quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A peregrinação aos lugares da história da salvação

Daqui um mês, no dia 23 de fevereiro de 2020, se completarão vinte anos da comemoração de Abraão no contexto do Grande Jubileu do ano 2000, primeira etapa da peregrinação do Papa João Paulo II aos lugares associados à história da salvação.

Na ocasião o Pontífice publicou uma Carta sobre esta peregrinação, acompanhada de outros dois documentos, um sobre o sentido da peregrinação e outro sobre o santuário. Nos próximos dias, preparando os vinte anos de tão significativo evento, publicaremos os três documentos na íntegra:

Papa João Paulo II
Carta sobre a Peregrinação aos Lugares relacionados com a História da Salvação

A quantos se estão preparando para celebrar fielmente o Grande Jubileu
1. Depois de anos de preparação, estamos para entrar no Grande Jubileu. Muito se fez nestes anos em toda a Igreja, para preparar este acontecimento de graça. Mas agora, como na iminência duma viagem, chegou o momento de prover aos últimos preparativos. Na verdade, o Grande Jubileu não consiste numa série de práticas a cumprir, mas numa grande experiência interior a ser vivida. As iniciativas exteriores têm sentido na medida em que são expressão de um compromisso mais profundo, que toca o coração das pessoas. Quis chamar a atenção de todos precisamente para esta dimensão interior, seja na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente seja na Bula de proclamação do Jubileu Incarnationis mysterium. Ambas foram objeto de cordial e amplo acolhimento. Delas, os Bispos tiraram indicações significativas, e os temas propostos para os diversos anos de preparação foram amplamente meditados. Por tudo isto, quero dar graças ao Senhor e exprimir profundo apreço tanto aos Pastores como a todo o Povo de Deus.
Agora, a iminência do Jubileu sugere-me que proponha uma reflexão, relacionada com o meu desejo de fazer pessoalmente, se Deus quiser, uma especial peregrinação jubilar, detendo-me em alguns dos lugares que estão particularmente ligados à Encarnação do Verbo de Deus, fato este diretamente evocado pelo Ano Santo de 2000.
A minha meditação estende-se, por isso, aos «lugares» de Deus, àqueles espaços que Ele escolheu para colocar a sua «tenda» entre nós (Jo 1,14; cf. Ex 40,34-35; 1Rs 8,10-13), a fim de permitir ao ser humano um encontro mais direto com Ele. Completo assim, de certa forma, a reflexão da Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, cuja perspectiva dominante, no horizonte da história da salvação, era o «tempo» com a sua importância fundamental. Ora, a dimensão do «espaço» não é menos importante que a do tempo, na realização concreta do mistério da Encarnação.

2. À primeira vista, falar de «espaços» determinados em relação a Deus poderia gerar qualquer perplexidade. Não está porventura o espaço, tal como o tempo, integralmente sujeito ao domínio de Deus? De fato, tudo saiu das suas mãos e não há lugar onde Ele não se possa encontrar: «Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e quantos nele habitam. Ele a fundou sobre os mares e a consolidou sobre as ondas» (Sl 23,1-2). Deus está igualmente presente em todos os cantos da terra, pelo que o mundo inteiro pode considerar-se «templo» da sua presença.
Mas, isto não impede que, tal como o tempo pode ser marcado pelos kairoi, momentos especiais de graça, analogamente também o espaço possa ficar assinalado por particulares intervenções salvíficas de Deus. Aliás, esta intuição acha-se presente em todas as religiões, que têm não apenas templos mas também espaços sagrados, onde se pode experimentar o encontro com o divino de forma mais intensa do que habitualmente se verifica na imensidão do mundo.

