reino dos Céus, constituindo-o como alicerce da sua Igreja
(cf. Mt 16,13-19)? Na Terra Santa, de norte a
sul, pode-se dizer que tudo recorda Cristo. Mas terei de contentar-me com os
lugares mais significativos, e Jerusalém de algum modo resume-os a todos. Lá,
se Deus quiser, tenciono ajoelhar-me em oração, levando no coração toda a
Igreja. Lá contemplarei os lugares onde Cristo deu a sua vida e, depois,
retomou-a na Ressurreição, concedendo-nos o dom do seu Espírito. Lá quero
gritar uma vez mais esta grande e consoladora certeza: «Deus amou de tal modo o
mundo que lhe deu o seu Filho único, para que todo o que n'Ele crer não pereça,
mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16).
8. Um dos lugares
hierosolimitanos a que a vida terrena de Cristo está ligada de forma mais
intensa, sendo por isso irrenunciável a sua visita, é o Cenáculo, onde Jesus
instituiu a Eucaristia, fonte e cume da vida da Igreja. Lá, segundo a tradição,
estavam reunidos os Apóstolos em oração com Maria, Mãe de Cristo, no dia de
Pentecostes, quando foi derramado o Espírito Santo. Começou então a última
etapa do caminho da história da salvação, o tempo da Igreja, corpo e esposa de
Cristo, povo peregrino no tempo, chamado a ser sinal e instrumento da íntima
união com Deus e da unidade de todo o género humano (cf. Lumen gentium, 1).
Deste modo, a visita ao
Cenáculo quer ser uma subida até às próprias nascentes da Igreja. O sucessor de
Pedro, que em Roma vive no lugar onde o Príncipe dos Apóstolos afrontou o
martírio, não pode deixar de voltar constantemente ao lugar onde Pedro, no dia
de Pentecostes, começou a proclamar em voz alta, com a força inebriante do
Espírito, a « boa nova » de que Jesus Cristo é o Senhor (cf. At 2,36).
9. A visita aos Lugares
Santos da vida terrena do Redentor desemboca, por conexão lógica, nos lugares que
foram significativos para a Igreja nascente e viram o ardor missionário da
primeira comunidade cristã. E seriam tantos, segundo a narração de Lucas nos Atos
dos Apóstolos. Mas, de modo particular, gostaria de poder deter-me em meditação
também em duas cidades ligadas de forma especial com a vida de Paulo, o Apóstolo
dos Gentios. Penso antes de mais em Damasco, lugar que evoca a sua conversão.
Com efeito, o futuro Apóstolo dirigia-se para aquela cidade nas vestes de
perseguidor, quando o próprio Cristo cruzou o seu caminho: «Saulo, Saulo,
porque Me persegues?» (At 9,4).
Assim conquistado por Cristo, o zelo de Paulo estendeu-se a partir dali numa
marcha incessante até atingir grande parte do mundo então conhecido. Muitas
foram as cidades que evangelizou. Seria bom poder tocar especialmente Atenas,
em cujo Areópago ele pronunciou um discurso admirável (cf. At 17,22-31). Se se pensa ao papel que a
Grécia teve na formação da cultura antiga, compreende-se a razão por que aquele
discurso de Paulo pode considerar-se, de algum modo, o próprio símbolo do
encontro do Evangelho com a cultura humana.
10. Abandonando-me
completamente à decisão da vontade divina, ficaria contente se este desígnio
pudesse realizar-se pelo menos nos seus pontos essenciais. Trata-se de uma peregrinação
exclusivamente religiosa, quer pela sua natureza quer pelos seus objetivos, e
desgostar-me-ia ver atribuídos a este meu projeto outros significados. Aliás,
desde já estou a realizá-la em sentido espiritual, uma vez que ir, mesmo só em
pensamento, a tais lugares significa de certa forma reler o próprio Evangelho,
significa percorrer as estradas que a Revelação seguiu.
Deslocar-se, em espírito de
oração, de um lugar a outro, de uma cidade a outra, naquele espaço
particularmente marcado pelas intervenções de Deus, ajuda-nos não só a viver a
nossa vida como um caminho, mas apresenta aos nossos olhos a ideia de um Deus
que nos precedeu e precede, que Se pôs, Ele mesmo, a caminho pelas estradas do
homem, um Deus que não nos olha de cima, mas fez-Se nosso companheiro de
viagem.
Assim a peregrinação aos
Lugares Santos torna-se uma experiência extraordinariamente significativa, de
certo modo recordada por qualquer outra peregrinação jubilar. De fato, a Igreja
não pode esquecer as suas raízes; antes, deve continuamente voltar a elas, para
se manter totalmente fiel ao desígnio de Deus. Por isso, na Bula Incarnationis mysterium,
escrevi que o Jubileu, celebrado simultaneamente na Terra Santa, em Roma e nas
Igrejas locais do mundo inteiro, «terá, por assim dizer, dois centros: um será
a cidade onde a Providência quis colocar a sede do Sucessor de Pedro, e o
outro, a Terra Santa onde o Filho de Deus enquanto homem nasceu, tomando a
nossa carne de uma Virgem, chamada Maria» (n. 2).
