Neste dia 19 de janeiro celebramos o II Domingo do Tempo Comum, dando início a este ciclo no qual o domingo ocupa um lugar primordial. Para aprofundar o seu sentido, publicaremos nos próximos dias (dividida em três partes) a Carta Apostólica Dies Domini do Papa João Paulo II sobre a santificação do domingo.
Nesta primeira parte publicamos a Introdução e os Capítulos I e II (nn. 1-30), que trazem os fundamentos teológicos e cristológicos do domingo, dia do Senhor e dia de Cristo:
João Paulo II
Carta Apostólica Dies Domini
Sobre a santificação do domingo
Introdução
Veneráveis Irmãos no episcopado e no sacerdócio,
Caríssimos irmãos e irmãs!
1. O dia do Senhor, como foi definido o domingo, desde os tempos
apostólicos [1], mereceu sempre, na história da Igreja,
uma consideração privilegiada devido à sua estreita conexão com o próprio
núcleo do mistério cristão. O domingo, de fato, recorda, no ritmo semanal do
tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a Páscoa da semana, na
qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento
n'Ele da primeira criação e o início da «nova criação» (cf. 2Cor 5,17).
É o dia da evocação adorante e grata do primeiro dia do mundo e, ao mesmo
tempo, da prefiguração, vivida na esperança, do «último dia», quando Cristo
vier na glória (cf. At 1,11; 1Ts 4,13-17) e
renovar todas as coisas (cf. Ap 21,5).
Ao domingo, portanto, aplica-se, com muito acerto, a exclamação do salmista:
«Este é o dia que Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria» (Sl 117,24). Este
convite à alegria, que a Liturgia de Páscoa assume como próprio, traz em si o
sinal daquele alvoroço que se apoderou das mulheres - elas que tinham assistido
à crucifixão de Cristo - quando, dirigindo-se ao sepulcro «muito cedo, no
primeiro dia depois do sábado» (Mc 16,2), o encontraram vazio. É
convite a reviver, de algum modo, a experiência dos dois discípulos de Emaús,
que sentiram «o coração a arder no peito», quando o Ressuscitado caminhava com
eles, explicando as Escrituras e revelando-Se ao «partir do pão» (cf. Lc 24,32.35).
É o eco da alegria, ao princípio hesitante e depois incontida, que os Apóstolos
experimentaram na tarde daquele mesmo dia, quando foram visitados por Jesus
ressuscitado e receberam o dom da sua paz e do seu Espírito (cf. Jo 20,19-23).
2. A Ressurreição de Jesus é o dado primordial sobre o qual se apoia a
fé cristã (cf. 1Cor 15,14): estupenda realidade, captada
plenamente à luz da fé, mas comprovada historicamente por aqueles que tiveram o
privilégio de ver o Senhor ressuscitado; acontecimento admirável que não só se
insere, de modo absolutamente singular, na história dos homens, mas que se
coloca no centro do mistério do tempo. Com efeito, a Cristo
«pertence o tempo e a eternidade», como lembra o rito de preparação do círio
pascal, na sugestiva Liturgia da noite de Páscoa. Por isso, a Igreja, ao
comemorar, não só uma vez ao ano mas em cada domingo, o dia da ressurreição de
Cristo, deseja indicar a cada geração aquilo que constitui o eixo fundamental
da história, ao qual fazem referência o mistério das origens e o do destino
final do mundo.
Portanto, pode-se com razão dizer, como sugere a homilia de um autor do
século IV, que o «dia do Senhor» é o «senhor dos dias» [2].
Todos os que tiveram a graça de crer no Senhor ressuscitado não podem deixar de
acolher o significado deste dia semanal, com o grande entusiasmo que fazia São Jerônimo dizer: «O domingo é o dia da ressurreição, é o dia dos cristãos, é o
nosso dia» [3]. De fato, ele é para os cristãos o «principal
dia de festa» [4], estabelecido não só para dividir a sucessão do tempo, mas
para revelar o seu sentido profundo.
3. A sua importância fundamental, reconhecida continuamente ao longo de
dois mil anos de história, foi reafirmada vigorosamente pelo Concílio Vaticano II:
«Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da Ressurreição de Cristo,
a Igreja celebra o Mistério Pascal todos os oito dias, no dia que bem se
denomina do Senhor ou domingo» [5]. Paulo VI ressaltou
novamente a sua importância, quando aprovou o novo Calendário Romano Geral e as
Normas Universais que regulam o ordenamento do Ano Litúrgico [6].
A iminência do terceiro milênio, ao solicitar os crentes a refletirem, à luz de
Cristo, sobre o caminho da história, convida-os também a redescobrir, com maior
ímpeto, o sentido do domingo: o seu «mistério», o valor da sua celebração, o
seu significado para a existência cristã e humana.
Com satisfação, vou tomando conhecimento das inúmeras intervenções do
Magistério e das iniciativas pastorais que, vós, veneráveis Irmãos no
episcopado, quer individualmente quer em conjunto - coadjuvados pelo vosso
clero - realizastes sobre este tema importante nestes anos pós-conciliares. No
limiar do Grande Jubileu do ano 2000, quis oferecer-vos esta Carta Apostólica
para alentar o vosso empenho pastoral num setor tão vital. Mas simultaneamente
desejo dirigir-me a todos vós, caríssimos fiéis, tornando-me de algum modo
presente espiritualmente nas várias comunidades onde, cada domingo, vos reunis
com os vossos respectivos Pastores para celebrar a Eucaristia e o «dia do
Senhor». Muitas das reflexões e sentimentos que animam esta Carta Apostólica
maturaram durante o meu serviço episcopal em Cracóvia e mais tarde, depois de
ter assumido o ministério de Bispo de Roma e Sucessor de Pedro, nas visitas às
paróquias romanas, realizadas com regularidade precisamente nos domingos dos
diversos períodos do ano litúrgico. Deste modo, parece-me prosseguir o diálogo
vivo que gosto de manter com os fiéis, refletindo convosco sobre o sentido do domingo
e sublinhando as razões para vivê-lo como verdadeiro «dia do Senhor»,
inclusivamente nas novas circunstâncias do nosso tempo.
