segunda-feira, 29 de julho de 2024

História do culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro

“Jesus entrou em um povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (Lc 10,38).

No dia 29 de julho a Igreja de Rito Romano celebra a Memória dos Santos Marta, Maria e Lázaro, instituída pelo Papa Francisco em 2021, substituindo a Memória de Santa Marta, que até então se celebrava nessa mesma data.

Nesta postagem gostaríamos de percorrer brevemente a história do culto dos três irmãos de Betânia, venerados como “hospitum Domini” (“hospedeiros do Senhor”).

Jesus na casa de Marta, Maria e Lázaro

1. Fundamentos bíblicos

As irmãs Marta e Maria nos são apresentadas no capítulo 10 do Evangelho de Lucas, quando recebem Jesus em sua casa: Marta se apressa em servi-lo e Maria senta-se aos seus pés para escutá-lo (Lc 10,38-42). Este relato da filoxenia (hospitalidade) é proclamado sobretudo no XVI Domingo do Tempo Comum (Ano C).

Marta e Maria reaparecem no capítulo 11 do Evangelho de João, no relato da ressurreição de Lázaro, quando professam sua fé em Cristo (Jo 11,1-44). Não confundir este Lázaro ressuscitado pelo Senhor com o personagem de mesmo nome mencionado na parábola do rico e Lázaro, de caráter simbólico (Lc 16,19-31).

A ressurreição de Lázaro é o último dos sete grandes “sinais” do Quarto Evangelho, antecedendo diretamente o Mistério Pascal da Morte-Ressurreição de Cristo. Portanto, no Rito Romano esse episódio é lido no V Domingo da Quaresma (Ano A), unido ao III Escrutínio em preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone da ressurreição de Lázaro.

Por fim, os irmãos estão presentes no episódio da “unção de Betânia” (Jo 12,1-11), “seis dias antes da Páscoa”, quando Maria unge os pés do Senhor com perfume, gesto interpretado como “profecia” da sua sepultura [1]. Este episódio é lido na Segunda-feira da Semana Santa.

2. O culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro no Oriente

No Rito Bizantino o relato da ressurreição de Lázaro é lido no sábado que antecede o Domingo de Ramos, denominado justamente “Sábado de Lázaro”. A celebração desse dia em Betânia, na igreja conhecida como “Lazarium”, é atestada já no século IV pela peregrina Etéria [2].

Ressureição de Lázaro
(Léon Bonnat)

Marta e Maria de Betânia, por sua vez, são celebradas nesse Rito no III Domingo da Páscoa, o “Domingo das Miróforas” (ou “Mirróforas”), isto é, as mulheres que levaram perfumes (em grego, myron) ao túmulo do Senhor na manhã da Ressurreição. Embora os Evangelhos não as mencionem, são associadas a esse grupo por sua amizade com Jesus e por sua presença na “unção de Betânia”.

O “Sábado de Lázaro” e o “Domingo das Miróforas”, porém, não são celebrações hagiológicas (de santos), mas sim cristológicas, em honra do Senhor que ressuscita Lázaro dos mortos e que é “ungido com perfume” pelas mulheres.

Com efeito, apesar das menções a esses personagens nos comentários aos Evangelhos feitos pelos Padres da Igreja e das suas representações na arte sacra, não houve muita devoção aos Santos Marta, Maria e Lázaro nos primeiros séculos.

Seria a partir do século X, como atesta, por exemplo, o Synaxarion de Constantinopla, que surgiriam no Rito Bizantino comemorações próprias desses santos: “São Lázaro, o Justo, o Amigo de Cristo” no dia 17 de março, certamente relacionado como o “Sábado de Lázaro”, e no dia 17 de outubro, data da transladação das suas relíquias a Constantinopla, como veremos adiante; e as “Santas Marta e Maria, irmãs de São Lázaro”, no dia 04 de junho [3].

Na sequência, essas celebrações em honra de Lázaro e das suas irmãs seriam acolhidas em maior ou menor medida também pelos outros Rito Orientais.

De acordo com a tradição oriental, com efeito, após o Pentecostes os três irmãos teriam ido para a ilha de Chipre, onde Lázaro se tornara Bispo de Kition, onde morreria pacificamente (isto é, sem sofrer o martírio). Kition seria destruída por terremotos no século IV; seus restos arqueológicos atualmente formam parte da cidade de Larnaca.

Em 890 teria sido encontrada a suposta tumba de Lázaro. O Imperador Leão VI, o Sábio (†912) ordenaria então a construção da igreja de São Lázaro em Larnaca e a já mencionada transladação de parte das suas supostas relíquias a Constantinopla (898).

Jesus na casa de Marta e Maria
(Johannes Vermeer)

3. O culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro no Ocidente

Antes de tudo é preciso dizer que, no Ocidente, Maria de Betânia foi tradicionalmente identificada com Maria Madalena e com a mulher pecadora que lavou os pés de Jesus com suas lágrimas (Lc 7,36-50). Atualmente, porém, a maioria dos estudiosos as considera três pessoas distintas.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o culto a Santa Maria Madalena.

