No contexto da celebração dos 1700 anos do I Concílio de Niceia (325) pelas Igrejas do Oriente e do Ocidente estamos recordando as quatro meditações do Padre Raniero Cantalamessa, então Pregador da Casa Pontifícia, sobre a teologia do Oriente e do Ocidente durante a Quaresma de 2015
Propomos a seguir a terceira meditação, sobre o mistério do Espírito Santo:
Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
IV pregação de Quaresma
20 de março de 2015
Oriente e Ocidente perante o mistério do Espírito Santo
Meditaremos hoje sobre a fé
comum do Oriente e do Ocidente no Espírito Santo e procuraremos fazê-lo “no
Espírito”, em sua presença, sabendo que, como diz a Escritura, “antes mesmo de
nossa palavra chegar à língua, Ele já a conhece” (cf. Sl 138,4).
1. Rumo ao acordo sobre o Filioque
Durante séculos a doutrina
sobre a origem do Espírito Santo no seio da Trindade foi o ponto de maior
atrito e tema de acusações mútuas entre o Oriente e o Ocidente, por causa do
famoso “Filioque”. Tentarei reconstruir o estado da questão para avaliar
melhor a graça que Deus está nos dando de chegar ao entendimento também neste
problema espinhoso.
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Vitral do Espírito Santo (Abside da Basílica de São Pedro) |
A fé da Igreja no Espírito
Santo foi definida, como se sabe, no Concílio Ecumênico de Constantinopla, em
381, com as seguintes palavras: “(cremos) no Espírito Santo, Senhor que dá a
vida, que procede do Pai e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, Ele que
falou pelos profetas” (Denzinger, n. 150). Esta fórmula contém a
resposta para as duas perguntas fundamentais sobre o Espírito Santo. À pergunta
“quem é o Espírito
Santo”, responde-se que é “Senhor” (isto é, pertence à esfera do Criador, não
das criaturas), que procede do Pai e, na adoração, é igual ao Pai e ao Filho; à
pergunta “o que o Espírito Santo faz”, responde-se que Ele “dá a
vida” (o que resume toda a obra santificadora, interior e renovadora do
Espírito) e que “falou pelos profetas” (o que resume a ação carismática do
Espírito Santo).
Apesar destes elementos de
grande valor, deve-se dizer, no entanto, que o artigo reflete um estágio ainda
provisório, se não da fé, pelo menos da terminologia sobre o Espírito Santo. A
lacuna mais óbvia é que ainda não se atribui explicitamente ao Espírito Santo o
título de “Deus”. O primeiro a lamentar esta reticência foi São Gregório
Nazianzeno, que, por conta própria, tinha escrito: “O Espírito é Deus?
Certamente! Então é consubstancial (homousion)? É claro que sim, se é
verdade que Ele é Deus” [1]. Esta lacuna foi preenchida na prática da Igreja,
que, superados os motivos contingentes que até então a tinham contido, não
hesitou em atribuir ao Espírito o título de “Deus” e em defini-lo como
“consubstancial” ao Pai e ao Filho.
Mas esta não era a única
“lacuna”. Do ponto de vista da história da salvação, não deveria tardar em
parecer estranho que a única obra atribuída ao Espírito fosse a de ter “falado
pelos profetas”, silenciando-se todas as suas outras obras e, especialmente, a
sua atividade no Novo Testamento, na vida de Jesus. Mais uma vez, o complemento
da fórmula dogmática ocorreu espontaneamente na vida da Igreja, como fica
evidente nesta epiclese da Liturgia dita de São Tiago, em que se atribui ao
Espírito o título de consubstancial:
“Enviai... o vosso Santíssimo Espírito,
Senhor que dá a vida, que está sentado convosco, Deus e Pai, e com o vosso
Filho Unigênito; que reina, consubstancial e coeterno. Ele falou na Lei, nos
Profetas e no Novo Testamento; desceu em forma de pomba sobre nosso Senhor
Jesus Cristo no rio Jordão, repousando sobre Ele, e desceu sobre os santos Apóstolos...
no dia do Santo Pentecostes” [2].