4. Ninguém desconhece, com efeito, que, num passado relativamente
recente, a «santificação» do domingo era facilitada, nos países de tradição
cristã, por uma ampla participação popular e, inclusive, pela organização da
sociedade civil, que previa o descanso dominical como ponto indiscutível na legislação
relativa às várias atividades laborativas. Hoje, porém, mesmo nos países onde
as leis sancionam o caráter festivo deste dia, a evolução das condições
socioeconômicas acabou por modificar profundamente os comportamentos coletivos
e, consequentemente, a fisionomia do domingo. Impôs-se amplamente o costume do
«fim de semana», entendido como momento semanal de distensão, transcorrido,
talvez, longe da morada habitual e caracterizado, com frequência, pela
participação em atividades culturais, políticas e esportivas, cuja realização
coincide precisamente com os dias festivos. Trata-se de um fenômeno social e
cultural que não deixa, por certo, de ter elementos positivos, na medida em que
pode contribuir, no respeito de valores autênticos, para o desenvolvimento
humano e o progresso no conjunto da vida social. Isto é devido, não só à necessidade
do descanso, mas também à exigência de «festejar» que está dentro do ser
humano. Infelizmente, quando o domingo perde o significado original e se reduz
a puro «fim de semana», pode acontecer que o homem permaneça cerrado num
horizonte tão restrito, que não mais lhe permite ver o «céu». Então, mesmo bem
trajado, torna-se intimamente incapaz de «festejar» [7].
Aos discípulos de Cristo, contudo, lhes é pedido que não confundam a
celebração do domingo, que deve ser uma verdadeira santificação do dia do
Senhor, com o «fim de semana» entendido fundamentalmente como tempo de mero
repouso ou de diversão. Urge, a este respeito, uma autêntica maturidade
espiritual, que ajude os cristãos a «serem eles próprios», plenamente coerentes
com o dom da fé, sempre prontos a mostrar a esperança neles depositada
(cf. 1Pd 3,15). Isto implica também uma compreensão mais
profunda do domingo, para poder vivê-lo, inclusivamente em situações difíceis,
com plena docilidade ao Espírito Santo.
5. Deste ponto de vista, a situação apresenta-se bastante diversificada.
Por um lado, temos o exemplo de algumas Igrejas jovens que demonstram com
quanto fervor seja possível animar a celebração do domingo, tanto nas cidades
como nas aldeias mais afastadas. Ao contrário, noutras regiões, por causa das
dificuldades sociológicas mencionadas e talvez da falta de fortes motivações de
fé, regista-se uma percentagem significativamente baixa de participantes na Liturgia
dominical. Na consciência de muitos fiéis parece enfraquecer não só o sentido da
centralidade da Eucaristia, mas até mesmo o sentido do dever de dar graças ao
Senhor, rezando a Ele unido com os demais no seio da comunidade eclesial.
A tudo isto há que acrescentar que, não somente nos países de missão,
mas também nos de antiga evangelização, pela insuficiência de sacerdotes, não
se pode, às vezes, garantir a Celebração Eucarística dominical em todas as
comunidades.
6. Diante deste cenário de novas situações e questões anexas, parece
hoje mais necessário que nunca recuperar as profundas motivações
doutrinais que estão na base do preceito eclesial, para que apareça
bem claro a todos os fiéis o valor imprescindível do domingo na vida cristã.
Agindo assim, prosseguimos no rasto da tradição perene da Igreja, evocada
firmemente pelo Concílio Vaticano II quando ensinou que, ao domingo, «os fiéis
devem reunir-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a palavra de Deus, e
assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças
a Deus que os “regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus
Cristo de entre os mortos” (1Pd 1,3)» [8].
7. Com efeito, o dever de santificar o domingo, sobretudo com a
participação na Eucaristia e com um repouso permeado de alegria cristã e de
fraternidade, é fácil de compreender se se consideram as múltiplas dimensões
deste dia, que serão objeto da nossa atenção na presente Carta.
O domingo é um dia que está no âmago mesmo da vida cristã. Se, desde o
início do meu Pontificado, não me cansei de repetir: «Não tenhais medo! Abri,
melhor, escancarai as portas a Cristo» [9], hoje neste mesmo
sentido, gostaria de convidar vivamente a todos a redescobrirem o
domingo: Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo! Sim,
abramos o nosso tempo a Cristo, para que Ele possa iluminá-lo e dirigi-lo. É
Ele quem conhece o segredo do tempo e o segredo da eternidade, e nos entrega o
«seu dia», como um dom sempre novo do seu amor. Há de se implorar a graça da
descoberta sempre mais profunda deste dia, não só para viver em plenitude as
exigências próprias da fé, mas também para dar resposta concreta aos anseios
íntimos e verdadeiros existentes em todo ser humano. O tempo dado a Cristo,
nunca é tempo perdido, mas tempo conquistado para a profunda humanização das
nossas relações e da nossa vida.
Capítulo I: Dies Domini
«Tudo começou a existir por meio d'Ele»
(Jo 1,3)
8. O domingo, segundo a experiência cristã, é sobretudo uma festa
pascal, totalmente iluminada pela glória de Cristo ressuscitado. É a celebração
da «nova criação». Este seu caráter, porém, se bem entendido, é inseparável da
mensagem que a Escritura, desde as suas primeiras páginas, nos oferece acerca
do desígnio de Deus na criação do mundo. Com efeito, se é verdade que o Verbo
Se fez carne na «plenitude dos tempos» (Gl 4,4), também é certo
que, em virtude precisamente do seu mistério de Filho eterno do Pai, Ele é
origem e fim do universo. Afirma-o São João, no Prólogo do seu Evangelho: «Tudo
começou a existir por meio d'Ele, e sem Ele nada foi criado» (Jo 1,3). Também São Paulo, ao escrever aos colossenses, o sublinha: «N'Ele foram criadas todas as
coisas, nos Céus e na Terra, as visíveis e as invisíveis (...). Tudo foi criado
por Ele e para Ele» (Cl 1,16). Esta presença ativa do Filho na obra criadora de Deus
revelou-se plenamente no Mistério Pascal, no qual Cristo, ressuscitando como «primícias
dos que morreram» (1Cor 15,20), inaugurou a nova criação e deu
início ao processo que Ele mesmo levará a cabo no momento do seu retorno
glorioso, «quando entregar o Reino a Deus Pai (...), a fim de que Deus seja
tudo em todos» (1Cor 15,24.28).