Esta atenção à Terra Santa,
ao mesmo tempo que traduz a inevitável recordação dela por parte dos cristãos,
quer honrar a profunda relação que estes continuam a ter com o povo judeu, do
qual provém Cristo segundo a carne (cf. Rm 9,5). Muita estrada se fez já nos
últimos decênios, especialmente depois do Concílio Vaticano II, para
estabelecer um diálogo fecundo com o povo que Deus escolheu como primeiro
destinatário das suas promessas e da aliança. O Jubileu deverá constituir mais
uma ocasião para fazer crescer a consciência dos laços que nos unem,
contribuindo para extinguir definitivamente incompreensões que infelizmente
tantas vezes, ao longo dos séculos, caracterizaram amargamente as relações
entre cristãos e judeus.
Além disso, não podemos
esquecer que a Terra Santa é estimada também pelos seguidores do Islã, que lhe
tributam uma especial veneração. Espero vivamente que a minha visita aos
Lugares Santos possa ser também uma oportunidade de encontro com eles, para
que, sempre na clareza do testemunho, cresçam motivos de conhecimento e estima
recíproca e também de colaboração no esforço de dar testemunho do valor do
compromisso religioso e do desejo duma sociedade mais conforme ao desígnio de
Deus, no respeito de toda a pessoa e da criação.
11. Neste percurso ao longo
do espaço que Deus escolheu para colocar a sua «tenda» no meio de nós, desejo
ardentemente ver-me acolhido como peregrino e irmão não só pelas comunidades
católicas, que encontrarei com particular alegria, mas também pelas outras
Igrejas que ininterruptamente têm vivido nos Lugares Santos, guardando-os com
fidelidade e amor ao Senhor.
Mais do que qualquer outra
minha peregrinação, esta que estou para realizar à Terra Santa durante a
efeméride jubilar será caracterizada pelo anélito, expresso por Cristo na sua oração
ao Pai, de que todos os discípulos «sejam um só» (Jo 17,21), oração esta que nos
interpela ainda mais vigorosamente na hora excepcional em que se abre o novo
Milênio. Por isso, faço votos de que todos os irmãos na fé possam, na
docilidade ao Espírito Santo, ver, nos meus passos de peregrino na terra pisada
por Cristo, uma «doxologia» pela salvação que todos recebemos, e sentir-me-ia
feliz se conjuntamente pudéssemos reunir-nos nos lugares da nossa origem comum,
para testemunhar Cristo, nossa unidade (cf. Ut
unum sint, n. 23), e confirmar o recíproco empenho de caminhar até ao
restabelecimento da plena comunhão.
12. Resta-me apenas convidar
calorosamente toda a comunidade cristã para se pôr idealmente a caminho da
peregrinação jubilar. Esta poderá ser celebrada segundo as múltiplas formas que
indiquei na Bula de proclamação. Mas, por certo, tantos vão vivê-la também
pondo-se concretamente em viagem até àqueles lugares que tiveram particular
relevo na história da salvação. Seja como for, todos deveremos efetuar aquela viagem
interior, cuja finalidade é separar-nos daquilo que, em nós mesmos e ao nosso
redor, é contrário à lei de Deus, para termos a possibilidade de nos
encontrarmos plenamente com Cristo, confessando a nossa fé n'Ele e recebendo a
abundância da sua misericórdia.
No Evangelho, Jesus
aparece-nos sempre em caminho. Parece que Ele tem pressa de passar dum lugar a
outro para anunciar que o Reino de Deus está próximo. Anuncia e chama. Aquele
«segue-Me» que era a sua forma de chamar mereceu a pronta adesão dos Apóstolos
(cf. Mc 1,16-20). Sintamo-nos todos abrangidos
pela sua voz, pelo seu convite, pelo seu apelo a uma vida nova.
Digo-o sobretudo aos jovens,
diante dos quais se abre a vida como um caminho pleno de surpresas e de
promessas.
Digo-o a todos: sigamos os
passos de Cristo!
Possa esta peregrinação, que
tenciono fazer no ano jubilar, significar o caminho de toda a Igreja, desejosa
de estar cada vez mais disponível à voz do Espírito, para ir sem demora ao encontro
de Cristo, o Esposo: «O Espírito e a Esposa dizem: “Vem”» (Ap 22,17).
Vaticano, dia 29 de junho -
Solenidade dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo - do ano 1999, vigésimo primeiro
de Pontificado.
JOÃO PAULO II
Santo Sepulcro, meta central da peregrinação do Papa |
Fonte: Santa Sé
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