Outro ponto, o mais
importante, sobre o qual a fórmula conciliar nada dizia, era a relação entre o
Espírito Santo e o Filho, e, consequentemente, entre cristologia e
pneumatologia. A única menção a respeito era a frase “encarnou-se pelo Espírito
Santo no seio da Virgem Maria”, que provavelmente já fazia parte do Símbolo de
fé que o Concílio de Constantinopla tinha adotado como base do seu credo.
Quanto a este ponto, a
integração do Símbolo aconteceu de maneira menos unívoca e pacífica. Alguns
Padres gregos expressaram a eterna relação entre o Filho e o Espírito Santo
dizendo que o Espírito Santo procede do Pai “através do Filho”, que é “a imagem
do Filho” [3], que “procede do Pai e recebe do Filho”, que é o “raio” que se
difunde do sol (o Pai), através do seu esplendor (o Filho), o fluxo que brota
da fonte (o Pai) através do rio (o Filho).
Quando a discussão sobre o
Espírito Santo passou para o mundo latino, cunhou-se, para expressar esta
relação, a frase segundo a qual o Espírito Santo procede “do Pai e do Filho”. “E do Filho”, em
latim, se diz Filioque:
daí o sentido com que se sobrecarregou esta palavra nas disputas entre Oriente
e Ocidente e as conclusões manifestamente exageradas a que, às vezes, se
chegou.
O primeiro a formular a
ideia de que o Espírito Santo procede “do Pai e do Filho” foi Santo Ambrósio [4].
Ele não é influenciado por Tertuliano (a quem não conhece e nunca menciona),
mas pelas expressões recém-recordadas, que lia nas suas costumeiras fontes
gregas: São Basílio e, mais ainda, Santo Atanásio e Dídimo de Alexandria. Todas
aquelas formas de expressar-se lançavam luz sobre certa relação, ainda que
misteriosa e não esclarecida, entre o Filho e o Espírito Santo na sua comum
origem a partir do Pai. Se a frase “por meio do Filho” quer dizer algo, esse
“algo” é aquilo que Ambrósio (desconhecedor, como todos os latinos, da sutil
distinção que existe em grego entre “provir”,
ekporeuesthai, e “proceder”, proienai)
pretendeu exprimir com “e do Filho”.
Santo Agostinho deu à
expressão “do Pai e do Filho” (ainda não há nele a expressão literal Filioque)
a justificação teológica que caracterizou, a partir de então, toda a
pneumatologia latina. Ele usa muitas nuances e, certamente, não coloca Pai e
Filho na mesma linha, no tocante ao Espírito Santo, como se percebe na bem
conhecida afirmação: “O Espírito Santo procede primariamente do Pai (de
Patre principaliter) e, pelo dom feito d’Ele ao Filho pelo Pai, sem
qualquer intervalo de tempo, de ambos ao mesmo tempo” [5].
O que exigia esta doutrina,
além de muitas passagens do Novo Testamento (“Tudo o que o Pai possui é meu”,
“Ele (o Paráclito) tomará do que é meu”), era a sua concepção das relações
trinitárias como relações baseadas no amor. Isto permitia também responder a
uma objeção que tinha ficado sempre sem resposta: o que o Pai ainda não tinha
manifestado plenamente de si mesmo na geração do Filho, para justificar uma
segunda operação trinitária? O que distingue a origem do Espírito Santo da
geração do Verbo?
Quem cunhou a expressão
literal Filioque para indicar a origem do Espírito
Santo a partir “do Pai e do Filho” foi Fulgêncio de Ruspe, que, assim como em
outros casos, “endureceu” fórmulas anteriores ainda elásticas da teologia
latina [6]. Ele se cala quanto à especificação de Agostinho, segundo a qual o
Espírito Santo procede “principalmente” do Pai, e insiste em dizer que “procede
do Filho tal como (sicut) procede do Pai”, “inteiramente (totus)
do Pai e inteiramente do Filho”, nivelando, assim, as duas relações de origem [7].
É nesta versão indiferenciada que a doutrina sobre a origem do Espírito Santo
do Pai e do Filho entrará nas definições eclesiais a partir do III Concílio de
Toledo, em 589 [8].
