“A paz de Cristo reine nos vossos corações” (Cl 3,15).
Há 10 anos, durante o Advento de 2014, o Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia de 1980 a 2024 (criado Cardeal em 2020), proferiu três meditações sobre a paz. Confira nesta postagem a terceira e última reflexão:
Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
III Pregação de Advento
19 de dezembro de 2014
“A paz de Cristo reine nos vossos corações” (Cl 3,15):
A paz, fruto do Espírito
1. A paz, fruto do Espírito
Depois de refletir sobre a paz como dom de Deus em Cristo Jesus para toda a humanidade e sobre a paz como tarefa pela qual trabalhar, vamos falar agora da paz como fruto do Espírito.
São Paulo coloca a paz em terceiro lugar entre os frutos do Espírito: “O fruto
do Espírito - diz ele - é amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade,
fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gl 5,22).
Descobrimos o que são os
“frutos do Espírito” ao analisar, justamente, o contexto dessa ideia. O
contexto é o da luta entre a carne e o espírito, isto é, entre o princípio que
regula a vida do homem velho, cheio de concupiscências e desejos terrenos, e o
que regula a vida do homem novo, guiado pelo Espírito de Cristo. Na expressão
“frutos do Espírito”, “Espírito” não indica o Espírito Santo em si mesmo, mas o
princípio da nova vida, ou “o homem que se deixa guiar pelo Espírito”.
A pomba com o ramo de oliveira, símbolo da paz |
Diferentemente dos carismas,
que são obra exclusiva do Espírito, que os dá a quem quer e quando quer, os
frutos são o resultado de uma colaboração entre a graça e a liberdade. Eles
são, portanto, o que hoje queremos dizer por virtude, se dermos a essa palavra
o sentido bíblico de um agir habitual “segundo Cristo”, ou “segundo o
Espírito”, em vez do sentido filosófico aristotélico de um agir habitual “de
acordo com a reta razão”. Além disso, os dons do Espírito são diferentes de
pessoa para pessoa, enquanto os frutos do Espírito são os mesmos para todos.
Nem todos na Igreja podem ser apóstolos, profetas, evangelistas; mas todos
indistintamente, do primeiro ao último, podem e devem ser caridosos, pacientes,
humildes, pacíficos...
A paz fruto do Espírito, portanto, é diferente da paz como dom de Deus e da paz como tarefa pela qual trabalhar. Ela indica a condição habitual (habitus), o estado de ânimo e o estilo de vida de quem, mediante o esforço e a vigilância, chegou a certa pacificação interior. A paz fruto do Espírito é a paz do coração. E é dessa coisa tão bela e tão desejada que vamos falar hoje. Ela é diferente, sim, da tarefa de sermos pacificadores, mas nos ajuda maravilhosamente a atingir este objetivo. O título da Mensagem do Papa João Paulo II para a Jornada Mundial da Paz de 1984 era: “A paz nasce de um coração novo”. E Francisco de Assis, ao mandar os seus frades para todo o mundo, lhes recomendava: “A paz que anunciais com a boca, tende-a primeiro nos vossos corações” [1].
2. A paz interior na tradição espiritual da Igreja
Alcançar a paz interior ou do coração foi um empenho de todos os grandes buscadores de Deus ao longo dos séculos. No Oriente, a começar pelos Padres do deserto, esse empenho se concretizou no ideal da hesychia, da quietude, que ousou propor uma perspectiva altíssima, se não até sobre-humana: retirar da mente todo pensamento, retirar da vontade todo desejo, retirar da memória toda lembrança, para deixar à mente só o pensamento de Deus, à vontade só o desejo de Deus e à memória só a lembrança de Deus e de Cristo (amneme Theou). Uma luta titânica contra os pensamentos (logismoi), não só os maus, mas também os bons. Exemplo extremo desta paz obtida com uma guerra feroz veio a ser, na tradição monástica, o monge Arsênio, que, à pergunta “o que devo fazer para me salvar?”, ouviu a resposta de Deus: “Arsênio, foge, cala e mantém-te em quietude” (literalmente, pratica a hesychia) [2].
