“Eu vos dou a minha paz” (Jo 14,27).
Há 10 anos, durante o Advento de 2014, o Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia de 1980 a 2024 (criado Cardeal em 2020), proferiu três meditações sobre a paz. Confira a seguir a primeira das três reflexões:
Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
I Pregação de Advento
05 de dezembro de 2014
“Eu vos dou a minha paz” (Jo 14,27):
A paz como dom de Deus em Jesus Cristo
1. Estamos em paz com Deus!
Se pudéssemos ouvir o grito
mais forte que existe no coração de bilhões de pessoas, ouviríamos, em todas as
línguas do mundo, uma única palavra: paz! A dolorosa atualidade deste tema,
junto com a necessidade de se devolver à palavra “paz” a riqueza e a profundidade
de significado de que ela se reveste na Bíblia, me levou a dedicar a este tema
as meditações de Advento deste ano. Ela nos ajudará, espero eu, a escutar com
ouvidos novos o anúncio natalino - “Paz na terra aos homens que Deus ama” - e a
começar a viver em nosso interior a mensagem que a Igreja, todos os anos,
apresenta ao mundo na Jornada Mundial da Paz.
Comecemos ouvindo o anúncio fundamental da paz. São palavras de Paulo na Carta aos Romanos: “Justificados, pois, pela fé, estamos em paz com Deus por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor, mediante o qual também tivemos, pela fé, o acesso a esta graça em que estamos firmes; e nos gloriamos na esperança da glória de Deus (Rm 5,1-2).
A pomba com o ramo de oliveira, símbolo da paz |
Eu ainda me lembro do que
aconteceu no dia em que acabou, para a Itália, a Segunda Guerra Mundial. Os
gritos de “Armistício! Paz!” ribombaram da cidade ao campo, de casa em casa.
Era o fim de um pesadelo: basta de terror, basta de bombardeios, basta de fome.
Parecia que finalmente se voltava a viver. Algo assim deve ter sido provocado,
no coração dos leitores, por aquele anúncio do Apóstolo: “Nós estamos em paz
com Deus! Foi selada a paz! Uma era nova começou para a humanidade na sua
relação com Deus!”. A época deles já foi definida como “de angústia” [1]. Os
homens daquele tempo tinham a impressão (nada infundada, aliás) de que uma
condenação pesava sobre a sua cabeça; Paulo a chamava de “cólera de Deus que se
revela do céu contra toda impiedade” (Rm 1,18). Daí os ritos e cultos
esotéricos de propiciação que pululavam na sociedade pagã daquele tempo.
Quando falamos de paz somos
levados a pensar quase sempre em uma paz horizontal: entre os povos, entre as
raças, entre as classes sociais, entre as religiões. A Palavra de Deus nos
ensina que a paz primeira e mais essencial é a vertical, entre o céu e a terra,
entre Deus e a humanidade. Dela dependem todas as outras formas de paz. Isto
nós vemos no próprio relato da criação. Enquanto Adão e Eva estão em paz com Deus,
há paz dentro de cada um deles, entre a carne e o espírito (estavam nus e não
se envergonhavam), há paz entre o homem e a mulher (“carne da minha carne”),
entre o ser humano e o resto da criação. Tão logo eles se rebelam contra Deus,
tudo se transforma em luta: a carne contra o espírito (eles se dão conta de
estarem nus), o homem contra a mulher (“a mulher me seduziu”), a natureza
contra o homem, o irmão contra o irmão (Caim contra Abel).
Por este motivo pensei em
dedicar esta primeira meditação à paz como dom
de Deus em Cristo Jesus. Na
segunda meditação falaremos da paz como tarefa pela qual trabalhar e, na terceira, da
paz como fruto do Espírito,
ou seja, da paz interior da alma. São os três âmbitos da paz evocados em um
hino da Liturgia das Horas: “Paz entre céu e terra, paz entre todos os povos,
paz em nossos corações” [2].
2. A paz de Deus, prometida e dada
O anúncio de Paulo que ouvimos
pressupõe o acontecimento de algo que mudou o destino da humanidade. Se agora
estamos em paz com Deus, isto quer dizer que antes não estávamos; se agora “não
há mais nenhuma condenação” (Rm 8,1), quer dizer que antes havia uma
condenação. Vejamos o que provocou uma mudança tão decisiva na relação entre o
homem e Deus.
Diante da rebelião do homem -
o pecado original - Deus não abandona a humanidade à sua sorte, mas decide um
novo plano para reconciliá-la consigo. Uma comparação trivial, mas útil para
entendermos, pode ser feita com os chamados sistemas de navegação por satélite,
instalados hoje nos carros. Se em algum momento o motorista não segue a
indicação do navegador, por exemplo, fazendo uma conversão à esquerda ao invés
de à direita, o navegador em poucos instantes traça uma nova rota, a partir da
posição em que ele está localizado, para chegar ao destino desejado. Foi isto o
que Deus fez em relação ao homem, decidindo, depois do pecado, o seu plano de
redenção.