Enquanto permaneceu neste
nível, a questão não despertou protestos do Oriente. No ano de 809, porém, foi
realizado em Aquisgrão (Aachen), por vontade de Carlos Magno, um Sínodo para
patrocinar a introdução do Filioque no Símbolo Niceno-Constantinopolitano,
que começava, em algumas igrejas, a ser cantado na Missa. O Imperador, mais que
por convicções teológicas pessoais, era motivado pelo desejo de dar uma
justificativa também doutrinal à sua política de emancipar-se do Império do
Oriente.
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O Espírito Santo entre as mãos do Pai e do Filho (Detalhe de uma obra de Raúl Berzosa Fernández) |
No final do Sínodo, uma
delegação do Imperador foi a Roma a fim de ganhar o Papa Leão III para a sua causa.
Embora partilhasse plenamente da doutrina do Filioque,
no entanto, o Papa considerava inoportuna a sua inserção no Símbolo e manteve
com firmeza a sua decisão [9]. Nisto ele seguia a mesma linha de ação da Igreja
grega, onde tinha havido, como já vimos, importantes integrações e
aprofundamentos do artigo sobre o Espírito Santo, sem que se devesse, por isso,
mudar o texto do Símbolo. Mas diante de uma nova pressão do Imperador Henrique
II da Alemanha, em 1014 o Papa Bento VIII aceitou que a palavra Filioque fosse inserida na recitação também
litúrgica do Credo, suscitando, em decorrência, as justas recriminações do
Oriente ortodoxo.
Hoje, no clima de diálogo e
de estima recíproca que tenta estabelecer-se entre o mundo ortodoxo e a Igreja
católica, este problema não parece mais um obstáculo intransponível para a
plena comunhão. Representantes qualificados da teologia ortodoxa estão dispostos
a reconhecer, sob certas condições, a legitimidade da doutrina latina. O
teólogo Johannes Zizioulas expõe assim estas condições:
“A regra de ouro deve ser a
interpretação da pneumatologia latina que era feita por São Máximo, o
Confessor: professando a doutrina do Filioque, os
irmãos ocidentais não têm a intenção de introduzir uma segunda causa (aition)
em Deus fora do Pai; por outra parte, o papel intermediário do Filho na origem
do Espírito não deve ser limitado à divina economia, mas se refere também à
natureza divina. Se o Oriente e o Ocidente estiverem dispostos, em nosso tempo,
a tornar próprios estes dois pontos de São Máximo, haveria uma base suficiente
para a reaproximação das duas tradições” [10].
Com estas palavras,
mantém-se a posição ortodoxa de que o Pai é a única causa “não causada” da
origem do Espírito Santo, o que não é incompatível com a posição acima exposta
de Agostinho; além disto, fica reconhecida a validade do ponto de vista dos
latinos de atribuir ao Filho um papel ativo na origem eterna do Espírito Santo
a partir do Pai, mesmo que não se compartilhe com eles a especificação “como de
um só princípio” (tamquam ex uno principio).
A este respeito, o Catecismo
da Igreja Católica fala de uma “legítima complementaridade que, se não for
enrijecida, não impede a identidade de fé na realidade do mistério” (n. 248).
Na mesma linha manifesta-se um documento de 1995 do Pontifício Conselho para a
Unidade dos Cristãos, solicitado pelo Papa João Paulo II e positivamente
acolhido por expoentes da teologia ortodoxa [11]. Como sinal desta vontade de
reconciliação, o mesmo João Paulo II começou a prática de omitir a adição Filioque, “e do Filho”, em
certas celebrações ecumênicas em São Pedro e em outros lugares, nas quais se
proclamava o Credo em latim.
2. Rumo a uma nova síntese
Como sempre, quando feito
realmente “no Espírito”, o diálogo não se limita a resolver as dificuldades do
passado, mas abre novas perspectivas. A maior novidade na pneumatologia atual
não consiste apenas em finalmente se encontrar um acordo sobre o Filioque,
mas em partir das Escrituras rumo a uma síntese mais ampla, com uma gama de
questões mais ampla e menos condicionada pela história passada.