Mais tarde essa corrente
espiritual dará espaço à prática da oração do coração, ou oração ininterrupta,
ainda hoje amplamente praticada na cristandade oriental e da qual “Os contos
de um peregrino russo” representam a expressão mais fascinante. No
início, porém, ela não se identificava com essa prática. Era uma maneira de se
chegar à perfeita tranquilidade do coração; não uma tranquilidade vazia, um fim
em si mesma, mas uma tranquilidade plena, semelhante à dos bem-aventurados, um
começar a viver na terra a condição dos santos no céu.
A tradição ocidental perseguiu o mesmo ideal, mas de outras maneiras, acessíveis tanto àqueles que praticam a vida contemplativa quanto aos que praticam uma vida ativa. A reflexão começa com Agostinho. Ele dedica um livro inteiro de A Cidade de Deus a refletir sobre as diversas formas da paz, dando a cada uma delas uma definição que fez escola até a nossa época, incluindo a da paz como “tranquillitas ordinis”, a tranquilidade da ordem. Mas é principalmente com o que diz nas Confissões que ele influenciou os traços do ideal da paz do coração.
Ele dirige a Deus, no início
do livro, e como que de passagem, palavras destinadas a ter uma ressonância
imensa em todo o pensamento posterior: “Fizeste-nos para ti e o nosso coração
está inquieto enquanto não repousa em ti” [3]. Mais adiante ele ilustra esta
afirmação com o exemplo da gravidade:
“Na boa vontade está a nossa
paz. Todo corpo, devido ao seu peso, tende ao lugar que lhe é próprio. Um peso
não puxa somente para baixo, mas para o lugar que lhe é próprio. O fogo tende
ao alto, a pedra ao chão, impulsionados ambos pelo seu peso a buscar o seu
lugar... O meu peso é o meu amor; ele me leva para onde eu me levo” [4].
Enquanto estamos nesta
terra, o lugar do nosso repouso é a vontade de Deus, o abandono ao seu querer.
“Não se acha descanso se não se consente à vontade de Deus sem resistência” [5].
Dante Alighieri resumirá este pensamento agostiniano em seu célebre verso: “Na
sua vontade está a nossa paz” [6].
Só no céu é que esse lugar
de repouso será Deus mesmo. Agostinho termina, por isso, a sua abordagem do
tema da paz fazendo um elogio apaixonado à paz da Jerusalém do céu, que vale a
pena ler para nos inflamarmos nós também do seu desejo:
“Há também a paz final...
Naquela paz não é necessário que a razão domine os impulsos, porque eles não
existirão, mas Deus dominará o homem, a alma espiritual [dominará] o corpo, e
será tão grande a serenidade e a disponibilidade à submissão quanto é grande a
delícia de viver e dominar. E então, em todos e em cada um, esta condição será
eterna e teremos a certeza de que é eterna e, por isso, a paz de tal
felicidade, ou seja, a felicidade de tal paz, será o sumo bem” [7].
A esperança desta paz eterna marcou toda a Liturgia dos fiéis defuntos. Expressões como “paz”, “na paz de Cristo”, “descanse em paz” são as mais frequentes nos túmulos dos cristãos e nas preces da Igreja. A Jerusalém celeste, com alusão à etimologia do nome, é definida como “beata pacis visio” [8], bem-aventurada visão de paz.
