“Alegra-te, Jerusalém!
Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria!
Saciai-vos com a abundância de suas consolações” (cf. Is
66,10-11).
O IV Domingo da Quaresma é conhecido também como Domingo Laetare,
em referência à antífona de entrada: Laetáre, Ierúsalem...
Os “motivos” dessa alegria são a proximidade da Páscoa, na
qual a Igreja acolherá novos filhos pelo sacramento do Batismo, e a chegada da
primavera no hemisfério norte, como veremos ao longo dessa postagem.
1. A origem do Domingo Laetare
Entre os séculos IV e V os fiéis de Rito Bizantino começaram
a solenizar a metade da Quaresma e da Páscoa com festas em honra de Cristo
como Mediador entre nós e o Pai (cf. 1Tm 2,5).
Na quarta-feira da IV semana da Páscoa, o 25º dia desse Tempo,
com efeito, os bizantinos celebram a festa do “Meio-Pentecostes” (ou Meso-Pentecostes), recordando o texto de Jo 7,14: “Quando a festa já estava pela metade,
Jesus subiu ao Templo para ensinar...”. O convite de Jesus a beber da “água viva” (Jo 7,37-38), por sua vez, precede a leitura do Evangelho da samaritana no domingo seguinte (Jo
4,5-42).
A metade da Quaresma, porém, oscila entre a terceira e a
quarta semanas nas diversas tradições, uma vez que há diferentes formas de
contar os “40 dias”.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Quaresma.
No Rito Bizantino a Quaresma começa na segunda-feira da 7ª
semana antes da Páscoa, de modo que a “metade” desse Tempo, do qual se exclui a
Semana Santa, é celebrada no III Domingo, conhecido como Domingo da Santa Cruz
[1].
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Exaltação da Santa Cruz.
No Rito Romano, por sua vez, a Quaresma originalmente
começava no 6º domingo antes da Páscoa, de modo que a “hebdomada mediana”
(semana média) tradicionalmente era a quarta.
Como “eco” do citado Domingo da Santa Cruz, em Roma fixou-se
como “igreja estacional” para o IV Domingo da Quaresma a Basílica da Santa Cruz “em Jerusalém” (Santa Croce in Gerusalemme), na qual conservam-se algumas
das supostas relíquias da Paixão e sob a qual Santa Helena (†330) teria mandado
espalhar terra de Jerusalém.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre as estações quaresmais romanas.
Basílica da Santa Cruz “em Jerusalém” (Roma) |
Vários textos litúrgicos desse Domingo, portanto, faziam
referência à “cidade santa”, como a célebre antífona de entrada: “Laetáre,
Ierúsalem...” - “Alegra-te, Jerusalém...”, tomada da terceira parte do Livro
de Isaías (Is 56–66), expressando a alegria do povo de Israel em retornar a casa após o exílio da Babilônia.
Outro texto recorrente nesse domingo era o Salmo 121 (122), composto
para as peregrinações ao Templo: “Que alegria, quando ouvi que me disseram: ‘Vamos
à casa do Senhor!’. E agora nossos pés já se detêm, Jerusalém, em tuas portas” (vv.
1-2).
Dado o simbolismo da “Jerusalém celeste”, a Igreja, que São
Paulo indica como “nossa mãe” (Gl 4,26), na Idade Média, sobretudo na
Inglaterra, o IV Domingo da Quaresma era um dia dedicado às mães.
Nesse domingo os fiéis costumavam também visitar a Catedral, “igreja-mãe” da Diocese (cf. Cerimonial dos Bispos, nn. 42ss), ou a igreja onde haviam sido batizados, como memória do Sacramento em vista
da Páscoa.
2. O IV Domingo da Quaresma e o itinerário batismal
A Quaresma é um tempo essencialmente batismal (cf. Constituição
Sacrosanctum Concilium, n. 109). O Domingo Laetare, com efeito, acolhia
o segundo escrutínio dos catecúmenos em preparação para os
Sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal.
Assim, durante um período haviam dois formulários de Missa para
esse dia: um para o segundo escrutínio, centrado no Evangelho da cura do cego
de nascença (Jo 9,1-41); e outro sem
relação com o itinerário batismal, no qual se proclamava o Evangelho da multiplicação
dos pães (Jo 6,1-15).
