“Cantou-te hinos toda
a criação, porque tu, ó nosso Deus, te manifestaste na terra e viveste entre os
homens” [1]
A Epifania do Senhor ou Teofania, celebrada no dia 06 de
janeiro, é uma das festas mais importantes do cristianismo [2]. Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, meditaremos hoje sobre seu
ícone, ao mesmo tempo em que refletimos sobre o sentido desta festa tanto no
Oriente como no Ocidente.
Origem e conteúdo da
festa
“Recordamos neste dia
três mistérios: hoje a estrela guia os magos ao presépio, hoje a água se faz
vinho para as bodas, hoje Cristo no Jordão é batizado para salvar-nos. Aleluia,
aleluia” [3].
A palavra “epifania” significa “manifestação”. Como vimos na
antífona acima, são três as epifanias do Senhor recordadas pela Igreja: sua
manifestação a todos os povos na visita dos magos, aos judeus no momento do
Batismo e aos Apóstolos nas Bodas de Caná (Jo 2,11).
Esta festa surgiu no Oriente como uma celebração mais ampla,
do nascimento do Senhor até o seu Batismo. Quando as igrejas orientais adotaram
a celebração do Natal no dia 25 de dezembro, a festa de 06 de janeiro passou
especificamente celebrar o Batismo de Jesus, sendo denominada Teofania
(manifestação de Deus).
No Ocidente, porém, a ênfase da solenidade da Epifania recai
sobre a visita dos magos, que o Oriente contempla já no Natal. Não obstante, no
domingo seguinte à Epifania a Igreja romana celebra a festa do Batismo do
Senhor (e no domingo seguinte, no ano C, proclama o Evangelho das Bodas de
Caná, completando assim as festas epifânicas) [4].
Aqui focaremos no ícone da Teofania segundo a tradição
bizantina, que retrata o Batismo do Senhor no rio Jordão. Esta é uma festa
cristológica e trinitária, como proclama o tropárion
do dia:
“Em teu batismo no
Jordão, Senhor, foi manifestada a adoração da Trindade,
Pois a voz do Pai te
testemunhou ao chamar-te Filho bem-amado,
E o Espírito, em forma
de pomba, confirmou a verdade dessa palavra.
Ó tu, que manifestaste
e iluminaste o mundo, Cristo Deus, glória a ti!” [5]
Na tradição bizantina este é o grande dia para a bênção das
águas e para a celebração do Batismo (posição ocupada pela Vigília Pascal no
Rito Romano), dado o caráter trinitário e batismal da festa.
Acrescente-se também o tema da luz, batismal e epifânico,
retomando o Prólogo de João, no qual o Batista é enviado “para dar testemunho
da luz” (Jo 1,6-9). O Filho é hoje manifestado a nós como “luz do mundo” (Jo
8,12).
O ícone
O ambiente: Como
no ícone da Natividade do Senhor, a cena é representada diante das montanhas.
Porém, aqui há dois conjuntos de montanhas cortados ao meio por um rio, o
Jordão. Cada conjunto de montanhas é representado com uma cor: o da direita em
tons mais pálidos, remetendo à areia do deserto, e o da esquerda em cores mais
vivas, indicando que com Cristo até o deserto se enche de vitalidade (Is
35,1-2).
Além disso, a margem direita, onde estão os anjos, é também
uma representação do céu, contrastando com a outra, onde está João Batista e,
portanto, a humanidade. Entre as duas margens há um abismo representado pelas
águas do rio, abismo que foi gerado pelo pecado original. Cristo, que desceu às águas
do pecado, fará a ponte entre o céu e a terra, pois “nem a profundidade...
poderá nos separar do amor de Deus” (Rm 8,39).
Na margem esquerda vemos ainda um arbusto, que adquire três
simbolismos distintos:
a) como no ícone do Natal, pode simbolizar o tronco que brotou da raiz de Jessé (Is
11,1-2), isto é, o Messias que nasceu da linhagem de Davi;
b) em algumas versões junto ao arbusto há um machado, referindo-se,
portanto, à pregação de João Batista, que chama à conversão (Mt 3,10);
c) por fim, colocado junto a Cristo, novo Adão, o arbusto
pode ser uma recordação da árvore da vida
(Gn 2,9).
Cristo: O centro
do ícone é Cristo, que aparece sobre as águas. Como afirmamos acima, Ele é o
“mediador entre Deus e os homens” (1Tm 2,5). Só Cristo é, como afirma o
Concílio de Calcedônia (451), “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, o único que
“toca as duas margens” e, portanto, capaz de fazer a ponte entre elas.
Ele é representado em pé sobre as águas, parecendo andar
sobre elas, como em uma epifania do Evangelho (Mt 14,22-33). Trata-se de uma
referência ao poder de Cristo sobre a criação e da liberdade com a qual vem
receber o Batismo.
Seu poder está representado também pelo gesto da mão direita
que abençoa as águas. Diferente das imagens ocidentais, nas quais Cristo tem as
mãos juntas, em atitude de humilde oração, aqui Ele estende a mão sobre as
águas, um gesto ao mesmo tempo criador e santificador, pois desceu ao rio para
santificar as águas sujas pelo pecado.
O Senhor está aqui nu (apenas com um "perizoma", um pano branco), mais uma
referência ao Gênesis, pois resgata a nudez original (Gn 2,25): “Eis, pois, Cristo, revestido da nudez
adâmica para entregar à humanidade a veste paradisíaca” [6]. Ele é o novo
Adão (Rm 5,12-19), que “despiu-se” de sua divindade para assumir nossa
humanidade e redimi-la (Fl 2,6-8).