Com esta releitura, iniciada
já faz tempo, emergiu um dado preciso: o Espírito Santo, na história da
salvação, não é só enviado pelo Filho, mas também para o Filho; o Filho não é somente aquele
que dá o Espírito, mas também aquele que o recebe. O momento da passagem
de uma para a outra fase da história da salvação, do Jesus que recebe o
Espírito ao Jesus que envia o Espírito, é constituído pelo evento da cruz [12].
No já mencionado documento
do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos encontramos um belo texto
que resume todas essas intervenções do Espírito “sobre” Jesus: no nascimento,
no batismo, no ato de oferecer-se em sacrifício ao Pai (Hb 9,14), na sua
Ressurreição [13]. Esta relação de reciprocidade, encontrada no âmbito da
história, não pode deixar de refletir, de alguma forma, a relação que existe na
Trindade. O mesmo documento mencionado chega por isto à seguinte conclusão:
“O papel do Espírito no mais
íntimo da existência humana do Filho de Deus surge de uma relação trinitária
eterna, pela qual o Espírito, no seu mistério de dom de amor, caracteriza a
relação entre o Pai fonte do amor e o Filho amado” [14].
Mas como conceber essa
reciprocidade no âmbito trinitário? Este é o campo que se abre para a reflexão
atual da teologia do Espírito. O fato encorajador é que estão se movendo juntos
nesta direção, em diálogo fraterno e construtivo, todos os grandes teólogos das
Igrejas cristãs: ortodoxa e católica, além das comunidades protestantes. Um dos
pontos-chave que despertavam (e condicionavam) a reflexão dos Padres, em
particular a de Agostinho, era a falta de reciprocidade entre o Espírito Santo
e as outras duas Pessoas divinas. Podemos chamar, diziam eles, o Espírito Santo
de “Espírito do Pai”, mas não podemos chamar o Pai de “Pai do Espírito”;
podemos chamar o Espírito Santo de “Espírito do Filho”, mas não podemos chamar
o Filho de “Filho do Espírito” [15].
É neste ponto que hoje se
procuram superar as dificuldades. É verdade que não podemos chamar Deus de “Pai
do Espírito”, mas podemos chamá-lo de “Pai no Espírito”; é verdade que não podemos chamar
o Filho de “Filho do Espírito”, mas podemos chamá-lo de “Filho no Espírito”. A preposição usada na
Bíblia para falar do Espírito Santo não é “de”, mas “em”; é “no Espírito” que
Cristo grita Abbá na terra (cf. Lc 10,21). Se
admitimos que o que acontece na história é um reflexo do que acontece na
Trindade, devemos concluir que é “no Espírito” que o Filho pronuncia o seu Abbá eterno na geração a partir do Pai [16]. O
teólogo ortodoxo Olivier Clément antecipou esta conclusão dizendo que “o Filho
nasce do Pai no Espírito” [17].
Resulta de tudo isto um modo
novo de conceber as relações trinitárias. O Verbo e o Espírito procedem
simultaneamente do Pai. É preciso renunciar a qualquer ideia de precedência
entre os dois, não só cronológica, mas também lógica. Como é única a natureza
que constitui as três Pessoas divinas, assim é única a operação que tem a sua
fonte no Pai e que constitui o Pai como “Pai,” o Filho como “Filho” e o
Espírito como “Espírito”. Filho e Espírito Santo não devem ser vistos um após o
outro, ou um ao lado do outro, mas “um no outro”. Geração e procedência não são
“dois atos separados”, mas dois aspectos, ou dois resultados, de um único ato [18].
Como conceber e expressar
esse ato abissal de que brota, toda junta, a rosa mística da Trindade? Estamos
diante do núcleo mais íntimo do mistério trinitário, que está para além de
todos os conceitos e analogias humanas. Muito sugestiva, creio, é a inspiração
do teólogo ortodoxo Olivier Clément a este respeito. Ele fala de uma “unção
eterna” do Filho pelo Pai por meio do Espírito [19]. Essa intuição tem uma
sólida base patrística na fórmula “ungente, ungido e unção”, usada na mais
antiga teologia dos Padres. Santo Irineu escreveu: “No nome ‘Cristo’
subentende-se aquele que ungiu, aquele que foi ungido e a própria unção com que
foi ungido. De fato, o Pai ungiu e o Filho foi ungido, no Espírito que é a
unção” [20].