3. O caminho da paz
A concepção de Agostinho
sobre a paz interior como adesão à vontade de Deus é confirmada e aprofundada
pelos místicos. Mestre Eckhart escreve: “Nosso Senhor diz: ‘Somente em mim
tereis a paz’ (cf. Jo 16,33). Quanto mais se penetra em Deus, mais se
penetra na paz. Quem já tem o seu ‘eu’ em Deus tem a paz; quem tem o seu ‘eu’
fora de Deus não tem a paz” [9]. Não se trata, pois, apenas de aderir à vontade
de Deus, mas de não ter outra vontade senão a de Deus, de morrer de todo à
própria vontade. A mesma coisa se lê, na forma de experiência vivida, em Santa
Ângela de Foligno: “A divina bondade, de duas vontades, fez uma só, de modo que
não posso querer a não ser como Deus quer... Não me encontro mais na condição
costumeira, mas fui conduzida a uma paz em que estou com Ele e contente de
tudo” [10].
Outro desenvolvimento, mais
ascético do que místico, é o de Santo Inácio de Loyola com a sua doutrina da
“santa indiferença” [11]. Ela consiste em colocar-se em estado de total
disponibilidade para acolher a vontade de Deus, renunciando, desde o começo, a
toda preferência pessoal, como uma balança pronta a se inclinar para o lado que
tiver o maior peso. A experiência da paz interior se torna assim o critério
principal em todo discernimento. Deve ser considerada em conformidade com o
querer de Deus a escolha que, após prolongada ponderação e oração, for
acompanhada de maior paz do coração.
Nenhuma corrente espiritual
saudável, porém, nem no Oriente, nem no Ocidente, jamais pensou que a paz do
coração seja uma paz barata e sem esforço. A seita do “Livre Espírito” tentou
argumentar o contrário na Idade Média, assim como o movimento quietista no
século XVII, mas ambos foram condenados pela hierarquia e pela consciência da
Igreja. Para manter e aumentar a paz do coração é preciso domar, momento a momento,
em especial no início, uma revolta: a da carne contra o espírito.
Jesus tinha dito de mil
maneiras: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo”; “Quem ama a própria
vida vai perde-la, mas quem perder a sua vida a encontrará” (cf. Mc
8,34-35). Existe uma falsa paz que Jesus diz que veio para tirar, e não para
trazer à terra (cf. Mt 10,34). Paulo traduzirá tudo isso em uma espécie
de lei fundamental da vida cristã:
“Os que vivem segundo a
carne gostam do que é carnal; os que vivem segundo o espírito apreciam as
coisas que são do espírito. Ora, a aspiração da carne é a morte, enquanto a
aspiração do espírito é a vida e a paz. Porque o desejo da carne é hostil a
Deus, pois a carne não se submete à lei de Deus, nem o pode. Os que vivem
segundo a carne não podem agradar a Deus... Se viverdes segundo a carne, haveis
de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis” (Rm
8,5-13).
A última frase contém um
ensinamento importantíssimo. O Espírito Santo não é a recompensa para os nossos
esforços de mortificação, mas o que os torna possíveis e frutuosos; não só no
final, mas também no início do processo: “Se, mediante o Espírito, fizerdes
morrer as obras do corpo, vivereis”. Neste sentido é que se diz que a paz é
fruto do Espírito; é o resultado do nosso esforço, possibilitado pelo Espírito
de Cristo. Uma mortificação voluntarista e confiante demais em si mesma pode se
tornar (e com frequência se tornará), ela mesma, uma obra da carne.
O Espírito Santo, fonte da paz |
Entre aqueles que ilustraram ao longo dos séculos este caminho para a paz do coração, destaca-se, pela concretude e pelo realismo, o autor da Imitação de Cristo. Ele imagina uma espécie de diálogo entre o Divino Mestre e o discípulo, como entre um pai e seu filho:
Mestre: “Meu filho, hei de ensinar-te o caminho da paz e da verdadeira liberdade”.
Discípulo: “Faz, Senhor, como dizes; de bom grado escutarei teus ensinamentos”.