Não obstante, alguns liturgistas interpretaram a leitura
desse Evangelho aqui como uma alusão à multidão dos catecúmenos que seriam “alimentados”
com os Sacramentos na Vigília Pascal.
Cura do cego de nascença |
De toda forma, a partir do pontificado de São Gregório Magno
(†604), os escrutínios seriam transferidos para os dias de semana da Quaresma e
ampliados de três a sete, número associado à “plenitude”.
Os dois escrutínios mais solenes eram celebrados na quarta-feira
e no sábado da IV semana da Quaresma, a “hebdomada mediana”, com
uma série de sugestivos ritos: a entrega dos quatro Evangelhos, do Símbolo da
fé (Creio) e da oração do Senhor (Pai-nosso), a abertura dos ouvidos...
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II resgatou a celebração
dos três escrutínios nos Domingos III, IV e V da Quaresma. Assim, enquanto
alguns textos do IV Domingo fazem referência à alegria pela proximidade da
Páscoa (como a célebre antífona de entrada e a nova coleta), outros destacam o
simbolismo do Batismo como “iluminação” (como o Evangelho do Ano A, o Prefácio
próprio e a antífona da Comunhão).
3. A bênção da “rosa de ouro”
Um costume tipicamente romano para o IV Domingo da Quaresma
é a bênção da “rosa de ouro” presidida pelo Papa.
Essa bênção está relacionada ao início da primavera no
hemisfério norte, com o desabrochar das flores, e à mencionada “adoração da
cruz” pelos bizantinos no domingo anterior, quando esta é ornada com flores e “ungida”
com líquido perfumado.
A origem desse costume é incerta; o Papa Leão
IX (†1054) o menciona como algo já conhecido. Provavelmente a princípio se
tratava de uma homenagem com flores naturais que o Papa oferecia diante das
relíquias da Santa Cruz na igreja estacional desse domingo.
Logo, porém, a rosa natural seria substituída por uma “rosa
de ouro” (rosa aurea) que, após a Missa, o Papa doava ao Prefeito de Roma
ou a outro dignatário presente.
Rosa de ouro - Santuário Nacional de Aparecida (2017) |
A partir do século XI surge o costume de enviar a rosa a um
nobre, a uma cidade ou a uma igreja. O Papa Urbano II (†1099), por
exemplo, presenteou Fulque IV (†1109), Conde de Anjou (França), com uma “rosa
de ouro” em 1096, no contexto da Primeira Cruzada.
A princípio a “rosa” era enviada tanto a homens como a
mulheres. Com o tempo seria entregue sobretudo a mulheres, preferindo-se para os
homens outras condecorações, como espadas. A Princesa Isabel (†1921), com
efeito, recebeu essa honra do Papa Leão XIII (†1903) em 1889, após assinar a “Lei
Áurea” no ano anterior.
A partir do Concílio Vaticano II a “rosa de ouro” passou a
ser entregue apenas a igrejas, sobretudo a importantes santuários marianos ao redor
do mundo. O Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, por
exemplo, recebeu três rosas, dos Papas São Paulo VI (†1978) em 1967, Bento XVI (†2022)
em 2007 e Francisco em 2017.
O rito da bênção da “rosa de ouro” desenvolveu-se provavelmente
entre os séculos XIV e XV, com pequenas variações. O formato da “rosa” também
variou ao longo do tempo, desde uma única flor dourada até um grande vaso com
várias flores.
A bênção tinha lugar na capela privada da residência pontifícia,
junto à Basílica do Latrão, a Catedral de Roma: após uma oração na qual se
destacava o seu simbolismo espiritual, o Papa “ungia” a rosa com um bálsamo
(ou, em alguns períodos, com o próprio óleo do Crisma), a aspergia com água
benta e incensava.
O centro da flor, onde era derramado o bálsamo, costumava
ser fechado com uma pedra preciosa, em geral vermelha, cor associada ao sangue
derramado por Cristo em sua Paixão, ideia reforçada pelos “espinhos” da rosa [2].