A partir do século XIII, após a publicação da Legenda Aurea de Jacopo de Varazze (†1298) e de outras “vidas de santos”, se fortalece a lenda de que, após o Pentecostes, escapando da perseguição dos judeus (Jo 12,10-11), os três irmãos partiram do porto de Jaffa (ou Jope) para a região da Provença, no sul da França.

A lenda provavelmente foi difundida pelos cruzados que retornavam da Terra Santa, talvez trazendo parte das relíquias desses santos e mesclando sua história com lendas locais e com a vida de outros santos da região.

Maria, identificada com a Madalena, como vimos, teria se retirado para uma gruta nas montanhas de Sainte-Baume, próximo à cidade de Marselha, onde viveu seus últimos anos como penitente.

Marta, por sua vez, aparece associada à cidade de Tarascon e com algumas tradições locais. Narra a lenda, com efeito, que a região era assolada por um monstro ou dragão (descrito com elementos de vários animais) chamado “tarasca” (tarasque), em alusão ao nome da cidade.

Santa Marta teria aspergido água benta e mostrado a cruz ao monstro, que imediatamente ficou imóvel, sendo então morto pela população. Vemos aqui a mescla de lendas locais e de referências às promessas de Jesus aos seus discípulos: “Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões...” (Lc 10,19; cf. Sl 90).

Santa Marta submete o dragão com a cruz

Lázaro, por fim, é indicado nessas lendas como Bispo da cidade de Marselha. Em alguns versões este teria sido martirizado durante a perseguição do Imperador Domiciano (†96); na maioria das versões, porém, ele morrera pacificamente. Suas supostas relíquias teriam sido posteriormente transladadas à cidade de Autun.

O Martyrologium Romanum promulgado pelo Papa Gregório XIII (†1585) assinala a comemoração de São Lázaro, indicado como Bispo (não, porém, como Mártir), no dia 17 de dezembro. A escolha dessa data provavelmente se deve à confusão com outro santo do sul da França.

No Martyrologium Hieronymianum (séc. V), por sua vez, antes ainda que se difundisse a identificação de Maria de Betânia com a Madalena, a comemoração das Santas Marta e Maria é assinalada no dia 19 de janeiro, provavelmente por causa de outras santas com nomes parecidos.

Posteriormente, quando se consolidou a identificação de Santa Maria de Betânia com Maria Madalena, sua Memória foi fixada no dia 22 de julho. Esta é a data da transladação das supostas relíquias da Madalena de Éfeso a Constantinopla, dia em que é celebrada no Oriente desde o século X.

Consequentemente, a Memória de Santa Marta, invocada como “Virgem”, foi inscrita na oitava de Santa Maria Madalena, isto é, no dia 29 de julho.

Não obstante, nos calendários próprios de alguns lugares (como Jerusalém) e congregações religiosas (como os beneditinos) os irmãos de Betânia eram celebrados conjuntamente no dia 29 de julho. Em alguns calendários franciscanos do século XVIII, porém, os três eram celebrados no dia 02 de setembro.

Vale destacar aqui o Santuário de São Lázaro em Betânia, reconstruído em 1954 sobre os restos de igrejas do período bizantino e do tempo das Cruzadas. Os peregrinos que visitam o “Santuário da amizade” podem inclusive celebrar a Missa votiva dos Santos Lázaro, Marta e Maria ou a Missa votiva da ressurreição de Lázaro. Para saber mais, clique aqui.

Santuário de São Lázaro em Betânia

4. O culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro hoje

Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II buscou-se distinguir a Madalena de Maria de Betânia e da mulher pecadora de Lc 7. Assim, foi conservada a Memória obrigatória da Madalena no dia 22 de julho com novos textos.

O novo Calendário Romano Geral, promulgado em 1969, conservou também a Memória de Santa Marta (sem especificá-la como “Virgem”) no dia 29 de julho.

Como indica Dom Annibale Bugnini (†1982), a princípio esta seria uma Memória facultativa. Contudo, a pedido do próprio Papa Paulo VI (†1978), foi inscrita como Memória obrigatória, para dar mais espaço à celebração da Santas Mulheres (“tema” retomado pelo Papa João Paulo II em sua Carta Apostólica Mulieris Dignitatem) [4].

Para essa Memória foram elaboradas novas orações (do dia, sobre as oferendas e após a Comunhão), uma vez que até então essa celebração possuía apenas o Evangelho próprio (Lc 10,38-42), tomando-se o resto do Comum das Virgens.

Além das orações, foram indicadas também todas as leituras próprias: 1Jo 4,7-16; Sl 33,2-11 (R: 2a ou 9a); Jo 11,19-27 ou Lc 10,38-42.