Mestre: “Cuida, meu filho, de fazer a vontade dos outros em vez da tua própria. Escolhe sempre ter menos que mais. Procura sempre ocupar o lugar mais baixo e ser inferior a todos. Deseja sempre, e ora, para que em ti se faça inteiramente a vontade de Deus. O homem que assim procede entra no reino da paz e da tranquilidade”.
Outro meio sugerido ao
discípulo é evitar a vã curiosidade: “Filho, não sejas curioso;
não te afanes inutilmente. Que te importa aquilo ou isto? ‘Tu, segue-me’ (Jo
21,22). Que te importa que tal pessoa seja assim ou diferente, ou que a outra faça
e diga isso ou aquilo? Não terás que responder pelos outros, mas renderás
contas de ti mesmo. Eis que Eu conheço a todos, vejo tudo o que acontece sob o
sol e sei a condição de cada um: o que pensa, o que quer, a que mira a sua
intenção. Tudo deve ser, portanto, colocado em minhas mãos. E tu, mantém-te em
paz segura, deixando os outros se agitarem a seu critério: o que eles fizerem
recairá sobre eles, pois a mim não podem enganar” [12].
4. “Tu lhe assegurarás a paz, porque em ti tem confiança”
Sem a pretensão de
substituir esses meios ascéticos tradicionais, a espiritualidade moderna
enfatiza outros meios mais positivos para se manter a paz interior. O primeiro
é a confiança e o abandono em Deus. “Tu lhe assegurarás a paz, porque em ti tem
confiança”, lemos em Isaías (Is 26,3). Jesus, no Evangelho, motiva o seu
convite a não temermos e a não nos inquietarmos com o amanhã no fato de que o
Pai Celestial sabe do que precisamos, ele que alimenta as aves do céu e veste
os lírios do campo (cf. Mt 6,5).
Esta é a paz de que Santa
Teresinha do Menino Jesus se tornou mestra e modelo. Um exemplo heroico desta
paz que vem da confiança em Deus também vem do mártir do nazismo Dietrich Bonhoeffer.
Preso e à espera da execução, ele escreveu alguns versos que se tornaram um
hino litúrgico em muitos países anglo-saxões:
“Envoltos em maravilha por
forças amigas, esperamos confiantes o porvir.
Deus está conosco de noite e
de manhã, estará conosco em cada novo dia” [13].
Um estudioso franciscano, Eloi Leclerc, em seu livro A sabedoria de um pobre, relata como Francisco de Assis encontrou a paz em um momento de profunda perturbação. Ele estava entristecido com a resistência de alguns ao seu ideal e sentia o peso da responsabilidade pela numerosa família que Deus lhe tinha confiado. Partiu de Verna e foi a São Damião para se encontrar com Clara. Ela o escutou e, para dar-lhe ânimo, apresentou um exemplo:
“Suponhamos que uma de
nossas irmãs viesse pedir-me desculpas por ter quebrado um objeto. Bem, eu lhe
faria, sem dúvida, uma observação e lhe daria, como de costume, uma penitência.
Mas se ela viesse dizer-me que havia posto fogo ao convento e que tudo foi
queimado ou quase, creio que, neste caso, eu nada teria a dizer. Eu me
surpreenderia perante um evento maior que eu. A destruição do convento é um
fato grande demais para que eu possa ficar por ele profundamente perturbada. O
que o próprio Deus construiu não pode basear-se na vontade ou no capricho de
uma criatura humana. O edifício de Deus se alicerça em bases muito mais
sólidas”.
Francisco compreendeu a
lição e respondeu:
“O porvir desta grande
família religiosa que o Senhor confiou aos meus cuidados constitui um fato
importante demais para que possa depender de mim sozinho e das minhas frágeis
forças e para que eu fique por ele perturbado. É um fato de Deus. Bem o disseste.
Mas reza para que esta palavra floresça em mim como semente de paz” [14].