Portanto, já na aurora da criação, o desígnio de Deus implicava esta
«missão cósmica» de Cristo. Esta perspectiva cristocêntrica, que se
estende sobre todo o arco do tempo, estava presente no olhar comprazido de Deus
quando, no fim da sua obra, «abençoou o sétimo dia e santificou-o» (Gn 2,3).
Nascia então - segundo o autor sacerdotal da primeira narração bíblica da
criação - o «sábado», que caracteriza profundamente a primeira Aliança e, de
algum modo, preanuncia o dia sagrado da nova e definitiva Aliança. O mesmo tema
do «repouso de Deus» (cf. Gn 2,2) e do repouso por Ele
oferecido ao povo do êxodo, com o ingresso na terra prometida (cf. Ex 33,14;
Dt 3,20; Js 21,44; Sl 94,11), é relido no
Novo Testamento sob uma luz nova, a do «repouso sabático» definitivo (cf. Hb 4,9),
onde entrou Cristo com a sua ressurreição e também o Povo de Deus é chamado a
entrar, perseverando na senda da sua obediência filial (cf. Hb 4,3-16).
É necessário, portanto, reler a grande página da criação e aprofundar a
teologia do «sábado», para chegar à plena compreensão do domingo.
«No princípio, Deus criou os céus e a terra» (Gn 1,1)
9. O estilo poético da narração do Gênesis atesta a admiração sentida
pelo homem diante da grandeza da criação e o sentimento de adoração que daí
deriva por Aquele que, do nada, criou todas as coisas. Trata-se de uma página
de intenso significado religioso, um hino ao Criador do universo, indicado como
o único Senhor ante as frequentes tentações de divinizar o próprio mundo, e
simultaneamente um hino à bondade da criação, toda ela plasmada pela mão forte
e misericordiosa de Deus.
«Deus viu que isto era bom» (Gn 1,10.12; etc.). Este refrão,
que acompanha a narração, projeta uma luz positiva sobre cada elemento do
universo, deixando, ao mesmo tempo, vislumbrar o segredo para a sua justa
compreensão e possível regeneração: o mundo é bom, na medida em que permanece
ancorado à sua origem e, após a sua deturpação pelo pecado, torna a ser bom
quando, com a ajuda da graça, volta àquele que o criou. Esta dialética,
certamente, não está a referir-se às coisas inanimadas e aos animais, mas aos
seres humanos, aos quais foi concedido o dom incomparável, mas também o risco
da liberdade. A Bíblia, logo após a narração da criação, põe precisamente em
evidência o contraste dramático entre a grandeza do homem, criado à imagem e
semelhança de Deus, e a sua queda, que abre no mundo o cenário obscuro do
pecado e da morte (cf. Gn 3).
10. Saído assim das mãos de Deus, o universo traz em si a imagem da sua
bondade. É um mundo belo, digno de ser admirado e gozado, mas também destinado
a ser cultivado e desenvolvido. A «completude» da obra de Deus abre o mundo ao
trabalho do homem. «Concluída, no sétimo dia, toda a obra que havia feito, Deus
repousou no sétimo dia, do trabalho por Ele realizado» (Gn 2,2).
Através desta evocação antropomórfica do «trabalho» divino, a Bíblia não
somente nos oferece uma indicação sobre a misteriosa relação entre o Criador e
o mundo criado, mas projeta também uma luz sobre a missão do homem para com o
universo. O «trabalho» de Deus é, de certa forma, exemplo para o homem. Este,
de fato, é chamado não só a habitar mas também a «construir» o mundo,
tornando-se, assim, «colaborador» de Deus. Os primeiros capítulos do Gênesis,
como escrevi na Encíclica Laborem exercens, constituem, de
certa forma, o primeiro «evangelho do trabalho» [10] é uma verdade também
ressaltada pelo Concílio Vaticano II: «O homem, criado à imagem de Deus,
recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o
mundo na justiça e na santidade e, reconhecendo Deus como Criador universal,
orientar-se a si e ao universo para Ele; de maneira que, estando todas as
coisas sujeitas ao homem, seja glorificado em toda a terra o nome de Deus» [11].
A realidade extraordinária do progresso da ciência, da técnica, da
cultura nas suas diversas expressões - um progresso sempre mais rápido, e hoje
até vertiginoso - é o fruto, na história do mundo, da missão com a qual Deus confiou
ao homem e à mulher a tarefa e a responsabilidade de se multiplicarem por toda
a terra e de a dominarem através do trabalho, observando a sua Lei.
O «shabbat»: o repouso jubiloso do Criador
11. Se, na primeira página do Gênesis, o «trabalho» de Deus é exemplo
para o homem, o é igualmente o seu «repouso»: «Deus repousou, no sétimo dia, do
trabalho por Ele realizado» (Gn 2,2). Também aqui nos encontramos
diante de um antropomorfismo, denso de uma mensagem sugestiva.
O «repouso» de Deus não pode ser interpretado de forma banal, como uma espécie
de «inatividade» de Deus. De fato, o ato criador, que está na constituição do
mundo, é permanente por sua própria natureza e Deus não cessa nunca de agir,
como o próprio Jesus quis lembrar precisamente com referência ao preceito
sabático: «Meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho» (Jo 5,17).
O repouso divino do sétimo dia não alude a um Deus inativo, mas sublinha a
plenitude do que fora realizado, como que a exprimir a paragem de Deus diante
da obra «muito boa» (Gn 1,31) saída das suas mãos, para lançar
sobre ela um olhar repleto de jubilosa complacência: um olhar
«contemplativo», que não visa novas realizações, mas sobretudo apreciar a
beleza de quanto foi feito; um olhar lançado sobre todas as coisas, mas
especialmente sobre o homem, ponto culminante da criação. É um olhar no qual já
se pode, de certa forma, intuir a dinâmica «esponsal» da relação que Deus quer
estabelecer com a criatura feita à sua imagem, chamando-a a comprometer-se num
pacto de amor. É o que Ele realizará progressivamente, em vista da salvação
oferecida à humanidade inteira, mediante a aliança salvífica estabelecida com
Israel e culminada, depois, em Cristo: será precisamente o Verbo encarnado,
através do dom escatológico do Espírito Santo e da constituição da Igreja como
seu Corpo e sua Esposa, que estenderá a oferta de misericórdia e a proposta do
amor do Pai a toda humanidade.