A longa preparação começa
com as alianças bíblicas. Elas são, por assim dizer, “acordos de paz
separados”. Primeiro com indivíduos: Noé, Abraão, Jacó; depois, por meio de
Moisés, com todo Israel, que se torna o povo da aliança. Essas alianças, ao
contrário das humanas, são sempre alianças de paz, nunca de guerra contra
inimigos.
Mas Deus é Deus de toda a
humanidade: “Acaso Deus é Deus somente dos judeus? Não é Deus também dos
gentios?”, exclama São Paulo (Rm 3,29). Essas alianças antigas eram
temporárias, destinadas a ser estendidas um dia a todo o gênero humano. De
fato, os profetas começaram a falar cada vez mais claramente de uma “aliança
nova e eterna”, de uma “aliança de paz” (Ez 37,26) que, a partir de Sião
e de Jerusalém, se estenderá a todos os povos (cf. Is 2,2-5).
Esta paz universal é
apresentada como um retorno à paz inicial do Éden, com imagens e símbolos que a
tradição judaica interpreta em sentido literal e a tradição cristã em sentido
espiritual: “De suas espadas forjarão
relhas de arados, e de suas lanças, foices. Uma nação não levantará a espada
contra outra, e não se adestrarão mais para a guerra” (Is 2,4). “O
lobo habitará com o cordeiro, a pantera se deitará junto ao
cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarão juntos e um menino pequeno
os guiará” (Is 11,6-7).
O Novo Testamento vê
realizadas todas essas profecias com a vinda de Jesus. Seu nascimento é
revelado aos pastores com o anúncio: “Paz na terra aos homens que Deus ama!” (Lc
2,14). O próprio Jesus diz que veio ao mundo para trazer a paz de Deus: “Eu vos
deixo a paz; Eu vos dou a minha paz” (Jo 14, 27). Na tarde da Páscoa, no
Cenáculo, sabe-se lá com que divinas vibrações, sai da sua boca de Ressuscitado
a palavra “Shalom!”, “A paz esteja convosco!”. Como no anúncio dos anjos
no Natal, este não é apenas um cumprimento ou um augúrio, mas algo real, algo
que é transmitido. Todo o conteúdo da redenção estava contido naquela palavra.
A Igreja apostólica nunca se
cansa de proclamar o cumprimento, em Cristo, de todas as promessas de paz
feitas por Deus. Falando do Messias que nasceria em Belém da Judeia, o profeta
Miqueias tinha predito: “Ele será a nossa paz!” (Mq 5,4); exatamente o
que a Carta aos Efésios diz de Cristo: “Ele é a nossa paz” (Ef 2,14).
“O Natal do Senhor”, diz São Leão Magno, “é o natal da paz” [3].
3. A paz, fruto da cruz de Cristo
Coloquemos agora uma
pergunta mais precisa. Foi com a sua simples vinda à terra que Jesus restaurou
a paz entre o céu e a terra? É realmente o Nascimento de Cristo “o natal da
paz” ou é também, e acima de tudo, a sua Morte? A resposta se encontra na
palavra de Paulo da qual partimos: “Sendo, pois, justificados pela fé, estamos
em paz com Deus por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 5,1). A paz
vem da justificação pela fé e a justificação vem do sacrifício de Cristo na
cruz (cf. Rm 3,21-26)!
Além disso, a paz é o
próprio conteúdo da justificação. Esta não consiste apenas na remissão (ou, de
acordo com Lutero, na não-imputação) dos pecados, isto é, em algo puramente
negativo, um “remover” algo que havia; ela envolve também e acima de tudo um
elemento positivo, uma colocação de algo que não havia: o Espírito Santo e, com
Ele, a graça e a paz.
Uma coisa é clara: não se
entende a mudança radical ocorrida no relacionamento com Deus se não se entende
o que aconteceu na Morte de Cristo. Oriente e Ocidente são unânimes em
descrever a situação da humanidade antes de Cristo e fora de Cristo. Por um
lado, havia os homens que, pecando, tinham contraído com Deus uma dívida e
precisavam lutar contra o demônio que os mantinha escravos: situações, estas,
que eles não podiam resolver, sendo a dívida infinita e eles prisioneiros de
Satanás, de quem tinham que se livrar. Por outro lado, Deus podia expiar o
pecado e vencer Satanás, mas não devia fazê-lo, não era obrigado a fazê-lo, já
que não era Ele o devedor. Tinha que ser alguém que unificasse em si mesmo o
combatente e o capaz de vencer: é o caso de Cristo, Deus e homem. Assim se
expressam, com termos muito parecidos, Nicolau Cabasilas, entre os gregos, e
Santo Anselmo de Aosta, entre os latinos [4].