Quanto à Liturgia das Horas, destacam-se os dois novos hinos, compostos pela Comissão coordenada pelo Padre Anselmo Lentini, OSB (†1989), que, como testemunha Dom Annibale Bugnini, buscou propor hinos próprios para os santos mencionados nos Evangelhos [5]:
Ofício das Leituras e Vésperas: Te gratulántes pángimus (Ó Santa Marta, mulher feliz);
Laudes: Quas tibi laudes ferimúsque vota (Santa Marta de Betânia).

Tanto na Missa como na Liturgia das Horas os textos que faltassem deviam ser tomados do Comum dos Santos / do Comum das Santas Mulheres.

Posteriormente, com a publicação do novo Martirológio Romano (2001), superada a confusão com a Madalena, foi acrescentada a “comemoração” de Santa Maria de Betânia e de São Lázaro no dia 29 de julho, junto à Memória de Santa Marta.

Marta e Maria (Peter Paul Rubens)

Por fim, no dia 26 de janeiro de 2021 foi promulgado o Decreto da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos através do qual foi inscrita no Calendário Romano Geral a Memória obrigatória dos Santos Marta, Maria e Lázaro no dia 29 de julho, substituindo a Memória de Santa Marta.

Essa decisão visa prestar a devida honra ao “importante testemunho evangélico dos três irmãos, que ofereceram ao Senhor Jesus a hospitalidade da sua casa, prestando-lhe uma atenção dedicada, e acreditando que Ele é a ressurreição e a vida”.

Em anexo ao Decreto foram indicadas algumas modificações aos textos da Missa e da Liturgia das Horas. Para a Missa foram propostas novas orações, conservando as mesmas opções de leituras.

Para a Liturgia das Horas, por sua vez, foram propostos pequenos retoques aos dois hinos, incluindo menções a Maria e Lázaro junto a Marta, além de uma nova 2ª leitura para o Ofício das Leituras, dos Sermões de São Bernardo, Abade.

Recordamos também o novo “elogio” dos três santos no Martirológio:
“Memória dos Santos Marta, Maria e Lázaro, irmãos, que, em espírito familiar hospedaram o Senhor Jesus em sua casa de Betânia, abrindo os ouvidos e os corações para escutar as divinas palavras sobre o reino dos céus, acreditando n’Ele, que venceu a morte com a ressurreição”.

Vale dizer que o Decreto dizia respeito exclusivamente ao Rito Romano. Não obstante, a mudança logo foi acolhida também pelo Rito Ambrosiano, próprio da Arquidiocese de Milão (Itália), no qual foi elaborado um Prefácio próprio para a Memória (uma vez que nesse Rito todas as celebrações possuem um Prefácio próprio).

Por fim, cabe dizer que a Memória dos Santos Marta, Maria e Lázaro no dia 29 de julho também é recordada por algumas comunidades protestantes mais tradicionais, como os anglicanos e os luteranos. Eis a oração recitada por estes últimos na ocasião:

“Pai Celestial, teu amado Filho se tornou amigo de seres humanos sujeitos a erros e culpas como nós a fim de nos tornar teus. Ensina-nos a ser como os amigos amados de Jesus em Betânia, para que possamos servi-lo fielmente como Marta, aprendermos d’Ele fervorosamente como Maria e, finalmente, sermos ressuscitados por Ele como Lázaro. Mediante Jesus Cristo, o Senhor deles e nosso, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém” [6].

Santos Maria, Lázaro e Marta
(Maestro de Perea)

Notas:

[1] Mateus e Marcos também mencionam essa “unção de Betânia”, situando-a, porém, “na casa de Simão, o leproso”, sem mencionar o nome da mulher que unge os pés do Senhor (Mt 26,6-13; Mc 14,3-9).

[2] cf. ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem (Itinerarium ad loca sancta), n. 29. in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 453.

[3] Fonte: Synaxarion.gr (17 de março / 17 de outubro / 04 de junho).
Vale recordar, porém, que a maioria das Igrejas Orientais (Católicas e Ortodoxas) segue o calendário juliano, com 13 dias de diferença em relação ao calendário gregoriano.

[4] cf. BUGNINI, Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975. São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, p. 277.

[5] cf. ibid., p. 463.

[6] Fonte: Teologia Luterana.

Referências:

BUTLER, Alban. Il primo grande Dizionario dei Santi secondo il Calendario. Casale Monferrato: Edizioni Piemme, 2001, pp. 738-739.

LODI, Enzo. Os Santos do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, pp. 276-278.

SCATTIGNO, Anna. Marta y María. in: LEONARDI, Claudio; RICCARDI, Andrea; ZARRI, Gabriella [org.]. Diccionario de los Santos. Madrid: San Pablo, 2000, vol. II, pp. 1649-1651.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v. VIII: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dall'ottava dei Principi degli Apostoli alla Dedicazione di S. Michele). Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 115-117.

VIGNOLO, Roberto. Lázaro. in: LEONARDI; RICCARDI; ZARRI, op. cit., vol. II, pp. 1434-1440.

Imagens: Wikimedia Commons.

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