3. No âmbito desta tendência geral das religiões, a Bíblia proporciona uma mensagem específica, ao colocar o tema do «espaço sagrado» no horizonte da história da salvação. Por um lado, acautela contra os riscos inerentes a uma definição desse espaço que vá na linha de divinização da natureza - recorde-se, a tal respeito, a grande batalha dos profetas contra a idolatria, em nome da fidelidade a Javé, Deus do Êxodo -, mas, por outro, não exclui uma utilização cultual do espaço, já que isso exprime plenamente a especificidade da intervenção de Deus na história de Israel. Deste modo, o espaço sagrado foi-se «concentrando» progressivamente no templo de Jerusalém, onde o Deus de Israel deseja ser honrado e, de certo modo, encontrado. Para o templo se voltam os olhos do peregrino de Israel, e grande é a sua alegria quando chega ao lugar onde Deus colocou a sua morada: «Que alegria quando me disseram: “Vamos para a casa do Senhor”. Detiveram-se os nossos passos às tuas portas, Jerusalém» (Sl 121,1-2).
No Novo Testamento, esta «concentração» do espaço sagrado tem o seu ponto culminante em Cristo, que é agora pessoalmente o novo «templo» (cf. Jo 2,21), onde habita a «plenitude da divindade» (Cl 2,9). Com a sua vinda, o culto tende a superar radicalmente os templos materiais, para se tornar culto «em espírito e verdade» (Jo 4,24). E, em Cristo, também a Igreja é considerada «templo» pelo Novo Testamento (cf. 1Cor 3,17), que diz o mesmo de cada um dos discípulos de Cristo, enquanto habitado pelo Espírito Santo (cf. 1Cor 6,19; Rm 8,11). É claro que tudo isto não exclui que os cristãos, como o demonstra a história da Igreja, possam ter lugares de culto; é preciso, todavia, não perder de vista o seu caráter completamente funcional ao serviço da vida cultual e fraterna da comunidade, na certeza de que a presença de Deus, por sua natureza, não pode ser encerrada em lugar algum, já que os preenche a todos, tendo em Cristo a plenitude da sua expressão e irradiação.
Assim, o mistério da Encarnação modifica a experiência universal do «espaço sagrado», por um lado redimensionando-a e por outro sublinhando em novos termos a sua importância. Na realidade, a referência ao espaço está contida no próprio fato de o Verbo «fazer-Se carne» (cf. Jo 1,14). Em Jesus de Nazaré, Deus assumiu as características próprias da natureza humana, incluindo a pertença obrigatória do indivíduo a um povo concreto e a uma determinada terra. Possui um significado muito peculiar esta frase, que se encontra em Belém, precisamente no lugar onde, segundo a tradição, nasceu Jesus: «Hic de Virgine Maria Iesus Christus natus est», «Aqui nasceu Jesus Cristo da Virgem Maria». A dimensão concreta e física da terra e as suas coordenadas geográficas fazem parte da verdade da carne humana assumida pelo Verbo.


4. Por isso mesmo, na perspectiva do ano bimilenar da Encarnação, sinto grande desejo de ir pessoalmente rezar nos principais lugares onde, desde o Antigo ao Novo Testamento, se verificaram as intervenções de Deus, que atingiram o seu apogeu no mistério da Encarnação e da Páscoa de Cristo. Estes lugares encontram-se já gravados indelevelmente na minha memória desde 1965, ano em que tive a oportunidade de visitar a Terra Santa. Foi uma experiência inesquecível. Ainda hoje repasso de bom grado as páginas onde registei os densos sentimentos de então. «Chego a estes lugares que de Ti encheste de uma vez para sempre. (...) Ó lugar, quantas vezes, quantas vezes te transformaste antes de passares d'Ele a mim! Quando Ele te encheu pela primeira vez, ainda não eras nenhum lugar exterior, mas apenas o ventre de Sua Mãe. Ó, que sensação saber que as pedras sobre as quais caminho em Nazaré são as mesmas que tocava o seu pé, quando ainda era ela o Teu lugar, único no mundo. Encontrar-Te através duma pedra que foi tocada pelo pé de Tua Mãe! Ó lugar, lugar de Terra Santa, como é grande o espaço que ocupas em mim! Por isso, não posso pisar-te com os meus pés, devo ajoelhar-me. E assim atestar hoje que tu foste um lugar de encontro. Eu me ajoelho - e deste modo aponho o meu sigilo. Aqui permanecerás com o meu sigilo - permanecerás, permanecerás - e eu levar-te-ei comigo, transformar-te-ei dentro de mim num lugar de novo testemunho. Eu parto como uma testemunha que dará o seu testemunho através dos séculos» (K. Wojtyla, Obras literárias. Poesias e dramas, Livraria Editora Vaticana, 1993, p. 124).
Quando há mais de trinta anos escrevia estas palavras, não podia imaginar que o testemunho, ao qual então me comprometia, haveria de prestá-lo hoje como Sucessor de Pedro, posto ao serviço de toda a Igreja. É um testemunho que me insere numa longa cadeia de pessoas, que, desde há dois mil anos, têm ido procurar os «passos» de Deus naquela terra, justamente chamada «santa», de algum modo esquadrinhando-os nas pedras, nos montes e nas águas, que serviram de cenário à vida terrena do Filho de Deus. É conhecido, desde a Antiguidade, o diário de viagem da peregrina Etéria. Quantos peregrinos, quantos santos seguiram o seu itinerário no decorrer dos séculos! Mesmo quando as circunstâncias históricas turvaram o caráter essencialmente pacífico da peregrinação à Terra Santa, dando-lhe uma fisionomia que, intenções aparte, mal se conciliava com a imagem do Crucificado, a mente dos cristãos mais conscientes pretendia apenas encontrar naquela terra a recordação viva de Cristo. E quis a Divina Providência que, ao lado dos irmãos das Igrejas Orientais, ficassem, para a cristandade ocidental, sobretudo os filhos de Francisco de Assis, santo da pobreza, da mansidão e da paz, a interpretar de forma genuinamente evangélica o legítimo desejo cristão de guardar os lugares onde se entranham as nossas raízes espirituais.