A Morte de Jesus na Cruz é o
momento em que o Redentor cumpre a obra da redenção, destruindo o pecado e
derrotando Satanás. Como homem, aquilo que Ele realiza nos pertence: “Cristo
Jesus foi feito por Deus, para nós, sabedoria, justiça, santificação e
redenção” (1Cor 1,30). Para
nós! Por outro lado, como Deus, o que Ele realiza tem valor infinito e
pode salvar “todos aqueles que recorrem a Ele” (Hb 7,25).
Em tempos recentes, tem-se
repensado profundamente o sentido do sacrifício de Cristo. Em 1972, o pensador
francês René Girard lançou a tese que considerava que “a violência é o coração
e a alma secreta do sagrado” [5]. Na origem, de fato, e no centro de toda
religião, incluída a hebraica, está o sacrifício, o rito do bode expiatório que
sempre envolve destruição e morte. Já antes dessa data, porém, aquele estudioso
tinha se reaproximado do Cristianismo e, na Páscoa de 1959, tinha tornado
pública a sua “conversão”, declarando-se crente e retornando à Igreja.
Isto lhe permitiu não ficar
apenas, em seus estudos posteriores, na análise do mecanismo da violência, mas
salientar também a forma de sair dele. A seu ver, Jesus desmascara e despedaça
o mecanismo que sacraliza a violência tornando-se o voluntário “bode
expiatório” da humanidade, a vítima inocente de toda a violência. Cristo, já
dizia a Carta aos Hebreus, não veio com o sangue dos outros, mas com o
próprio (Hb 9,11-14). Não fez vítimas, mas fez-se vítima. Não colocou os
seus pecados sobre os ombros dos outros, homens ou animais; colocou, sim, os
pecados dos outros sobre os próprios ombros: “Ele tomou sobre si os nossos
pecados no madeiro da cruz” (1Pd 2,24).
Pode-se então continuar
falando sobre o “sacrifício” da cruz e, por conseguinte, da Missa como
sacrifício? Durante muito tempo, o estudioso mencionado rejeitou este conceito,
considerando-o marcado demais pela ideia de violência, mas, depois, com toda a
tradição cristã, acabou admitindo a sua legitimidade, desde que, afirma ele, se
veja no de Cristo um novo tipo de sacrifício e se perceba nesta mudança de
significado “o fato central da história religiosa da humanidade” [6].
Tudo isto nos permite
entender melhor em que sentido aconteceu na Cruz a reconciliação entre Deus e
os homens. Em geral, o sacrifício de expiação servia para aplacar um Deus
enfurecido com o pecado. O homem, oferecendo a Deus um sacrifício, pede à
divindade a reconciliação e o perdão. No sacrifício de Cristo, a perspectiva é
invertida. Não é o homem quem exerce uma influência sobre Deus para que Ele se
aplaque. Antes, é Deus quem age para que o homem desista da própria inimizade
com Ele. “A salvação não começa com o pedido de reconciliação do homem, mas com
o pedido de Deus de nos reconciliarmos com Ele” [7]. Neste sentido entende-se a
afirmação do Apóstolo: “É Deus quem reconciliou consigo o mundo em Cristo” (cf.
2Cor 5,19), e ainda: “Sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante
a Morte do seu Filho” (Rm 5,10).
O encontro do Crucificado-Ressuscitado com os Apóstolos: “A paz esteja convosco” |
4. “Recebei o Espírito Santo!”
A paz que Cristo nos mereceu
com a sua Morte na Cruz se torna ativa e operante em nós mediante o Espírito
Santo. Por isto, no Cenáculo, depois de ter dito aos Apóstolos: “A paz esteja convosco!”,
Ele soprou sobre eles e acrescentou, como de um só fôlego: “Recebei o Espírito
Santo!” (Jo 20,22).
Na realidade, a paz vem,
sim, da Cruz de Cristo, mas não nasce dela. Nasce de mais longe. Na Cruz, Jesus
destruiu o muro do pecado e da inimizade que impedia a paz de Deus de se
difundir entre os homens. A fonte suprema da paz é a Trindade. “Ó Trindade
beata, oceano de paz!”, exclama a Liturgia em um dos seus hinos. Segundo
Dionísio Areopagita, “Paz” é um dos nomes próprios de Deus [8]. Ele é paz em si
mesmo, como é também amor e luz.
Quase todas as religiões
politeístas falam de divindades em permanente estado de rivalidade e de guerra
entre si. A mitologia grega é o exemplo mais conhecido. A rigor não se pode
falar de Deus como fonte e modelo de paz, nem mesmo no contexto de um monoteísmo
absoluto e numérico. A paz, assim como o amor, não pode existir a não ser entre
duas pessoas. Ela consiste em relações de beleza, em relações de amor, e a
Santíssima Trindade é precisamente essa beleza e perfeição de relações. O mais
impressionante, quando contemplamos o ícone da Trindade de Rublev é a sensação
de paz sobre-humana que emana dele.