12. No desígnio do Criador, existe certamente uma distinção, mas também
uma íntima conexão entre as ordens da criação e da salvação. Já o Antigo
Testamento o destaca quando põe o mandamento referente ao «shabbat» em
relação não só com o misterioso «repouso» de Deus depois dos dias da atividade
criadora (cf. Ex 20,8-11), mas também com a salvação oferecida
por Ele a Israel na libertação da escravidão do Egito (cf. Dt 5,12-15).
O Deus que descansa ao sétimo dia comprazendo-Se pela sua criação, é o mesmo
que mostra a sua glória ao libertar os seus filhos da opressão do faraó. Tanto
num caso como noutro poder-se-ia dizer, segundo uma imagem cara aos profetas,
que Ele Se manifesta como o esposo diante da esposa (cf. Os 2,16-24; Jr 2,2; Is 54,4-8).
De fato, para entrar no âmago do «shabbat»,
do «repouso» de Deus, como sugerem precisamente alguns
elementos da tradição hebraica [12], ocorre captar a densidade esponsal que
caracteriza, do Antigo ao Novo Testamento, a relação de Deus com o seu povo.
Assim a exprime, por exemplo, esta página maravilhosa de Oseias: «Farei em
favor dela, naquele dia, uma aliança, com os animais selvagens, com as aves do
céu e com os répteis da terra: farei desaparecer da terra o arco, a espada e a
guerra e os farei repousar em segurança. Então te desposarei para sempre;
desposar-te-ei conforme a justiça e o direito, com misericórdia e amor. Desposar-te-ei
com fidelidade, e tu conhecerás o Senhor» (Os 2,20-22).
«Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o» (Gn 2,3)
13. O preceito do sábado, que na primeira Aliança prepara o domingo da
nova e eterna Aliança, radica-se, portanto, na profundidade do desígnio de
Deus. Precisamente por isso, não está situado junto das normativas puramente
cultuais, como é o caso de tantos outros preceitos, mas dentro do Decálogo, as
«dez palavras» que delineiam os próprios pilares da vida moral, inscrita
universalmente no coração do homem. Concebendo este mandamento no horizonte das
estruturas fundamentais da ética, Israel e, depois, a Igreja mostram que não o
consideram uma simples norma de disciplina religiosa comunitária, mas uma
expressão qualificante e imprescindível da relação com Deus, anunciada e
proposta pela revelação bíblica. É nesta perspectiva que tal preceito há de
ser, também hoje, redescoberto pelos cristãos. Se possui também uma
convergência natural com a necessidade humana de repouso é, contudo, à fé que é
preciso fazer apelo para captar o seu sentido profundo, evitando o risco de
banalizá-lo e trai-lo.
14. Portanto, o dia do repouso é tal primariamente porque é o dia
«abençoado» por Deus e por Ele «santificado», isto é, separado dos demais dias
para ser, de entre todos, o «dia do Senhor».
Para compreender plenamente o sentido desta «santificação» do sábado na
primeira narração bíblica da criação, é necessário contemplar o texto no seu
conjunto, que mostra com nitidez como toda a realidade, sem exceção, tem a ver
com Deus. O tempo e o espaço pertencem-Lhe. Ele não é Deus de um dia só, mas de
todos os dias do homem.
Assim, pois, se Ele «santifica» o sétimo dia com uma bênção especial e
faz dele o «seu dia» por excelência, isto há de entender-se precisamente na profunda
dinâmica do diálogo de aliança, melhor, do diálogo «esponsal». É um diálogo de
amor que, apesar de não conhecer interrupções, não é monótono: desenrola-se, de
fato, valendo-se das diversas tonalidades do amor, desde as manifestações
ordinárias e indiretas até as mais intensas, que as palavras da Escritura e,
depois, os testemunhos de tantos místicos não temem descrever com imagens
extraídas da experiência do amor nupcial.
15. Na verdade, a vida inteira do homem e todo o seu tempo, devem ser
vividos como louvor e agradecimento ao seu Criador. Mas a relação do homem com
Deus necessita também de momentos explicitamente de oração, nos
quais a relação se torna diálogo intenso, envolvendo toda a dimensão da pessoa.
O «dia do Senhor» é, por excelência, o dia desta relação, no qual o homem eleva
a Deus o seu canto, tornando-se eco da inteira criação.
Por isso mesmo, é também o dia do repouso: a interrupção do
ritmo, muitos vezes opressor, das ocupações exprime, com a linguagem figurada
da «novidade» e do «desprendimento», o reconhecimento da dependência de nós
mesmos e do universo de Deus. Tudo é de Deus! O dia do Senhor está
continuamente a afirmar este princípio. Assim, o «sábado» da revelação bíblica
foi sugestivamente interpretado como um elemento qualificante naquela espécie
de «arquitetura sagrada» do tempo que caracteriza a revelação
bíblica [13]. Ele nos lembra que a Deus pertencem o universo e a
história, e o homem não pode dedicar-se à sua obra de colaboração com o
Criador, sem ter constantemente em consideração esta verdade.
«Recordar» para «santificar»
16. O mandamento do Decálogo, pelo qual Deus impõe a observância do
sábado, tem, no livro do Êxodo, uma formulação característica: «Recorda-te do
dia de sábado, para o santificares» (20,8). E mais adiante, o texto inspirado
dá a razão disso mesmo, apelando-se à obra de Deus: «Porque em seis dias o
Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo quanto contém, e descansou no sétimo;
por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e santificou-o» (v. 11). Antes de impor
qualquer coisa a ser praticada, o mandamento indica algo a recordar.
Convida a avivar a memória daquela grande e fundamental obra de Deus que é a
criação. É uma memória que deve animar toda a vida religiosa do homem, para
depois confluir no dia em que ele é chamado a repousar. O repouso
assume, assim, um típico valor sagrado: o fiel é convidado a repousar não
só como Deus repousou, mas a repousar no Senhor,
devolvendo-Lhe toda a criação, no louvor, na ação de graças, na intimidade
filial e na amizade esponsal.