5. É com este espírito que, se Deus quiser, penso percorrer, por ocasião do Grande Jubileu do ano 2000, as marcas da história da salvação na terra onde ela se desenrolou.
Ponto de partida serão alguns lugares típicos do Antigo Testamento. Desejo, assim, exprimir a consciência que tem a Igreja do seu vínculo indivisível com o antigo povo da Aliança. Também para nós, Abraão é o «pai na fé» por excelência (cf. Rm 4; Gl 3,6-9; Hb 11,8-19). No evangelho de João, encontra-se esta frase que Cristo disse um dia acerca dele: «Abraão exultou com a ideia de ver o meu dia; viu-o e rejubilou» (8,56).
Precisamente com Abraão está ligada a primeira etapa da viagem que desejo fazer. De fato, gostaria de ir, se for da vontade de Deus, a Ur dos Caldeus, que corresponde à atual Tal-al-Muqayyar no sul do Iraque, cidade onde Abraão, segundo a narração bíblica, ouviu a palavra do Senhor que o arrancava da sua terra, do seu povo e, em certo sentido, de si próprio, para fazer dele o instrumento dum desígnio de salvação que abraçava o futuro povo da aliança e mesmo todos os povos do mundo: «O Senhor disse a Abrão: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar. Farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei, engrandecerei o teu nome e serás uma fonte de bênçãos. (...) E todas as famílias da terra serão em ti abençoadas» (Gn 12,1-3). Com estas palavras, tem início o longo caminho do Povo de Deus. Para Abraão se voltam os olhos não só de quantos se gloriam de descenderem dele fisicamente, mas também de todos aqueles - e são inumeráveis - que se sentem sua descendência «espiritual», porque partilham a sua fé e abandono sem reservas à iniciativa salvífica do Onipotente.