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Ícone copta do Batismo de Cristo |
São Basílio retomou literalmente esta afirmação, repetida depois por Santo Ambrósio [21]. Na sua origem, ela se referia diretamente à unção histórica de Jesus em seu batismo no Jordão. Depois, esta unção foi vista como já realizada no momento da Encarnação [22]. Mesmo na época dos Padres, porém, começou-se a remontar a uma “unção cósmica” do Verbo, mencionada por Justino, Irineu e Orígenes, ou seja, a uma unção que o Pai confere ao Verbo em vista da criação do mundo, porque, “por meio dele, o Pai ungiu e dispôs tudo” [23].
Eusébio de Cesareia vai
ainda mais longe, vendo realizada a unção no próprio momento da geração: “A
unção consiste na própria geração do Verbo, pela qual o Espírito do Pai passa
ao Filho a modo de divina fragrância” [24]. Maior autoridade tem a opinião de
São Gregório de Nissa, que dedica um capítulo inteiro a ilustrar a unção do
Verbo mediante o Espírito Santo na sua geração eterna pelo Pai. Ele parte do
pressuposto de que o nome “Cristo”, o Ungido, pertence ao Filho desde toda a
eternidade:
“O óleo da exultação
apresenta o poder do Espírito Santo, com que Deus é ungido por Deus, isto é, o
Unigênito é ungido pelo Pai... Como o justo não pode ser ao mesmo tempo
injusto, assim o ungido não pode não ser ungido. Ora, aquele que nunca é
não-ungido é certamente o ungido desde sempre. E todos hão de que admitir que
aquele que unge é o Pai e que o unguento é o Espírito Santo” [25].
A imagem da unção (porque se
trata sempre de uma imagem) adiciona algo de novo, que não é manifestado pela
imagem mais usual da inspiração ou do sopro. No Ocidente é
costume dizer que o Espírito é assim chamado porque é inspirado ou soprado e
porque inspira e sopra. Nesta visão, o Espírito Santo exerce um papel “ativo”
somente fora da Trindade, por inspirar as Escrituras, os profetas, os santos,
etc., enquanto, na Trindade, Ele teria apenas a qualidade passiva de ser soprado pelo Pai e pelo Filho.
Esta ausência de um papel
ativo do Espírito dentro da Trindade, considerada, talvez, a maior lacuna da
pneumatologia tradicional, é assim superada. Afinal, se reconhecemos ao Filho
um papel ativo no tocante ao Espírito, manifestado na imagem do sopro, também reconhecemos ao
Espírito Santo um papel ativo em relação ao Filho, manifestado na imagem da unção. Não podemos dizer, do
Verbo, que Ele seja “o Filho do Espírito Santo”, mas podemos dizer que Ele é “o
Ungido do Espírito”.
3. O Espírito da verdade e o Espírito da caridade
A renovada escuta das
Escrituras nos permite constatar, também de outro ponto de vista, a
complementaridade das duas pneumatologias, a oriental e a ocidental. Notou-se,
no próprio âmbito do Novo Testamento, uma ênfase maior, por parte de João, no
“Espírito da verdade” e, por parte de Paulo, no “Espírito da caridade” [26].
“Espírito da verdade”, no Quarto Evangelho, é outro nome do Paráclito (Jo
14,16-17); os adoradores do Pai devem adorá-lo “em espírito e verdade”; Ele conduz
“a toda a verdade”; a sua unção “dá a ciência e ensina todas as coisas” (1Jo
2,20.27). Já para Paulo, o efeito primário do Espírito é a “efusão do amor” nos
corações; fruto do Espírito é “o amor, a alegria e a paz” (Gl 5,21); o
amor constitui “a lei do Espírito” (Rm 8,2), o amor é “o melhor
caminho”, o maior de todos os dons do Espírito Santo (cf. 1Cor 12,31).
