“Celebrando esta santa
e honorável festa da Mãe de Deus, vinde, glorifiquemos a Deus que nasceu de
Maria” [1]
Neste dia 01 de janeiro, início do ano civil, a Igreja de
Rito Romano celebra a Solenidade da Santa Mãe de Deus. Embora as igrejas
orientais celebrem esta festa em outra data, aproveitamos esta ocasião para
refletir sobre os ícones da Virgem Maria em nossa série sobre os ícones das festas litúrgicas.
Origem e conteúdo da
festa
O costume de celebrar a maternidade divina de Maria no oitavo
dia após o Natal remonta, em Roma, ao século VI. Porém, logo foi abandonado, dando
lugar à festa da Circuncisão do Senhor (Lc 2,21) por influência da Espanha e da
Gália.
Em 1931, XV centenário do Concílio de Éfeso, o Papa Pio XI
retoma a festa da Mãe de Deus, a ser celebrada em 11 de outubro. Esta data
permanece até o Concílio Vaticano II, que resgata a data original de 01 de
janeiro [2].
A festa da maternidade de Maria, nos vários ritos litúrgicos,
é colocada sempre em referência ao Natal [3]: no Rito Ambrosiano, se celebra no
domingo antes do Natal; no Rito Hispano-Mozárabe, no dia 18 de dezembro.
Na tradição bizantina, por sua vez, os personagens da
história da salvação são comemorados no dia seguinte ao evento do qual
participaram. Por exemplo, no dia seguinte à festa Natividade de Maria (08 de setembro),
se celebra a memória dos seus pais, Joaquim e Ana. Assim, as igrejas herdeiras
da tradição bizantina fixaram a festa da Mãe de Deus no dia 26 de dezembro [4].
A festa da Mãe de Deus não costuma ter ícone próprio: permanece
exposto o do Natal, uma vez que a maternidade de Maria se manifesta de maneira
supereminente no nascimento do Filho. Porém, nesta postagem analisaremos os
tipos iconográficos da Mãe de Deus que não fazem referência específica a um
momento da história da salvação, mas sim à totalidade do mistério.
O Catecismo da Igreja Católica afirma que “toda a vida de
Cristo é mistério” (n. 514). Podemos aplicar esta afirmação também à sua Mãe:
tudo na vida dela aponta para o mistério do Filho.
Ela não é Mãe de Deus apenas na noite de Natal, mas por toda
a vida terrena de Jesus: está presente desde o início do seu ministério (Jo
2,1-11) até a hora extrema, aos pés da cruz (Jo 19,25-27). E ela continua
exercendo sua maternidade no Corpo do seu Filho, a Igreja, em oração
junto aos Apóstolos à espera do Espírito Santo (At 1,13-14).
Mais uma vez aparecem aqui as diferenças entre Oriente e
Ocidente: enquanto nas igrejas ocidentais costumamos encontrar imagens de Maria
que evocam suas supostas aparições na história (Fátima, Lourdes, Guadalupe...),
nas igrejas orientais encontramos ícones que evocam uma dimensão mais
“escatológica”, retratando a totalidade do mistério, ainda que com diferentes
matizes.
Cumpre dizer que na iconostase o ícone da Mãe de Deus está
sempre à esquerda das portas centrais (chamadas de portas santas ou reais, pois
por elas passam o Evangelho e a Eucaristia), fazendo par com o ícone do Cristo
Salvador (ou Pantocrator), à direita
das portas. Diante do ícone da Mãe de Deus o sacerdote recita uma oração antes
da Divina Liturgia:
“Ó Mãe de Deus, fonte
da misericórdia, torna-nos dignos de tua compaixão; volve o teu olhar para nós,
o teu povo pecador; mostra-nos, como sempre, o teu poder. Depositando em ti a
nossa esperança, nós te aclamamos: Salve! como outrora Gabriel, o príncipe dos
Anjos” [5].
Os ícones
São três os principais ícones da Mãe de Deus na tradição
bizantina: a Hodigítria, a Eleoússa e a Orante. Analisaremos antes os
dois primeiros, que se completam mutuamente.
Quando o Concílio de Éfeso definiu o dogma da maternidade
divina de Maria em 431, não queria chamar atenção para a pessoa da Mãe, mas sim para o
Filho: afirmar que Maria é Mãe de Deus é professar que Jesus é Deus! A
definição de Éfeso seria complementada pelo Concílio de Calcedônia em 451, que
afirmou a união das duas naturezas, divina e humana, na pessoa de Jesus.
Os dois principais ícones de Maria na tradição bizantina, a Hodigítria e a Eleoúsa, seguem esta lógica: através da representação da Mãe expressam
a fé no Filho, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Apresentaremos agora as
particularidades destes dois ícones, para em seguida destacar alguns pontos
comuns.