17. O tema da «lembrança» das maravilhas realizadas por Deus, posto em
relação com o repouso sabático, aparece também no texto do Deuteronômio
(Dt 5,12-15), onde o fundamento do preceito é visto não tanto na obra da criação como
sobretudo na libertação efetuada por Deus no êxodo: «Recorda-te de que foste
escravo do país do Egito, donde o Senhor, teu Deus, te fez sair com mão forte e
braço poderoso. É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o
dia de Sábado» (Dt 5,15).
Esta formulação é complementar da precedente: consideradas juntas, elas
revelam o sentido do «dia do Senhor» no âmbito de uma perspectiva unitária de
teologia da criação e da salvação. O conteúdo do preceito não é, pois,
primariamente uma interrupção do trabalho qualquer, mas a celebração das
maravilhas realizadas por Deus.
Na medida em que esta «lembrança», repleta de gratidão e louvor
a Deus, está viva, o repouso do homem, no dia do Senhor,
assume o seu pleno significado. Por ele, o homem entra na dimensão do «repouso»
de Deus para dele participar em profundidade, tornando-se assim capaz de
experimentar aquele regozijo de alegria que o próprio Criador sentiu depois da
criação, vendo que toda a sua obra «era coisa muito boa» (Gn 1,31).
Passagem do sábado ao domingo
18. Por esta dependência essencial que o terceiro mandamento tem da
memória das obras salvíficas de Deus, os cristãos, apercebendo-se da
originalidade do tempo novo e definitivo inaugurado por Cristo, assumiram como
festivo o primeiro dia depois do sábado, porque nele se deu a Ressurreição do
Senhor. De fato, o Mistério Pascal de Cristo constitui a revelação plena do
mistério das origens, o cume da história da salvação e a antecipação do
cumprimento escatológico do mundo. Aquilo que Deus realizou na criação e o que
fez pelo seu povo no êxodo, encontrou na Morte e Ressurreição de Cristo o seu
cumprimento, embora este tenha a sua expressão definitiva apenas na parusia, com a vinda gloriosa de Cristo.
N'Ele se realiza plenamente o sentido «espiritual» do sábado, como o sublinha
S. Gregório Magno: «Nós consideramos verdadeiro sábado a pessoa do nosso Redentor,
nosso Senhor Jesus Cristo» [14]. Por isso, a alegria com
que Deus, no primeiro sábado da humanidade, contempla a criação feita do nada,
exprime-se doravante pela alegria com que Cristo apareceu aos seus, no domingo
de Páscoa, trazendo o dom da paz e do Espírito (cf. Jo 20,19-23).
De fato, no Mistério Pascal, a condição humana e, com ela, toda a criação, que
geme e sofre as dores de parto até ao presente (cf. Rm 8,22)
conheceu o seu novo «êxodo» para a liberdade dos filhos de Deus, que podem
gritar, com Cristo, «Abbá, Pai» (Rm 8,15; Gl 4,6).
À luz deste mistério, o sentido do preceito veterotestamentário do dia do
Senhor é recuperado, integrado e plenamente revelado na glória que brilha na
face de Cristo Ressuscitado (cf. 2Cor 4,6). Do «sábado»
passa-se ao «primeiro dia depois do sábado», do sétimo dia passa-se ao primeiro
dia: o dies Domini torna-se o dies Christi!
Capítulo II: Dies Christi
O dia do Senhor Ressuscitado e do dom do Espírito
A Páscoa
semanal
19. «Nós celebramos o domingo, devido à venerável Ressurreição de nosso
Senhor Jesus Cristo, não só na Páscoa, mas inclusive em cada ciclo semanal»:
assim escrevia o Papa Inocêncio I, nos começos do século V [15], testemunhando
um costume já consolidado, que se tinha vindo a desenvolver logo desde os
primeiros anos após a Ressurreição do Senhor. São Basílio fala do «santo
domingo, honrado pela Ressurreição do Senhor, primícias de todos os outros dias» [16]. S. Agostinho chama o domingo «sacramento da Páscoa» [17].
Esta ligação íntima do domingo com a Ressurreição do Senhor é fortemente
sublinhada por todas as Igrejas, tanto do Ocidente como do Oriente. De modo
particular na tradição das Igrejas Orientais, cada domingo é a anastàsimos
hemèra, o dia da Ressurreição [18], e precisamente
por esta sua característica, é o centro de todo o culto.
À luz desta tradição ininterrupta e universal, vê-se com toda a clareza
que, embora o «dia do Senhor» tenha as suas raízes, como se disse, na mesma
obra da criação, e mais diretamente no mistério do «repouso» bíblico de Deus,
contudo é preciso fazer referência especificamente à Ressurreição de Cristo
para se alcançar o pleno sentido daquele. É o que faz o domingo cristão, ao
repropor cada semana à consideração e à vida dos crentes o evento pascal, donde
mana a salvação do mundo.
20. Segundo o unânime testemunho evangélico, a Ressurreição de Jesus
Cristo dentre os mortos aconteceu no «primeiro dia depois do sábado» (Mc 16,2.9; Lc 24,1; Jo 20,1).
Naquele mesmo dia, o Ressuscitado manifestou-Se aos dois discípulos de Emaús
(cf. Lc 24,13-35) e apareceu aos onze Apóstolos que estavam
reunidos (cf. Lc 24,36; Jo 20,19). Passados oito dias -
como testemunha o Evangelho de São João (cf. Jo 20,26) - os discípulos estavam
novamente juntos, quando Jesus lhes apareceu e fez-Se reconhecer por Tomé,
mostrando os sinais da sua Paixão. Era domingo, o dia de Pentecostes, primeiro
dia da oitava semana após a páscoa judaica (cf. At 2,1),
quando, com a efusão do Espírito Santo, se cumpriu a promessa feita por Jesus
aos Apóstolos depois da ressurreição (cf. Lc 24,49; At 1,4-5).
Aquele foi o dia do primeiro anúncio e dos primeiros batismos: Pedro proclamou
à multidão reunida que Cristo tinha ressuscitado, e «os que aceitaram a sua
palavra receberam o batismo» (At 2,41). Foi a epifania da Igreja,
manifestada como povo que congrega na unidade, independentemente de toda a
variedade, os filhos de Deus dispersos.