Papa Paulo VI infunde o bálsamo em uma “rosa de ouro” |
Após a bênção, tinha lugar a breve procissão do Palácio
Lateranense até a Basílica da Santa Cruz “em Jerusalém”. Nessa procissão o Papa
levava a rosa na mão esquerda, enquanto com a direita abençoava os fiéis. Quando,
porém, a rosa tinha maiores dimensões, era conduzida por um clérigo.
Na Basílica da Santa Cruz se celebrava a Missa, presidida pelo
primeiro dentre os Cardeais Presbíteros (Protopresbítero) ou pelo próprio Papa.
Este costumava proferir a homilia com a “rosa de ouro” na mão, explicando aos
fiéis o seu significado espiritual e exortando-os a exalar no mundo “o bom odor
de Cristo” (cf. 2Cor 2,14-15).
Após a Missa, a rosa era entregue ao destinatário, se estivesse
presente em Roma, ou enviada através de um “Portador da Rosa” ou “Guardião da
Rosa”, que podia ser um Cardeal, um Núncio Apostólico, outro membro da Cúria ou
um nobre romano.
Atualmente a rosa é entregue pessoalmente pelo Papa ao
visitar algum santuário ou enviada por um Legado. Em 2017, por exemplo, o Cardeal
Giovanni Battista Re, então Vice-Decano do Colégio Cardinalício, foi o encarregado
de entregar a “rosa de ouro” ao Santuário Nacional de Aparecida.
No dia 08 de dezembro de 2023, por sua vez, o Papa Francisco
entregou pessoalmente uma “rosa de ouro” à Basílica de Santa Maria Maior em Roma, depositando-a diante da célebre imagem da Salus populi romani.
4. O uso da cor rosa no Domingo Laetare
O sugestivo rito da bênção da “rosa de ouro” inspirou a
designação do IV Domingo da Quaresma como “Dominica de Rosa” (Domingo da
Rosa), enriquecendo-o a partir do final da Idade Média com uma série de
particularidades litúrgicas:
- a permissão de ornar o altar com flores, omitidas durante o
resto da Quaresma;
- o uso mais amplo dos instrumentos musicais, que durante esse
Tempo devem apenas sustentar o canto;
- a possibilidade de substituir os paramentos roxos típicos
da Quaresma por paramentos de cor rosa (cf. Cerimonial dos Bispos, n. 252;
Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, nn. 17.25).
O uso da cor rosa, que sempre foi facultativo, é testemunhado
pela primeira vez no século XIII em Nápoles (Itália). Contudo, só seria acolhido
em Roma no final do século XVI, após a promulgação do Missale Romanum
pelo Papa São Pio V (†1572).
Posteriormente, por analogia, a possibilidade de usar
paramentos na cor rosa seria estendida ao III Domingo do Advento, chamado “Domingo
Gaudete”, que, sobretudo quando o Natal cai em um domingo, marca a
metade desse Tempo litúrgico.
Ó Deus, que por vosso Filho realizais de modo admirável a reconciliação do gênero humano, concedei ao povo cristão correr ao encontro das festas que se aproximam, cheio de fervor e exultando de fé. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.
(Coleta do IV Domingo da Quaresma)
Papa Francisco preside a Missa do Domingo Laetare (2019) |
Notas:
[1] Para saber mais sobre o Domingo da Santa Cruz e a festa
do “meio-Pentecostes”, confira: DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico
Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 90-91.106-107
[2] Sobre o simbolismo bíblico e teológico da rosa e das
flores em geral, confira:
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e
sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 163.312-313.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos
bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 104-105.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu
significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 76.
ALSTON,
George Cyprian. Laetare Sunday. in: The Catholic Encyclopedia, vol.
8, 1910. Disponível em: New Advent.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, vol. I: Introducción
general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 764-769.
ROCK,
P. M. J. Golden Rose. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 6, 1909. Disponível
em: New Advent.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum:
Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. III: Il Testamento Nuovo
nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla Settuagesima a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 116-119.
Imagens: Wikimedia Commons.
Nenhum comentário:
Postar um comentário