Em algumas versões do ícone, Cristo pisa as duas portas da
morte em forma de cruz sob as águas, a mesma imagem que aparece no ícone da
Ressurreição. O rio é o sepulcro, ao qual o Senhor desce para dele sair
vitorioso: uma clara profecia do Mistério Pascal.
Sua vitória sobre a morte pode ser representada aqui na
forma de monstros marinhos que fogem. Os dois mais comuns representam o Jordão
e o mar: “Ó mar, o que tens tu para
fugir, e tu, Jordão, por que recuas deste modo?” (Sl 114,3). Os dois ora
são representados como monstros, ora como homem e mulher (mar é feminino em
grego, θάλασσα), ora como uma mistura de ambos.
O Pai e o Espírito
Santo: Como já afirmamos anteriormente, a cena do Batismo do Senhor é
fortemente trinitária: o Filho desce às águas, a voz do Pai desce do céu e o
Espírito desce na forma de pomba.
O Pai e o Espírito são representados na forma de um raio de
luz que desce do céu, assume a forma de uma pomba, e atinge o Filho. O raio é
tanto a voz do Pai - “Eis a voz do Senhor sobre as águas” (Sl 28,3) - quanto a
luz divina - “Deus é luz” (1Jo 1,5).
A luz que desce do céu retoma a coluna de fogo que guiava
Israel na passagem do Mar Vermelho (Ex 13,21), “cuja travessia é uma prefiguração do Batismo: o Batismo é passagem, é
iluminação, é nascimento do ser para a luz divina” [7].
João Batista: À
esquerda de Jesus temos a figura de João Batista, com suas vestes de eremita (Mt
3,4). Representa aqui toda a humanidade, particularmente os justos do Antigo
Testamento: “é a figura do homem velho,
Adão, que Cristo veio resgatar” [8].
O ícone evoca sobretudo sua humildade: está relutante em
batizar Jesus. “Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a
mim?” (Mt 3,14). Em algumas versões, derrama a água sobre Jesus com a mão
direita, enquanto levanta a esquerda, cobrindo a vista, julgando-se indigno de
contemplar a epifania da Trindade.
Em algumas versões do ícone encontramos atrás do Batista
dois dos seus discípulos, identificados como os primeiros Apóstolos de Jesus:
André e João Evangelista (Jo 1,35-39). Em outras versões, o ícone traz o
encontro de Jesus com o Precursor.
Por fim, a presença do Batista junto ao rio, imagem do
sepulcro, remete-nos ao Evangelho Apócrifo de Nicodemos, que narra sua descida
ao Hades para anunciar aos mortos a vinda do Salvador: “Sou João, voz e profeta do Altíssimo (...) corri diante d’Ele e baixei
a anunciar-vos que sua visita é iminente; Ele, Sol nascente e Filho de Deus,
vem do alto sobre nós que estamos no meio das trevas e da sombra da morte”
[9].
Os anjos: O
último simbolismo que refletiremos deste ícone são os anjos. Têm o corpo
inclinado para Jesus e as mãos cobertas, indicando sua missão: seguram as
toalhas e as vestes do Senhor, pois em seguida vão conduzi-lo ao deserto para
ser tentado.
O número de anjos difere, embora o comum seja três, número
que reforça a dimensão trinitária do acontecimento e remete aos três anjos que
visitam Abraão junto ao carvalho de Mambré, anunciando o nascimento de Isaac
(Gn 18,1-15). Cristo é, de fato, o novo Isaac, que subirá livremente o monte do
sacrifício (Gn 22).
Em outras versões, os anjos são quatro, para indicar que se
unem ao louvor da criação ao Senhor que se manifestou [10]. Quando são cinco ou
mais, simbolizam simplesmente a totalidade das hierarquias angélicas.
“Hoje, Senhor, te manifestaste ao universo, e tua luz brilhou sobre nós;
reconhecendo-te, cantamos: vieste, apareceste, ó Luz Inacessível!”
Kontákion da festa [11]
[1] Trecho da grande bênção das águas na festa da Teofania, in: PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Teofania. São Paulo: Ave
Maria, 1996, p. 49. Coleção: Iconostásio,
7).
[2] No Brasil, é transferida para o domingo entre os dias 02
e 08 de janeiro.
[3] Antífona do Cântico Evangélico das II Vésperas da
Solenidade da Epifania. in: OFÍCIO
DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito
Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus,
1999, v. 1: Tempo do Advento e Tempo do
Natal, p. 519.
[4] Sobre a história desta festa confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São
Paulo: Loyola, 2019, pp. 105-109.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 48-52.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 715-723.
[5] DONADEO, op. cit.,
p. 49.
[6] PASSARELLI, op.
cit., p. 25.
[7] ibid., p. 13.
[8] ibid., p. 30.
[9] ibid., p. 32.
[10] O número é um dos associados à criação: por exemplo, os
quatro pontos cardeais. A oração da bênção da água própria da tradição
bizantina para esta festa recorda outros dois simbolismos: “Tu dotaste a criação de quatro elementos, e
coroastes o ciclo do ano com quatro estações” (ibid., p. 48).
[11] DONADEO, op. cit.,
p. 50. Este kontákion, estrofe que
resume o mistério da festa, é de autoria de São Romanos, o Melode (séc. VI).
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