O primeiro dia da semana
21. É nesta base que, desde os tempos apostólicos, «o primeiro dia
depois do sábado», primeiro da semana, começou a caracterizar o próprio ritmo
da vida dos discípulos de Cristo (cf. 1Cor 16,2). «Primeiro dia
depois do sábado» era também aquele em que os fiéis de Trôade estavam reunidos
«para partir o pão», quando S. Paulo lhes dirigiu o discurso de despedida e
realizou um milagre para devolver a vida ao jovem Êutico (cf. At 20,7-12).
O livro do Apocalipse testemunha o costume de dar a este primeiro dia da semana
o nome de «dia do Senhor» (1,10). Doravante isto será uma das características
que distinguirão os cristãos do mundo circunstante. Já o apontava, ao início do
segundo século, o governador da Bitínia, Plínio o Jovem, constatando o hábito
dos cristãos «se reunirem num dia fixo, antes da aurora, e entoarem juntos um
hino a Cristo, como a um deus» [19]. De fato, quando os
cristãos diziam «dia do Senhor», faziam-no atribuindo ao termo a plenitude de
sentido que lhe vem da mensagem pascal: «Jesus Cristo é o Senhor» (Fl 2,11;
cf. At 2,36; 1Cor 12,3). Reconhecia-se, deste
modo, Cristo com o mesmo título usado pelos Setenta para traduzirem, na
revelação do Antigo Testamento, o nome próprio de Deus, YHWH, que não era
lícito pronunciar.
22. Nestes primeiros tempos da Igreja, o ritmo semanal dos dias não era
geralmente conhecido nas regiões onde o Evangelho se difundia, e os dias
festivos dos calendários grego e romano não coincidiam com o domingo cristão.
Isto comportava para os cristãos uma notável dificuldade para observar o dia do
Senhor, com o seu caráter fixo semanal. Assim se explica porque os fiéis eram
obrigados a reunirem-se antes do nascer do sol [20]. Todavia, a fidelidade
ao ritmo semanal mantinha-se porque estava fundada no Novo Testamento e ligada
à revelação do Antigo Testamento. Os Apologistas e os Padres da Igreja
sublinham-no de bom grado nos seus escritos e na sua pregação. O Mistério Pascal
era ilustrado através daqueles textos da Escritura que, conforme o testemunho
de São Lucas (cf. Lc 24,27.44-47), o próprio Cristo ressuscitado devia ter
explicado aos discípulos. Baseada nesses textos, a celebração do dia da Ressurreição
adquiria um valor doutrinal e simbólico, capaz de exprimir toda a novidade do
mistério cristão.
Progressiva distinção do sábado
23. É precisamente sobre esta novidade que insiste a catequese dos
primeiros séculos, procurando distinguir o domingo do sábado hebraico. O
sábado, para os judeus, impunha o dever da reunião na sinagoga e exigia a
prática do repouso prescrito pela Lei. Os Apóstolos, e de modo particular São Paulo, continuaram de início a frequentar a sinagoga, para poderem anunciar lá
Jesus Cristo, ao comentar «as profecias que são lidas todos os sábados» (At 13,27).
Em algumas comunidades, podia-se registar a coexistência da observância do
sábado com a celebração dominical. Bem cedo, porém, se começou a diferenciar os
dois dias de forma cada vez mais nítida, sobretudo para fazer frente às
insistências daqueles cristãos que, vindos do judaísmo, eram favoráveis à
conservação da obrigação da Lei Antiga. Santo Inácio de Antioquia escreve: «Se os
que viviam no antigo estado de coisas passaram a uma nova esperança, deixando
de observar o sábado e vivendo segundo o dia do Senhor, dia em que a nossa vida
despontou por meio d'Ele e da sua morte (...), mistério do qual recebemos a fé
e no qual perseveramos para sermos reconhecidos discípulos de Cristo, nosso
único Mestre, como poderemos viver sem Ele, se inclusive os profetas, que são
seus discípulos no Espírito, O aguardavam como mestre?» [21].
E Santo Agostinho, por sua vez, observa: «Por isso, o Senhor também imprimiu o seu
selo no seu dia, que é o terceiro após a Paixão. Porém, no ciclo semanal,
aquele é o oitavo depois do sétimo, isto é, depois do sábado, e o primeiro da
semana» [22]. A distinção entre o domingo e o sábado
hebraico vai-se consolidando sempre mais na consciência eclesial, mas em certos
períodos da história, devido à ênfase dada à obrigação do descanso festivo, regista-se
certa tendência à «sabatização» do dia do Senhor. Não faltaram, inclusive, setores
da cristandade em que o sábado e o domingo foram observados como «dois dias
irmãos» [23].
O dia da nova criação
24. A comparação do domingo cristão com a concepção do sábado, própria
do Antigo Testamento, suscitou também aprofundamentos teológicos de grande
interesse. De modo particular evidenciou-se a ligação especial que existe entre
a Ressurreição e a criação. Era, de fato, natural para a reflexão cristã
relacionar a Ressurreição, acontecida «no primeiro dia da semana», com o
primeiro dia daquela semana cósmica (cf. Gn 1,1-2,4) em que o Livro do Gênesis divide o evento da criação: o dia da criação da luz (cf. Gn 1,3-5). O relacionamento feito convidava a ver a Ressurreição como o início de
uma nova criação, da qual Cristo glorioso constitui as primícias, sendo Ele «o
Primogênito de toda a criação» (Cl 1,15), e também «o Primogênito
dos que ressuscitam dos mortos» (Cl 1,18).
25. O domingo, com efeito, é o dia em que, mais do que qualquer outro, o
cristão é chamado a lembrar da salvação que lhe foi oferecida no Batismo e que
o tornou homem novo em Cristo. «Sepultados com Ele no Batismo, foi também com
Ele que ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que O ressuscitou dos mortos»
(Cl 2,12; cf. Rm 6,4-6). A Liturgia põe em evidência
esta dimensão batismal do domingo, quer exortando a celebrar os batismos, para
além da Vigília Pascal, também neste dia da semana «em que a Igreja comemora a
Ressurreição do Senhor» [24], quer sugerindo, como oportuno rito
penitencial no início da Missa, a aspersão com a água benta, que evoca
precisamente o evento batismal em que nasce toda a existência cristã [25].