Como no caso da doutrina
sobre Cristo, também estas diversas ênfases sobre o Espírito Santo permanecem
na tradição, e, mais uma vez, o Oriente reflete de modo predominante a
perspectiva de João e o Ocidente a de Paulo. A pneumatologia ortodoxa deu mais
destaque ao Espírito luz; a latina, ao Espírito amor. Esta diversidade é
claríssima, em todo caso, nas duas obras que mais influenciaram o
desenvolvimento das respectivas teologias do Espírito Santo. No tratado Sobre o Espírito Santo de São
Basílio, não desempenha papel algum o tema do Espírito amor, sendo central o do
Espírito “luz inteligível” [27]; já no tratado Sobre a Trindade de Santo
Agostinho, não desempenha papel algum o tema do Espírito luz, ao passo que, bem
sabemos, o papel central é ocupado pelo Espírito como amor.
A luz, com os fenômenos que
costumam acompanhá-la (a transfiguração da pessoa e a sua completa imersão
interior e exterior na luz) é o elemento mais constante entre os orientais, na
mística do Espírito Santo. “Vinde, ó luz verdadeira!”, começa uma oração de São
Simeão, o Novo Teólogo, ao Espírito Santo [28]. Até a famosa “luz do Tabor”,
tão importante na espiritualidade e na iconografia oriental, é intimamente
ligada ao Espírito Santo [29]. Um texto ortodoxo diz que, no dia de
Pentecostes, “graças ao Espírito Santo, o mundo inteiro recebeu um batismo de
luz” [30].
Encerro com um pensamento de
Santo Agostinho sobre o Espírito amor, que, aplicado às relações entre as
diversas Igrejas, nos faria dar um decisivo passo rumo à unidade dos cristãos.
Comentando a doutrina de São Paulo no capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios,
sobre os carismas, Santo Agostinho faz esta reflexão. Ao ouvir nomear todos
aqueles maravilhosos carismas (profecia, sabedoria, discernimento, cura,
línguas), alguém poderia sentir-se triste e excluído, por achar que não possui
nada disso. Mas, atenção, prossegue o Santo:
“Se amas, o que possuis não
é pouco. Se amas a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é também
possuído por ti! Bane a inveja e será teu o que é meu, e, se eu banir a inveja,
é meu o que tu possuis. A inveja separa, a caridade une. Somente o olho, no
corpo, tem a faculdade de ver; mas é, acaso, apenas para si mesmo que o olho
vê? Não, ele vê pela mão, pelo pé e por todos os membros... Apenas a mão age no
corpo; ela, no entanto, não age apenas para si, mas também para o olho. Se
estás prestes a receber um golpe que tem como alvo não a mão, mas o rosto,
acaso a mão diz: ‘Não me hei de mexer, porque o golpe não é contra mim’?” [31].
Eis o segredo que faz da
caridade o “caminho mais excelente” (1Cor 12,31): ela me faz amar o Corpo
de Cristo, ou a comunidade em que vivo, e, na unidade, todos os carismas, não
somente alguns, são “meus”. A caridade multiplica realmente os carismas; faz do
carisma de um o carisma de todos. Basta não fazer de si mesmo, mas de Cristo, o
centro de interesse; não querer “viver para si mesmo, mas para o Senhor”, como
diz o Apóstolo (Rm 14,7-8).
Aplicado às relações entre
as duas Igrejas, a do Oriente e a do Ocidente, este princípio nos leva a olhar
para aquilo que cada uma tem de diferente da outra não como um erro ou como uma
ameaça, mas como uma riqueza para todos e que deve nos alegrar. Aplicado às
nossas relações cotidianas, dentro da Igreja ou da comunidade em que vivemos, ele
ajuda a superar os sentimentos naturais de frustração, de rivalidade e de
inveja. “Bem-aventurado aquele servo - escreve São Francisco de Assis - que não
se orgulha (nem se alegra, acrescento eu) pelo bem que o Senhor diz e faz por
meio dele mais do que pelo bem que Ele diz e faz por meio de outro” [32]. Que o Espírito Santo nos ajude a
trilhar este caminho exigente, mas no qual estão prometidos os frutos do
Espírito: o amor, a alegria e a paz.
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Ícone copta do Pentecostes |
Notas:
[1] Gregório Nazianzeno, Discursos, XXXI,
10 (PG 36, 144).
