“Jesus entrou em um povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (Lc 10,38).
No dia 29 de julho a Igreja de Rito Romano celebra a Memória
dos Santos Marta, Maria e Lázaro, instituída pelo Papa Francisco em 2021,
substituindo a Memória de Santa Marta, que até então se celebrava nessa mesma
data.
Nesta postagem gostaríamos de percorrer brevemente a
história do culto dos três irmãos de Betânia, venerados como “hospitum
Domini” (“hospedeiros do Senhor”).
1. Fundamentos bíblicos
As irmãs Marta e Maria nos são apresentadas no capítulo 10
do Evangelho de Lucas, quando recebem Jesus em sua casa: Marta se
apressa em servi-lo e Maria senta-se aos seus pés para escutá-lo (Lc
10,38-42). Este relato da filoxenia (hospitalidade) é
proclamado sobretudo no XVI Domingo do Tempo Comum (Ano C).
Marta e Maria reaparecem no capítulo 11 do Evangelho de
João, no relato da ressurreição de Lázaro, quando professam sua fé
em Cristo (Jo 11,1-44). Não confundir este Lázaro ressuscitado pelo
Senhor com o personagem de mesmo nome mencionado na parábola do rico e Lázaro,
de caráter simbólico (Lc 16,19-31).
A ressurreição de Lázaro é o último dos sete grandes
“sinais” do Quarto Evangelho, antecedendo diretamente o Mistério Pascal
da Morte-Ressurreição de Cristo. Portanto, no Rito Romano esse episódio é lido
no V Domingo da Quaresma (Ano A), unido ao III Escrutínio em preparação para os
Sacramentos da Iniciação Cristã.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone da ressurreição de Lázaro.
Por fim, os irmãos estão presentes no episódio da “unção
de Betânia” (Jo 12,1-11), “seis dias antes da Páscoa”, quando Maria
unge os pés do Senhor com perfume, gesto interpretado como “profecia” da sua
sepultura [1]. Este episódio é lido na Segunda-feira da Semana Santa.
2. O culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro no Oriente
No Rito Bizantino o relato da ressurreição de
Lázaro é lido no sábado que antecede o Domingo de Ramos, denominado
justamente “Sábado de Lázaro”. A celebração desse dia em Betânia, na
igreja conhecida como “Lazarium”, é atestada já no século IV pela
peregrina Etéria [2].
Ressureição de Lázaro (Léon Bonnat) |
Marta e Maria de Betânia, por sua vez, são celebradas nesse
Rito no III Domingo da Páscoa, o “Domingo das Miróforas” (ou “Mirróforas”),
isto é, as mulheres que levaram perfumes (em grego, myron) ao túmulo do
Senhor na manhã da Ressurreição. Embora os Evangelhos não as mencionem, são
associadas a esse grupo por sua amizade com Jesus e por sua presença na “unção
de Betânia”.
O “Sábado de Lázaro” e o “Domingo das Miróforas”, porém, não
são celebrações hagiológicas (de santos), mas sim cristológicas, em honra do
Senhor que ressuscita Lázaro dos mortos e que é “ungido com perfume” pelas
mulheres.
Com efeito, apesar das menções a esses personagens nos
comentários aos Evangelhos feitos pelos Padres da Igreja e das suas
representações na arte sacra, não houve muita devoção aos Santos Marta, Maria e
Lázaro nos primeiros séculos.
Seria a partir do século X, como atesta, por exemplo, o Synaxarion
de Constantinopla, que surgiriam no Rito Bizantino comemorações próprias desses
santos: “São Lázaro, o Justo, o Amigo de Cristo” no dia 17 de março,
certamente relacionado como o “Sábado de Lázaro”, e no dia 17 de outubro, data
da transladação das suas relíquias a Constantinopla, como veremos adiante; e as
“Santas Marta e Maria, irmãs de São Lázaro”, no dia 04 de junho [3].
Na sequência, essas celebrações em honra de Lázaro e das
suas irmãs seriam acolhidas em maior ou menor medida também pelos outros Rito
Orientais.
De acordo com a tradição oriental, com efeito, após o
Pentecostes os três irmãos teriam ido para a ilha de Chipre, onde Lázaro
se tornara Bispo de Kition, onde morreria pacificamente (isto é, sem sofrer o
martírio). Kition seria destruída por terremotos no século IV; seus restos
arqueológicos atualmente formam parte da cidade de Larnaca.
Em 890 teria sido encontrada a suposta tumba de Lázaro. O
Imperador Leão VI, o Sábio (†912) ordenaria então a construção da igreja de São
Lázaro em Larnaca e a já mencionada transladação de parte das suas supostas
relíquias a Constantinopla (898).
3. O culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro no Ocidente
Antes de tudo é preciso dizer que, no Ocidente, Maria de
Betânia foi tradicionalmente identificada com Maria Madalena e com a mulher pecadora
que lavou os pés de Jesus com suas lágrimas (Lc 7,36-50). Atualmente,
porém, a maioria dos estudiosos as considera três pessoas distintas.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o culto a Santa Maria Madalena.