6. As vicissitudes do povo de Abraão foram-se desenrolando ao longo de centenas de anos, tocando muitos lugares do Médio Oriente. Lugar central ocupam os acontecimentos do Êxodo, quando o povo de Israel, depois duma dura experiência de escravidão, se encaminhou guiado por Moisés para a Terra da sua liberdade. Este caminho está assinalado por três momentos, relacionados com lugares montanhosos densos de mistério. Aparece em primeiro lugar, na fase preliminar, o monte Horeb, uma das denominações bíblicas do Sinai, onde Moisés teve a revelação do nome de Deus, sinal do seu mistério e da sua presença salvífica eficaz: «Eu sou Aquele que sou» (Ex 3,14). Também a Moisés, não menos que a Abraão, era pedido que tivesse confiança no desígnio de Deus e se colocasse à frente do seu povo. Começava assim a dramática história da libertação, que ficaria impressa na memória de Israel como experiência basilar da sua fé.
Ao longo do caminho pelo deserto, aparece de novo o Sinai como o cenário onde foi estipulada a aliança entre Javé e o seu povo. Este monte permanece, por isso, associado com o dom do Decálogo, as dez «palavras» com que Israel se comprometia a uma vida de plena adesão à vontade de Deus. Na realidade, estas «palavras» traduziam os pilares da lei moral de caráter universal escrita no coração de cada homem, mas foram entregues a Israel no contexto de um pacto recíproco de fidelidade, segundo o qual o povo se comprometia a amar a Deus, recordando as maravilhas que Ele operou no Êxodo, e Deus garantia-lhe a sua benevolência perene: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair do Egito, de uma casa de escravidão» (Ex 20,2). Comprometiam-se reciprocamente Deus e o povo. Se, na visão da sarça ardente, o Horeb, lugar do «nome» e do «projeto» de Deus, tinha sido sobretudo o «monte da fé», agora, para o povo peregrino no deserto, aquele tornava-se lugar do encontro e de um pacto recíproco, tornava-se de certo modo o «monte do amor». Quantas vezes no decorrer dos séculos os profetas, ao denunciarem a infidelidade do povo à aliança, haveriam de a considerar como uma espécie de infidelidade «conjugal», uma autêntica traição do povo-esposa a Deus, seu esposo (cf. Jr 2,2; Ez 16,1-43).
No final do caminho do Êxodo, destaca-se outro lugar elevado, o monte Nebo, donde Moisés pôde contemplar a Terra Prometida (cf. Dt 32,49), sem a alegria de poder pisá-la, mas com a certeza de tê-la finalmente alcançado. Aquele seu olhar a partir do monte Nebo é o próprio símbolo da esperança. Daquele monte, ele podia constatar que Deus tinha mantido as suas promessas. Uma vez mais, porém, devia confiadamente abandonar-se à omnipotência divina quanto ao pleno cumprimento do desígnio preanunciado.
Provavelmente não será possível, na minha peregrinação, passar por todos estes lugares. Mas queria pelo menos, se for da vontade do Senhor, deter-me em Ur, lugar das origens abraâmicas, e fazer depois uma paragem no célebre Mosteiro de Santa Catarina, no Sinai, aquele monte da Aliança que de algum modo resume todo o mistério do Êxodo, paradigma perene do novo Êxodo que encontrará no Gólgota a sua realização completa.

7. Se estes itinerários e outros semelhantes do Antigo Testamento são tão densos de significado para nós, é óbvio que o Ano Jubilar, recordação solene da Encarnação do Verbo, nos convida a parar sobretudo nos lugares onde decorreu a vida de Jesus.
Vivíssimo é o meu desejo de ir, antes de mais, a Nazaré, cidade ligada ao próprio momento da Encarnação e, depois, lugar onde Jesus cresceu «em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2,52). Lá ouviu Maria a saudação do Anjo: «Alegra-te, ó cheia de graça, o Senhor está contigo» (Lc 1,28). Lá pronunciou Ela o seu fiat como resposta ao anúncio que A chamava para ser mãe do Salvador e tornar-se, à sombra do Espírito Santo, um ventre acolhedor para o Filho de Deus.
Depois, como não deslocar-se a Belém, onde Cristo veio à luz, e os pastores e os magos deram voz à adoração da humanidade inteira? Em Belém, ressoaram também pela primeira vez aqueles votos de paz que, formulados pelos Anjos, haveriam de continuar a ecoar de geração em geração até aos nossos dias.
Paragem particularmente significativa será Jerusalém, lugar da morte na cruz e da ressurreição do Senhor Jesus.
Certamente são muitos mais os lugares que evocam a existência terrena do Salvador e tantos deles mereciam ser visitados. Por exemplo, como não lembrar o monte das Bem-Aventuranças, o monte da Transfiguração, ou Cesareia de Filipe, localidade onde Jesus confiou a Pedro as chaves do Reino dos Céus, constituindo-o como alicerce da sua Igreja (cf. Mt 16,13-19)? Na Terra Santa, de norte a sul, pode-se dizer que tudo recorda Cristo. Mas terei de contentar-me com os lugares mais significativos, e Jerusalém de algum modo resume-os a todos. Lá, se Deus quiser, tenciono ajoelhar-me em oração, levando no coração toda a Igreja. Lá contemplarei os lugares onde Cristo deu a sua vida e, depois, retomou-a na Ressurreição, concedendo-nos o dom do seu Espírito. Lá quero gritar uma vez mais esta grande e consoladora certeza: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único, para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16).