[2] A. Hänggi - I. Pahl, Prex Eucharistica, Fribourg,
1968, p. 250.
[3] cf. Atanásio, Cartas a Serapião I, 24 (PG 26, 585s.); Cirilo de
Alexandria, Comentário a João,
XI, 10 (PG 74, 541C); João Damasceno, Sobre
a fé ortodoxa, I, 13 (PG 94, 856B).
[4] Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, I,
120: “Spiritus quoque Sanctus, cum procedit a Patre et a Filio, non
separatur”.
[5] Agostinho, A Trindade, XV,
26, 47.
[6] Fulgêncio de Ruspe, Epístolas, 14,
21 (CC 91, p. 411); De fide, 6.54
(CC 91A, pp. 716.747): “Spiritus Sanctus essentialiter de Patre Filioque
procedit”; Liber de
Trinitate, passim (CC 91A, pp. 633ss).
[7] Epístolas, 14,
28 (CC 91, p.420).
[8] Denzinger, n. 470. No Símbolo
do I Concílio de Toledo de 400 Filioque é um acréscimo posterior (n. 188).
[9] cf. Monumenta Germaniae Historica.
Concilia, t. II, p. II, 1906, pp. 235-244; PL 102, 971-976.
[10] J. D.
Zizioulas, The Teaching of
the 2nd Ecumenical Council on the Holy Spiriti in historical and ecumenical
perspective, in: “Credo in Spiritum Sanctum”, vol. I,
Libreria Editrice Vaticana, 1983, p. 54
[11] cf. Les traditions Grecque et Latine
concernant la procession du Saint-Esprit, in: Service
d’Information du Conseil Pontifical pour la promotion de l’unité des Chrétiens,
n. 89, 1995, pp. 87-91.
[12] cf. João Paulo II, Encíclica Dominum et vivificantem, 13.24.41; Moltmann, Lo Spirito della vita,
Queriniana, Brescia, 1994, pp. 85ss.
[13] Les traditions...,
op. cit., p. 90.
[14] ibid., pp. 90-91.
[15] Agostinho, A Trindade, V,
12, 13.
[16] cf. T. G.
Weinandy, The Father’s Spirit
of Sonship: Reconceiving the Trinity, Edinburgh, 1995.
[17] O. Clément, Les mystiques chrétiens des
origines, Paris, 1982.
[18] cf. Moltmann, op.
cit., p. 90; Weinandy, op. cit., pp. 53-85.
[19] cf. Clément, op.
cit., p. 58.
[20] Irineu, Contra as heresias, III,
18, 3.
[21] Basílio, Sobre o Espírito Santo, XII,
28 (PG 32, 116C); Ambrósio, Sobre
o Espírito Santo, I, 3, 44.
[22] Gregório
Nazianzeno, Discursos, XXX,
2 (PG 36, 105B).
[23] Irineu, Demonstração da pregação
apostólica, 53 (SCh 62, p. 114); cf.
A. Orbe, A Unção do Verbo (Analecta
Gregoriana, vol. 113), Roma, 1961, pp. 501-568.
[24] Orbe, op. cit., p. 578.
[25] Gregório de Nissa, Contra Apolinário, 52 (PG 45,
1249s).
[26] cf. E. Cothenet, Saint-Esprit, DBSuppl., fasc. 60, 1986, col. 377.
[27] Basílio, Sobre o Espírito Santo, IX, 22-23
(PG 32, 108s); XVI, 38 (PG 32, 137).
[28] Simeão, o Novo Teólogo, Oração mística (SCh 156, p. 150)
[29] Gregório Palamas, Homilia I sobre a Transfiguração (PG 151, 433B-C).
[30] Sinaxário de Pentecostes, in: Pentecostaire, Diaconie
apostolique, Parma, 1994, p. 407.
[31] Agostinho, Tratados sobre João, 32,
8.
[32] Francisco de Assis, Admonição XVII (Fontes Franciscanas,
166).
Fonte: Zenit (Acesso em março de 2015).
Confira o índice das meditações do Cardeal Cantalamessa publicadas em nosso blog clicando aqui.
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