A partir do século XIII, após a publicação da Legenda Aurea de Jacopo de Varazze
(†1298) e de outras “vidas de santos”, se fortalece a lenda de que, após o
Pentecostes, escapando da perseguição dos judeus (Jo 12,10-11), os três
irmãos partiram do porto de Jaffa (ou Jope) para a região da Provença, no sul
da França.
A lenda provavelmente foi difundida pelos cruzados que
retornavam da Terra Santa, talvez trazendo parte das relíquias desses santos e
mesclando sua história com lendas locais e com a vida de outros santos da
região.
Maria, identificada com a Madalena, como vimos, teria se
retirado para uma gruta nas montanhas de Sainte-Baume, próximo à cidade de
Marselha, onde viveu seus últimos anos como penitente.
Marta, por sua vez, aparece associada à cidade de Tarascon e
com algumas tradições locais. Narra a lenda, com efeito, que a região era
assolada por um monstro ou dragão (descrito com elementos de vários animais)
chamado “tarasca” (tarasque), em alusão ao nome da cidade.
Santa Marta teria aspergido água benta e mostrado a cruz ao
monstro, que imediatamente ficou imóvel, sendo então morto pela população. Vemos
aqui a mescla de lendas locais e de referências às promessas de Jesus aos seus
discípulos: “Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões...” (Lc
10,19; cf. Sl 90).
Santa Marta submete o dragão com a cruz |
Lázaro, por fim, é indicado nessas lendas como Bispo da
cidade de Marselha. Em alguns versões este teria sido martirizado durante a
perseguição do Imperador Domiciano (†96); na maioria das versões, porém, ele morrera
pacificamente. Suas supostas relíquias teriam sido posteriormente transladadas
à cidade de Autun.
O Martyrologium Romanum promulgado pelo Papa Gregório
XIII (†1585) assinala a comemoração de São Lázaro, indicado como Bispo
(não, porém, como Mártir), no dia 17 de dezembro. A escolha dessa data
provavelmente se deve à confusão com outro santo do sul da França.
No Martyrologium Hieronymianum (séc. V), por sua vez,
antes ainda que se difundisse a identificação de Maria de Betânia com a
Madalena, a comemoração das Santas Marta e Maria é assinalada no dia 19
de janeiro, provavelmente por causa de outras santas com nomes parecidos.
Posteriormente, quando se consolidou a identificação de Santa
Maria de Betânia com Maria Madalena, sua Memória foi fixada no dia 22 de julho.
Esta é a data da transladação das supostas relíquias da Madalena de Éfeso a
Constantinopla, dia em que é celebrada no Oriente desde o século X.
Consequentemente, a Memória de Santa Marta, invocada
como “Virgem”, foi inscrita na oitava de Santa Maria Madalena, isto é, no dia 29
de julho.
Não obstante, nos calendários próprios de alguns lugares (como
Jerusalém) e congregações religiosas (como os beneditinos) os irmãos de
Betânia eram celebrados conjuntamente no dia 29 de julho. Em alguns calendários
franciscanos do século XVIII, porém, os três eram celebrados no dia 02 de
setembro.
Vale destacar aqui o Santuário de São Lázaro em Betânia,
reconstruído em 1954 sobre os restos de igrejas do período bizantino e do tempo das Cruzadas. Os
peregrinos que visitam o “Santuário da amizade” podem inclusive celebrar a Missa
votiva dos Santos Lázaro, Marta e Maria ou a Missa votiva da ressurreição de
Lázaro. Para saber mais, clique aqui.
4. O culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro hoje
Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II buscou-se
distinguir a Madalena de Maria de Betânia e da mulher pecadora de Lc
7. Assim, foi conservada a Memória obrigatória da Madalena no dia 22 de julho
com novos textos.
O novo Calendário
Romano Geral, promulgado em 1969, conservou também a Memória de Santa
Marta (sem especificá-la como “Virgem”) no dia 29 de julho.
Como indica Dom Annibale Bugnini (†1982), a princípio esta
seria uma Memória facultativa. Contudo, a pedido do próprio Papa Paulo VI
(†1978), foi inscrita como Memória obrigatória, para dar mais espaço à
celebração da Santas Mulheres (“tema” retomado pelo Papa João Paulo II em sua
Carta Apostólica Mulieris Dignitatem) [4].
Para essa Memória foram elaboradas novas orações (do
dia, sobre as oferendas e após a Comunhão), uma vez que até então essa
celebração possuía apenas o Evangelho próprio (Lc 10,38-42), tomando-se o
resto do Comum das Virgens.
Além das orações, foram indicadas também todas as leituras
próprias: 1Jo 4,7-16; Sl 33,2-11 (R: 2a ou 9a); Jo
11,19-27 ou Lc 10,38-42.