O oitavo dia, imagem da eternidade
26. Por outro lado, o fato de o sábado ser o sétimo dia da semana fez
considerar o dia do Senhor à luz de um simbolismo complementar, muito apreciado
pelos Padres: o domingo, além de ser o primeiro dia, é também «o oitavo dia»,
ou seja, situado, relativamente à sucessão setenária dos dias, numa posição
única e transcendente, evocadora não só do início do tempo, mas também do seu
fim no «século futuro». S. Basílio explica que o domingo significa o dia
realmente único que virá após o tempo atual, o dia sem fim, que não conhecerá
tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o
prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os
estimula no seu caminho [26]. Nesta perspectiva do dia último, que realiza
plenamente o simbolismo prefigurativo do sábado, Santo Agostinho conclui as
Confissões falando do eschaton como «paz tranquila, paz do
sábado, que não entardece» [27]. A celebração do domingo,
dia simultaneamente «primeiro» e «oitavo», orienta o cristão para a meta da
vida eterna [28].
O dia de Cristo-luz
27. Nesta perspectiva cristocêntrica, compreende-se outra valência
simbólica que a reflexão crente e a prática pastoral atribuíram ao dia do
Senhor. De fato, uma perspicaz intuição pastoral sugeriu à Igreja de
cristianizar, aplicando-a ao domingo, a conotação de «dia do sol», expressão
esta com que os romanos denominavam este dia e que ainda aparece em algumas
línguas contemporâneas [29], subtraindo os fiéis às seduções de cultos que
divinizavam o sol e orientando a celebração deste dia para Cristo, verdadeiro
«sol» da humanidade. S. Justino, escrevendo aos pagãos, utiliza a terminologia
corrente para dizer que os cristãos faziam a sua reunião «no chamado dia do
sol» [30], mas a alusão a esta expressão assume, já então, para os crentes
um novo sentido perfeitamente evangélico [31]. Cristo é
realmente a luz do mundo (cf. Jo 9,5; veja-se também Jo 1,4-5.9),
e o dia comemorativo da sua Ressurreição é o reflexo perene, no ritmo semanal
do tempo, desta epifania da sua glória. O tema do domingo, como dia iluminado
pelo triunfo de Cristo ressuscitado, está presente na Liturgia das Horas [32],
e possui uma ênfase especial na vigília noturna que, nas Liturgias orientais,
prepara e introduz o domingo. Reunindo-se neste dia, a Igreja, de geração em
geração, torna própria a admiração de Zacarias, quando dirige o olhar para Cristo
anunciando-O como «o sol nascente para iluminar os que se jazem nas trevas e na
sombra da morte» (Lc 1,78-79), e vibra em sintonia com a alegria
experimentada por Simeão quando tomou em seus braços o Deus Menino enviado como
«luz para iluminar as nações» (Lc 2,32).
O dia do dom do Espírito
28. Dia de luz, o domingo poderia chamar-se também, com referência ao
Espírito Santo, dia do «fogo». A luz de Cristo, de fato, liga-se intimamente com
o «fogo» do Espírito, e ambas as imagens indicam o sentido do
domingo cristão [33]. Mostrando-Se aos Apóstolos no entardecer do dia de
Páscoa, Jesus soprou sobre eles e disse: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a
quem perdoardes os pecados, estes lhes serão perdoados; àqueles a quem os retiverdes,
estes lhes serão retidos» (Jo 20,22-23). A efusão do Espírito foi o
grande dom do Ressuscitado aos seus discípulos no domingo de Páscoa. Era também
domingo, quando, cinquenta dias após a Ressurreição, o Espírito desceu com
força, como «vento impetuoso» e «fogo» (At 2,2-3) sobre os
Apóstolos reunidos com Maria. O Pentecostes não é só um acontecimento das
origens, mas um mistério que anima perenemente a Igreja [34].
Se tal acontecimento tem o seu tempo litúrgico forte na celebração anual com
que se encerra o «grande domingo» [35], ele permanece também inscrito,
precisamente pela sua íntima ligação com o Mistério Pascal, no sentido profundo
de cada domingo. A «Páscoa da semana» torna-se assim, de certa forma,
«Pentecostes da semana», no qual os cristãos revivem a experiência feliz do
encontro dos Apóstolos com o Ressuscitado, deixando-se vivificar pelo sopro do
seu Espírito.
O dia da fé
29. Por todas estas dimensões que o caracterizam, o domingo revela-se
como o dia da fé por excelência. Nele, o Espírito Santo, «memória» viva da
Igreja (cf. Jo 14,26), faz da primeira manifestação do
Ressuscitado um evento que se renova no «hoje» de cada um dos discípulos de
Cristo. Encontrando-O na assembleia dominical, os crentes sentem-se interpelados
como o apóstolo Tomé: «Chega aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a
tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente» (Jo 20,27).
Sim, o domingo é o dia da fé. Salienta-o o fato de a Liturgia dominical, como
de resto a das solenidades litúrgicas, prever a profissão de fé. O «Credo»,
recitado ou cantado, põe em relevo o caráter batismal e pascal do domingo,
fazendo deste o dia em que, por título especial, o batizado renova a própria
adesão a Cristo e ao seu Evangelho, numa consciência mais viva das promessas
batismais. Acolhendo a Palavra e recebendo o Corpo do Senhor, ele contempla
Jesus ressuscitado, presente nos «sinais sagrados», e confessa com o apóstolo
Tomé: «Meu Senhor e meu Deus!» (Jo 20,28).
Um dia irrenunciável!
30. Compreende-se assim, porque mesmo no contexto das dificuldades do
nosso tempo, a identidade deste dia deva ser salvaguardada e, sobretudo, vivida
profundamente. Um autor oriental, do início do século III, conta que em toda a
região os crentes, já então, santificavam regularmente o domingo [36]. A
prática espontânea tornou-se depois, norma sancionada juridicamente: o dia do
Senhor ritmou a história bimilenária da Igreja. Como se poderia pensar que ele
deixe de marcar o seu futuro? Os problemas que, no nosso tempo, podem tornar
mais difícil a prática do dever dominical, não deixam de sensibilizar a Igreja
permanecendo maternalmente atenta às condições de cada um dos seus filhos. De
modo particular, ela sente-se chamada a um novo esforço catequético e pastoral,
para que nenhum deles, nas condições normais de vida, fique privado do
abundante fluxo de graças que a celebração do dia do Senhor traz consigo.