8. Um dos lugares hierosolimitanos a que a vida terrena de Cristo está ligada de forma mais intensa, sendo por isso irrenunciável a sua visita, é o Cenáculo, onde Jesus instituiu a Eucaristia, fonte e cume da vida da Igreja. Lá, segundo a tradição, estavam reunidos os Apóstolos em oração com Maria, Mãe de Cristo, no dia de Pentecostes, quando foi derramado o Espírito Santo. Começou então a última etapa do caminho da história da salvação, o tempo da Igreja, corpo e esposa de Cristo, povo peregrino no tempo, chamado a ser sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano (cf. Lumen gentium, 1).
Deste modo, a visita ao Cenáculo quer ser uma subida até às próprias nascentes da Igreja. O sucessor de Pedro, que em Roma vive no lugar onde o Príncipe dos Apóstolos afrontou o martírio, não pode deixar de voltar constantemente ao lugar onde Pedro, no dia de Pentecostes, começou a proclamar em voz alta, com a força inebriante do Espírito, a « boa nova » de que Jesus Cristo é o Senhor (cf. At 2,36).

9. A visita aos Lugares Santos da vida terrena do Redentor desemboca, por conexão lógica, nos lugares que foram significativos para a Igreja nascente e viram o ardor missionário da primeira comunidade cristã. E seriam tantos, segundo a narração de Lucas nos Atos dos Apóstolos. Mas, de modo particular, gostaria de poder deter-me em meditação também em duas cidades ligadas de forma especial com a vida de Paulo, o Apóstolo dos Gentios. Penso antes de mais em Damasco, lugar que evoca a sua conversão. Com efeito, o futuro Apóstolo dirigia-se para aquela cidade nas vestes de perseguidor, quando o próprio Cristo cruzou o seu caminho: «Saulo, Saulo, porque Me persegues?» (At 9,4). Assim conquistado por Cristo, o zelo de Paulo estendeu-se a partir dali numa marcha incessante até atingir grande parte do mundo então conhecido. Muitas foram as cidades que evangelizou. Seria bom poder tocar especialmente Atenas, em cujo Areópago ele pronunciou um discurso admirável (cf. At 17,22-31). Se se pensa ao papel que a Grécia teve na formação da cultura antiga, compreende-se a razão por que aquele discurso de Paulo pode considerar-se, de algum modo, o próprio símbolo do encontro do Evangelho com a cultura humana.

10. Abandonando-me completamente à decisão da vontade divina, ficaria contente se este desígnio pudesse realizar-se pelo menos nos seus pontos essenciais. Trata-se de uma peregrinação exclusivamente religiosa, quer pela sua natureza quer pelos seus objetivos, e desgostar-me-ia ver atribuídos a este meu projeto outros significados. Aliás, desde já estou a realizá-la em sentido espiritual, uma vez que ir, mesmo só em pensamento, a tais lugares significa de certa forma reler o próprio Evangelho, significa percorrer as estradas que a Revelação seguiu.
Deslocar-se, em espírito de oração, de um lugar a outro, de uma cidade a outra, naquele espaço particularmente marcado pelas intervenções de Deus, ajuda-nos não só a viver a nossa vida como um caminho, mas apresenta aos nossos olhos a ideia de um Deus que nos precedeu e precede, que Se pôs, Ele mesmo, a caminho pelas estradas do homem, um Deus que não nos olha de cima, mas fez-Se nosso companheiro de viagem.
Assim a peregrinação aos Lugares Santos torna-se uma experiência extraordinariamente significativa, de certo modo recordada por qualquer outra peregrinação jubilar. De fato, a Igreja não pode esquecer as suas raízes; antes, deve continuamente voltar a elas, para se manter totalmente fiel ao desígnio de Deus. Por isso, na Bula Incarnationis mysterium, escrevi que o Jubileu, celebrado simultaneamente na Terra Santa, em Roma e nas Igrejas locais do mundo inteiro, «terá, por assim dizer, dois centros: um será a cidade onde a Providência quis colocar a sede do Sucessor de Pedro, e o outro, a Terra Santa onde o Filho de Deus enquanto homem nasceu, tomando a nossa carne de uma Virgem, chamada Maria» (n. 2).
Esta atenção à Terra Santa, ao mesmo tempo que traduz a inevitável recordação dela por parte dos cristãos, quer honrar a profunda relação que estes continuam a ter com o povo judeu, do qual provém Cristo segundo a carne (cf. Rm 9,5). Muita estrada se fez já nos últimos decênios, especialmente depois do Concílio Vaticano II, para estabelecer um diálogo fecundo com o povo que Deus escolheu como primeiro destinatário das suas promessas e da aliança. O Jubileu deverá constituir mais uma ocasião para fazer crescer a consciência dos laços que nos unem, contribuindo para extinguir definitivamente incompreensões que infelizmente tantas vezes, ao longo dos séculos, caracterizaram amargamente as relações entre cristãos e judeus.
Além disso, não podemos esquecer que a Terra Santa é estimada também pelos seguidores do Islã, que lhe tributam uma especial veneração. Espero vivamente que a minha visita aos Lugares Santos possa ser também uma oportunidade de encontro com eles, para que, sempre na clareza do testemunho, cresçam motivos de conhecimento e estima recíproca e também de colaboração no esforço de dar testemunho do valor do compromisso religioso e do desejo duma sociedade mais conforme ao desígnio de Deus, no respeito de toda a pessoa e da criação.