Hodigítria: Significa “aquela que mostra o caminho”, enfatizando
a divindade de Cristo. Maria segura o Menino com a mão esquerda, enquanto com a
direita aponta para Ele, como que dizendo: “Ele é o Caminho. Segui-o!”. Ou,
como nas bodas de Caná: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5).
O Menino abençoa com a mão direita, utilizando-se do gesto
oriental: três dedos levantados (em alusão à Trindade) e dois unidos (dupla
natureza de Cristo). Com a mão esquerda segura um rolo, “no qual estão escritos
nossos pecados” [6].
Geralmente, tanto a Virgem quanto o Menino estão olhando para
frente, fitando quem contempla o ícone, com semblantes sérios, chamando à
conversão e à penitência.
Ícone da Hodigítria |
Eleoúsa: Significa “a cheia de ternura” ou “a cheia de
misericórdia”. Este ícone recorda-nos a natureza humana de Cristo e a atitude
materna de Maria: ela o sustenta com as duas mãos e Ele envolve o pescoço dela
com seus braços. Assim abraçados, contemplam um ao outro com profunda ternura,
suas faces se tocando, perdidos na mútua contemplação.
Cristo, em sua humanidade, é representado descalço, ao menos
em um dos pés. É o convite a repetir o gesto de humildade de Moisés diante da
sarça ardente: “Tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma
terra santa” (Ex 3,5). É comum no Oriente retirar os sapatos como gesto de
respeito em templos e mesmo nas casas.
Ícone da Eleoúsa |
Elementos comuns aos dois ícones:
As três estrelas:
Em ambos os ícones a virgem é retratada vestindo uma túnica e sobre ela um omophorion, “véu que cobria a cabeça, os
ombros e a espádua de uma mulher casada quando comparecia em público” [7].
Neste véu ou manto são representadas três estrelas: uma na testa e uma em cada
ombro.
As três estrelas indicam aqui a Santíssima Trindade, que a
“cobriu com sua sombra” no momento da Encarnação (Lc 1,35), e a sua virgindade
perpétua, isto é, sua consagração total a Deus: no passado, no presente e no
futuro. Geralmente as estrelas têm oito pontas, simbolizando que Maria
participa da nova criação inaugurada em Cristo.
As cores das vestes:
Enquanto o Menino veste uma túnica simples com cores que variam muito, a Virgem
costuma trajar uma túnica azul sob um véu ou manto vermelho.
Esta escolha de vestes faz um paralelo com o ícone do Cristo
Salvador: enquanto Ele veste uma túnica vermelha (cor do sangue) para indicar
que assumiu nossa humanidade e um manto azul (cor do céu) para lembrar-nos que
não perdeu sua divindade, a Virgem veste ao contrário, ou seja, túnica azul
para simbolizar que seu ventre foi fecundado pelo divino, que ela carregou
por nove meses o próprio céu, e manto vermelho cobrindo-a quase inteiramente
para recordar-nos que ela continua sendo humana.
Orante: Por fim,
temos a Virgem Orante, ou a Virgem da Deesis
(Intercessão). Geralmente este ícone faz parte de um conjunto que tem Cristo ao
centro e uma série de anjos e santos que o ladeiam e apontam para Ele. Neste
caso, Maria é a primeira personagem à sua direita (cf. Sl 44,10; 1Rs 2,19).
Quando este ícone é pintado sozinho, o Menino é retratado
simbolicamente dentro de um medalhão diante da Mãe, e esta tem os braços
abertos. Em ambos os casos este tipo iconográfico recorda-nos o papel de
intercessora que Maria exerce, remetendo-nos a Moisés no Antigo Testamento (Ex 17,8-13).
Ícone da Virgem Orante |
“Verdadeiramente é digno e justo que te bendigamos, ó bem-aventurada Mãe de Deus. Tu, mais venerável que os Querubins e incomparavelmente, mais gloriosa que os Serafins, deste à luz o Verbo de Deus, conservando intacta a glória da tua virgindade. Nós te glorificamos, ó Mãe de nosso Deus!”
Aclamação à Mãe de Deus na Anáfora de São João Crisóstomo [8]
Confira uma versão cantada desta aclamação, com uma tradução ligeiramente diferente:
Ouça também o texto do original grego (Axion estin), entoado pela cantora sérvia Divna Ljubojevic:
[1] Trecho da VI Ode do Akathistos
(PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Mãe de
Deus. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 56. Coleção: Iconostásio, 1).
[2] Sobre a história desta festa no Rito Romano, cf. ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação
litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 101-103.
[3] Vale lembrar ainda que o Rito Romano possui duas Missas
votivas marianas para o Tempo do Natal: Santa Maria, Mãe de Deus e Bem-aventurada
Virgem Maria, Mãe do Salvador.
[4] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 157.
[5] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.).
Hieratikon: Pequeno Missal bizantino.
Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 12.
[6] PASSARELLI, op. cit., p. 25.
[7] ibid., p. 26.
[8] SPERANDIO; TAMANINI, op.
cit., p. 65.
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