Dentro do mesmo espírito, tomando posição acerca de hipóteses de reforma do
calendário eclesial em concomitância com variações dos sistemas do calendário
civil, o Concílio Ecumênico Vaticano II declarou que a Igreja «não se opõe
àqueles que conservam a semana de sete dias, com o respectivo domingo» [37]. No
limiar do terceiro milênio, a celebração do domingo cristão, pelos significados
que evoca e as dimensões que implica, relativamente aos fundamentos mesmos da
fé, permanece um elemento qualificante da identidade cristã.
Notas
[1] cf. Ap 1,10:
«Kyriake heméra»; cf. também Didaché 14,1;
Santo Inácio de Antioquia, Aos cristãos da Magnésia 9,1-2: SC 10,
88-89.
[2] Pseudo-Eusébio de Alexandria, Sermão 16: PG 86,
416.
[3] In die dominica Paschae II, 52: CCL 78,
550.
[4] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum
Concilium, 106.
[5] ibid.
[6] cf. Motu proprio Mysterii paschalis (14 de fevereiro
de 1969).
[7] cf. Nota pastoral da
Conferência Episcopal Italiana, « Il giorno del Signore » (15
de julho de 1984), n. 5.
[8] Sacrosanctum Concilium, 106.
[9] Homilia no início do Pontificado (22 de outubro de 1978), 5.
[10] Encíclica Laborem exercens, n. 25..
[11] Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 34.
[12] O sábado é vivido pelos nossos irmãos hebreus com uma
espiritualidade «esponsal», como resulta, por exemplo, dos textos do Gênesis
Rabbah X, 9 e XI, 8 (cf. Jacob Neusner, Genesis Rabbah,
vol. I (Atlanta, 1985), 107 e 117). De tom nupcial, é também o cântico Leka
dôdi: «O teu Deus Se alegrará por ti, como é feliz o esposo com a esposa (...).
Para o meio dos fiéis do teu povo predileto vem, ó esposa, rainha do shabbat»
(cf. Prece vespertina do sábado, de A. Toaff (Roma, 1968-69), p. 3.
[13] cf. A. J. Heschel, The
sabbath. Its meaning for modern man, 22 ed., 1995, pp. 3-24.
[14] «Verum autem sabbatum ipsum redemptorem nostrum Iesum Christum
Dominum habemus»: Epis. 13,1: CCL 140A,
992.
[15] Epistula ad Decentium
XXV, 4, 7: PL 20, 555.
[16] Homiliae in Hexaemeron II, 8: SC 26, 184.
[17] In Io. ev. tractatus XX, 20, 2: CCL 36,
203; Epist. 55, 2: CSEL 34, 170-171.
[18] Esta referência à Ressurreição é particularmente visível na língua
russa, onde domingo se diz precisamente voskresén'e, «ressurreição».
[19] Epistula 10, 96, 7.
[20] Cf. ibid. A propósito da referência feita pela carta de
Plínio, também Tertuliano lembra os coetus antelucani, em Apologeticum 2,6: CCL 1,
88; De corona 3,3: CCL 2, 1043.
[21] Aos cristãos da Magnésia 9, 1-2: SC 10,
88-89.
[22] Sermo 8 in octava Paschalis 1, 4: PL 46,
841. Este caráter de «primeiro dia» próprio do domingo é evidente no calendário
litúrgico latino, onde a segunda-feira se diz feria secunda, a terça, feria
tertia, etc. Tal denominação dos dias da semana encontra-se na língua
portuguesa.
[23] S. Gregório de Nissa, De castigatione: PG 46,
309. Também na Liturgia Maronita se sublinha a ligação entre o sábado e o
domingo, a partir do «mistério do Sábado Santo» (cf. M. Hayek, Maronite
(Eglise): Dictionnaire de spiritualité, X, 1980, 632-644).
[24] Ritual do Batismo das crianças, n. 9; cf. Ritual
da iniciação cristã dos adultos, n. 59.
[25] cf. Missal Romano,
Rito para a aspersão dominical da água benta.
[26] cf. Sobre o Espírito
Santo, 27, 66: SC 17, 484-485. Ver também Epístola de
Barnabé 15, 8-9: SC 172, 186-189; Justino, Diálogo
com Trifão 24.138: PG 6,528 e 793; Orígenes, Comentário
sobre os Salmos, Salmo 118 (119), 1: PG 12, 1588.
[27] «Domine, praestitisti nobis pacem quietis, pacem sabbati, pacem
sine vespera»: Conf., 13, 50: CCL 27, 272.
[28] cf. S. Agostinho, Epist.
55, 17: CSEL 34, 188: «Ita ergo erit octavus, qui primus,
ut prima vita sed aeterna reddatur».
[29] No inglês, por exemplo, Sunday, e no alemão Sonntag.
[30] Apologia I, 67: PG 6,430.
[31] cf. S. Máximo de
Turim, Sermo 44, 1: CCL 23, 178; idem, Sermo 53,
2: CCL 12, 219; Eusébio de Cesareia, Comm. in Ps 91: PG 23,
1169-1173.
[32] Veja-se, por exemplo, o hino para o Ofício das Leituras: «Dies
aestasque ceteris octava splendet sanctior in te quam, Iesu, consecras primitiae
surgentium » (I semana); e também: «Salve dies, dierum gloria, dies
felix Christi victoria, dies digna iugi laetitia dies prima. Lux divina caecis
irradiat, in qua Christus infernum spoliat, mortem vincit et reconciliat summis
ima» (II semana). Idênticas expressões aparecem em hinos adotados na
Liturgia das Horas de diversas línguas modernas.
[33] cf. Clemente de
Alexandria, Stromates, VI, 138, 1-2: PG 9,364.
[34] cf. João Paulo II, Carta Enc. Dominum
et vivificantem (18 de maio de 1986), 22-26.
[35] S. Atanásio de Alexandria, Cartas dominicais, 1,10: PG 26,1366.
[36] cf. Bardesane, Diálogo
sobre o destino, 46: PS 2, 606-607.
[37] Sacrosanctum Concilium, Apêndice: Declaração
sobre a reforma do calendário.
Fonte: Santa Sé.
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