11. Neste percurso ao longo do espaço que Deus escolheu para colocar a sua «tenda» no meio de nós, desejo ardentemente ver-me acolhido como peregrino e irmão não só pelas comunidades católicas, que encontrarei com particular alegria, mas também pelas outras Igrejas que ininterruptamente têm vivido nos Lugares Santos, guardando-os com fidelidade e amor ao Senhor.
Mais do que qualquer outra minha peregrinação, esta que estou para realizar à Terra Santa durante a efeméride jubilar será caracterizada pelo anélito, expresso por Cristo na sua oração ao Pai, de que todos os discípulos «sejam um só» (Jo 17,21), oração esta que nos interpela ainda mais vigorosamente na hora excepcional em que se abre o novo Milênio. Por isso, faço votos de que todos os irmãos na fé possam, na docilidade ao Espírito Santo, ver, nos meus passos de peregrino na terra pisada por Cristo, uma «doxologia» pela salvação que todos recebemos, e sentir-me-ia feliz se conjuntamente pudéssemos reunir-nos nos lugares da nossa origem comum, para testemunhar Cristo, nossa unidade (cf. Ut unum sint, n. 23), e confirmar o recíproco empenho de caminhar até ao restabelecimento da plena comunhão.

12. Resta-me apenas convidar calorosamente toda a comunidade cristã para se pôr idealmente a caminho da peregrinação jubilar. Esta poderá ser celebrada segundo as múltiplas formas que indiquei na Bula de proclamação. Mas, por certo, tantos vão vivê-la também pondo-se concretamente em viagem até àqueles lugares que tiveram particular relevo na história da salvação. Seja como for, todos deveremos efetuar aquela viagem interior, cuja finalidade é separar-nos daquilo que, em nós mesmos e ao nosso redor, é contrário à lei de Deus, para termos a possibilidade de nos encontrarmos plenamente com Cristo, confessando a nossa fé n'Ele e recebendo a abundância da sua misericórdia.
No Evangelho, Jesus aparece-nos sempre em caminho. Parece que Ele tem pressa de passar dum lugar a outro para anunciar que o Reino de Deus está próximo. Anuncia e chama. Aquele «segue-Me» que era a sua forma de chamar mereceu a pronta adesão dos Apóstolos (cf. Mc 1,16-20). Sintamo-nos todos abrangidos pela sua voz, pelo seu convite, pelo seu apelo a uma vida nova.
Digo-o sobretudo aos jovens, diante dos quais se abre a vida como um caminho pleno de surpresas e de promessas.
Digo-o a todos: sigamos os passos de Cristo!
Possa esta peregrinação, que tenciono fazer no ano jubilar, significar o caminho de toda a Igreja, desejosa de estar cada vez mais disponível à voz do Espírito, para ir sem demora ao encontro de Cristo, o Esposo: «O Espírito e a Esposa dizem: “Vem”» (Ap 22,17).
Vaticano, dia 29 de junho - Solenidade dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo - do ano 1999, vigésimo primeiro de Pontificado.

JOÃO PAULO II

Santo Sepulcro, meta central da peregrinação do Papa

Fonte: Santa Sé

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