O Poverello retornou
resserenado para junto dos seus, repetindo para si mesmo ao longo do caminho:
“Deus existe e isto basta! Deus existe e isto basta!”. Não é um episódio
historicamente documentado, mas interpreta bem, no estilo dos Fioretti,
um momento da vida de Francisco.
Aproximando-nos do Natal, eu gostaria de destacar o que considero o mais eficaz para conservarmos a paz do coração: a certeza de sermos amados por Deus. “Paz na terra aos homens por Ele amados”, ou, literalmente, “Paz na terra aos homens do [divino] beneplácito (eudokia)” (Lc 2,14). A Vulgata traduzia esse termo como “boa vontade” (bonae voluntatis), entendendo com ela a boa vontade dos homens, ou os homens de boa vontade. Mas é uma interpretação errada, hoje reconhecida por todos como tal, embora, por deferência à tradição, o Glória da Missa continue dizendo, pelo menos em alguns idiomas, “paz na terra aos homens de boa vontade”. As descobertas de Qumran trouxeram a prova definitiva. “Homens - ou filhos - da benevolência” é como são chamados, em Qumran, os filhos da luz, os eleitos da seita [15]. Trata-se dos homens que são objeto da benevolência divina.
Para os essênios de Qumran “o divino beneplácito” discrimina; aplica-se somente aos adeptos da seita. No
Evangelho, “os homens da divina benevolência” são todos os homens, sem exceção.
É como dizer “os homens nascidos de mulher”: não se quer dizer que alguns
nasceram de mulher e outros não; o que se quer é caracterizar a todos os homens
de acordo com a sua maneira de vir ao mundo. Se a paz fosse concedida aos
homens pela sua “boa vontade”, seria limitada a poucos, àqueles que a merecem;
mas, como ela é concedida pela boa vontade de Deus, pela graça, é oferecida a
todos.
“Assueta vilescunt”, diziam os latinos; as coisas repetidas muitas vezes perdem vigor, e isto acontece, infelizmente, também com as palavras de Deus. Temos que fazer com que isto não aconteça neste Natal. As palavras de Deus são como fios elétricos desencapados. Se os tocamos, levamos um choque; já se não houver corrente ou estivermos de luvas isolantes, podemos manejá-los como quisermos e não receberemos choque algum. O poder e a luz do Espírito estão sempre em ato, mas depende de nós recebê-los, por meio da fé, do querer e da oração. Quanta força, quanta novidade continham aquelas palavras - “Paz na terra aos homens amados pelo Senhor” - quando foram proclamadas pela primeira vez! Devemos renovar o nosso ouvido, como o ouvido dos pastores que as ouviram pela primeira vez e, “sem demora”, se puseram a caminho.
São Paulo nos indica um modo
de superar todas as nossas ansiedades e reencontrar cada vez a paz de coração,
mediante a certeza de sermos amados por Deus. Ele escreve: “Se Deus é por nós, quem
será contra nós? Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós
o entregou, como não nos dará também com ele todas as coisas? (...) Quem nos
separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A
nudez? O perigo? A espada? (...) Mas, em todas essas coisas, somos mais que
vencedores pela virtude d’Aquele que nos amou” (Rm 8,31-37).
A perseguição, os perigos, a
espada não são uma lista abstrata ou imaginária; são os motivos de angústia que
ele experimentou, de fato, na vida; ele os descreve amplamente na Segunda Carta
aos Coríntios (cf. 2Cor 11,23). O Apóstolo os revisa na mente
e constata que nenhum é forte o suficiente para resistir à comparação com o
pensamento do amor de Deus. Implicitamente, ele nos convida a fazer o mesmo:
olhar para a nossa vida tal como ela se apresenta, trazer à tona os medos e
motivos de tristeza aninhados nela e que não nos deixam aceitar serenamente a
nós mesmos: aquele complexo, aquele defeito físico ou moral, aquele insucesso,
aquela lembrança dolorosa; expor tudo isso à luz do pensamento de que Deus nos
ama e concluir com o Apóstolo: “Em todas estas coisas, posso ser mais do que
vencedor, pela virtude d’Aquele que me amou”.