Quanto à Liturgia das Horas, destacam-se os dois novos hinos, compostos pela Comissão coordenada pelo Padre Anselmo Lentini, OSB
(†1989), que, como testemunha Dom Annibale Bugnini, buscou propor hinos próprios para os santos mencionados nos Evangelhos [5]:
Ofício das Leituras e Vésperas: Te gratulántes pángimus
(Ó Santa Marta, mulher feliz);
Laudes: Quas tibi laudes ferimúsque vota
(Santa Marta de Betânia).
Tanto na Missa como na Liturgia das Horas os textos que
faltassem deviam ser tomados do Comum dos Santos / do Comum das Santas
Mulheres.
Posteriormente, com a publicação do novo Martirológio Romano (2001), superada a confusão com a Madalena, foi acrescentada a “comemoração” de Santa Maria de Betânia e de São Lázaro no dia 29 de julho, junto à Memória de Santa Marta.
Marta e Maria (Peter Paul Rubens) |
Por fim, no dia 26 de janeiro de 2021 foi promulgado
o Decreto da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos através
do qual foi inscrita no Calendário Romano Geral a Memória obrigatória dos
Santos Marta, Maria e Lázaro no dia 29 de julho, substituindo a Memória de
Santa Marta.
Essa decisão visa prestar a devida honra ao “importante
testemunho evangélico dos três irmãos, que ofereceram ao Senhor Jesus a
hospitalidade da sua casa, prestando-lhe uma atenção dedicada, e acreditando
que Ele é a ressurreição e a vida”.
Em anexo ao Decreto foram indicadas algumas modificações aos
textos da Missa e da Liturgia das Horas. Para a Missa foram propostas novas
orações, conservando as mesmas opções de leituras.
Para a Liturgia das Horas, por sua vez, foram propostos
pequenos retoques aos dois hinos, incluindo menções a Maria e Lázaro junto a
Marta, além de uma nova 2ª leitura para o Ofício das Leituras, dos Sermões de São Bernardo, Abade.
Recordamos também o novo “elogio” dos três santos no Martirológio:
“Memória dos Santos Marta, Maria e Lázaro, irmãos, que, em
espírito familiar hospedaram o Senhor Jesus em sua casa de Betânia, abrindo os
ouvidos e os corações para escutar as divinas palavras sobre o reino dos céus,
acreditando n’Ele, que venceu a morte com a ressurreição”.
Vale dizer que o Decreto dizia respeito exclusivamente ao
Rito Romano. Não obstante, a mudança logo foi acolhida também pelo Rito
Ambrosiano, próprio da Arquidiocese de Milão (Itália), no qual foi elaborado um
Prefácio próprio para a Memória (uma vez que nesse Rito todas as celebrações
possuem um Prefácio próprio).
Por fim, cabe dizer que a Memória dos Santos Marta, Maria e
Lázaro no dia 29 de julho também é recordada por algumas comunidades
protestantes mais tradicionais, como os anglicanos e os luteranos. Eis a oração
recitada por estes últimos na ocasião:
“Pai Celestial, teu amado Filho se tornou amigo de seres
humanos sujeitos a erros e culpas como nós a fim de nos tornar teus. Ensina-nos
a ser como os amigos amados de Jesus em Betânia, para que possamos servi-lo
fielmente como Marta, aprendermos d’Ele fervorosamente como Maria e,
finalmente, sermos ressuscitados por Ele como Lázaro. Mediante Jesus Cristo, o
Senhor deles e nosso, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus,
agora e sempre. Amém” [6].
Notas:
[1] Mateus e Marcos também mencionam essa “unção de
Betânia”, situando-a, porém, “na casa de Simão, o leproso”, sem mencionar o
nome da mulher que unge os pés do Senhor (Mt 26,6-13; Mc 14,3-9).
[2] cf. ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem
(Itinerarium ad loca sancta), n. 29. in: CORDEIRO, José de Leão
[org.]. Antologia Litúrgica: Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do
primeiro milénio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 453.
Vale recordar, porém, que a maioria das Igrejas Orientais (Católicas e Ortodoxas) segue o calendário juliano, com 13 dias de diferença em relação ao calendário gregoriano.
[4] cf. BUGNINI, Annibale. A reforma litúrgica:
1948-1975. São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, p. 277.
[5] cf. ibid., p. 463.
[6] Fonte: Teologia Luterana.
Referências:
BUTLER, Alban. Il
primo grande Dizionario dei Santi secondo il Calendario. Casale Monferrato:
Edizioni Piemme, 2001, pp. 738-739.
LODI, Enzo. Os Santos
do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992, pp. 276-278.
SCATTIGNO,
Anna. Marta y María. in: LEONARDI,
Claudio; RICCARDI, Andrea; ZARRI, Gabriella [org.]. Diccionario de los Santos. Madrid: San Pablo, 2000, vol. II, pp.
1649-1651.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v.
VIII: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dall'ottava dei Principi degli Apostoli alla
Dedicazione di S. Michele). Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 115-117.
VIGNOLO, Roberto. Lázaro.
in: LEONARDI; RICCARDI; ZARRI, op. cit., vol. II, pp. 1434-1440.
Imagens: Wikimedia Commons.
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