Da sua vida pessoal, o
Apóstolo passa, logo em seguida, a considerar o mundo ao seu redor. Ele
escreve: “Pois estou persuadido de
que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente,
nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, nem outra
qualquer criatura poderá nos separar do amor que Deus nos testemunha em Cristo
Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,37-39).
Ele observa o “seu” mundo,
com os poderes que o tornavam ameaçador: a morte com o seu mistério, a vida
presente com as suas seduções, as forças astrais ou infernais que incutiam
tanto terror ao homem velho. Somos convidados, também nós, a fazer o mesmo:
olhar, à luz do amor de Deus, para o mundo que nos rodeia e que nos faz ter
medo. O que Paulo chama de “altura” e “profundidade” são para nós o
infinitamente grande e o infinitamente pequeno, o universo e o átomo. Tudo está
pronto para nos esmagar; o homem é fraco e sozinho em um universo muito maior
do que ele e, além disso, ainda mais ameaçador agora, com as atuais descobertas
científicas, as guerras, as doenças incuráveis, o terrorismo... Mas nada disso
pode nos separar do amor de Deus. Deus existe e isto basta!
Santa Teresa d’Ávila nos
deixou uma espécie de testamento, que convém repetir toda vez que precisarmos
reencontrar a paz do coração: “Nada te perturbe, nada te espante; tudo passa,
Deus não muda; a paciência tudo alcança; a quem tem Deus, nada falta. Só Deus
basta” [16].
Que o Natal de nosso Senhor,
Santo Padre, veneráveis Padres, irmãos e irmãs, seja realmente para nós, como
dizia São Leão Magno, “o natal da paz” [17]. Das três dimensões da paz: a paz
entre o céu e a terra, a paz entre todos os povos e a paz em nossos corações.
Meditação do Padre Raniero Cantalamessa (Capela Redemptoris Mater) |
Notas:
[1] Lenda dos três companheiros, 58 (Fontes Franciscanas, 1469)
[2] Apophtegmata Patrum, Arsênio 1-3 (J.C. GUY, ed., I padri del deserto: Così dissero, così vissero, Milano, 1997, 29).
[3] Santo Agostinho, Confissões, I, 1.
[4] ibid., XIII, 9.
[5] idem, Adnotationes in Iob, 39
[6] Dante Alighieri, Paraíso, 3, v. 85
[7] Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XIX, 27.
[8] Hino do Ofício da Dedicação de igreja.
[9] Mestre Eckhart, Sermões alemães, 7 (ed. J. Quint, Deutsche Werke, I, Stuttgart, 1936, p. 456)
[10] Il libro della Beata Angela, VII (ed. Quaracchi, 1985, p. 296).
[11] cf. G. Bottereau, Indifference, in: Dictionnaire de Spiritualité, vol. 7, 1688ss.
[12] Imitação de Cristo, III, 23-24.
[13] Von guten Mächten wunderbar geborgen / erwarten wir getrost, was kommen mag.
Gott ist mit uns am Abend und am Morgen / und ganz gewiss an jedem neuen Tag.
[14] E. Leclerc, La sagesse d’un pauvre, Paris, Desclée de Brouwer, 22e éd., 2007.
[15] cf. Hinos, I QH, IV, 32s, (XI, 9) (I manoscritti di Qumran, org. L. Moraldi, UTET, Turim, 1971, pp. 386.428).
[16] “Nada te turbe, nada te espante, todo se pasa, Dios no se muda; la paciencia todo lo alcanza; quien a Dios tiene nada le falta. Solo Dios basta”.
[17] São Leão Magno, Sermo de Nativitate Domini, XXXVI, 5 (PL 54, 215).
Fonte: Zenit (Acesso em dezembro de 2014).
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