Quando Jesus diz “Shalom”
e “Recebei o Espírito Santo”, Ele comunica aos discípulos algo da “paz de Deus
que supera todo entendimento” (Fl 4,7). Neste sentido, a paz é quase um
sinônimo de graça e, de fato, os dois termos são usados em conjunto, como uma
espécie de binômio, no início das Cartas apostólicas: “A vós, graça e paz da
parte de Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 1,7; 1Ts 1,1).
Quando se proclama na Missa: “A paz esteja convosco”, “Cordeiro de Deus, que
tirais os pecados do mundo, dai-nos a paz” e, no final, “Ide em paz”, é dessa
paz, como dom de Deus, que estamos falando.
5. “Reconciliai-vos com Deus!”
Gostaria de destacar agora
como este dom da paz, recebida ontologicamente e de direito por meio do Batismo,
deve mudar pouco a pouco, também de fato e psicologicamente, a nossa relação
com Deus. O premente apelo de Paulo: “Em nome de Cristo nós vos suplicamos:
deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20), é dirigido aos cristãos
batizados que vivem há tempos na comunidade. Não se refere, portanto, à
primeira reconciliação, nem, evidentemente, ao que chamamos de “Sacramento da Reconciliação”.
Neste sentido atual e existencial, ele é dirigido também a cada um de nós, que
tentamos entender em que ele consiste.
Uma das razões, talvez a
principal, da alienação da religião e da fé por parte do homem moderno é a
imagem distorcida que ele tem de Deus. Esta é também a causa de um Cristianismo
apagado, sem impulso e sem alegria, vivido mais como um dever do que como um dom.
Eu penso no quanto era grandiosa a imagem de Deus Pai na Capela Sistina quando
a vi pela primeira vez, toda recoberta por uma pátina escura, e como é agora,
após a restauração, com as cores vivazes e os contornos nítidos com que tinha
saído do pincel de Michelangelo. Uma restauração mais urgente da imagem de Deus
Pai deve acontecer no coração dos homens, incluídos nós, os fiéis.
Qual é a imagem
“predefinida” de Deus (na linguagem dos computadores, de funcionar como um
padrão) no inconsciente coletivo humano? Basta, para descobrirmos, perguntar a
nós mesmos e aos outros: “Que ideias, que palavras, que realidades surgem
espontaneamente em mim, antes de qualquer reflexão, quando digo ‘Pai nosso, que
estais no céu... Seja feita a vossa vontade’”? Inconscientemente, associamos a
vontade de Deus a tudo o que é desagradável, doloroso, àquilo que, de uma forma
ou de outra, pode ser visto como uma mutilação da liberdade e do
desenvolvimento individual. É como se Deus, de certa forma, fosse o inimigo de
toda festa, alegria, prazer.
Outra pergunta reveladora: o
que sugere para nós a invocação “Kyrie eleison”, “Senhor, tende piedade
de nós”, que pontua a oração cristã e, em algumas Liturgias, acompanha a Missa
do início ao fim? Ela acabou se tornando apenas o pedido de perdão da criatura
que vê Deus sempre no processo (e no direito) de puni-la. A palavra “piedade”
foi tão aviltada a ponto de ser usada frequentemente em sentido negativo, como
algo mesquinho e desprezível: “causar piedade” como sinônimo de “dar pena”,
“causar vergonha alheia”. De acordo com a Bíblia, “Kyrie eleison” deve
ser traduzido como “Senhor, cobri-nos com a vossa ternura!”. Basta ler como
Deus fala do seu povo em Jeremias: “Meu coração se comove e sinto por ele uma
profunda ternura [eleos]” (Jr 31,20). Quando os doentes, os
leprosos e os cegos gritam para Jesus, como em Mt 9,27, “Senhor, tem
piedade (eleeson) de mim!”, eles não querem dizer “Perdoa-me”, e sim
“Tem compaixão de mim”.
Deus é visto, geralmente,
como o Ser Supremo, o Todo-Poderoso, o Senhor do tempo e da história, ou seja,
como uma entidade que se impõe ao indivíduo a partir de fora; nenhum detalhe da
vida humana lhe escapa. A transgressão da sua lei introduz inexoravelmente uma
desordem que exige reparação. Não podendo, esta reparação, ser jamais
considerada adequada, surge a angústia da morte e do julgamento divino.
Eu confesso que quase
estremeço ao ler as palavras que o grande Bossuet dirige a Jesus na Cruz, em um
discurso da Sexta-Feira Santa: “Lanças-te, Jesus, nos braços do Pai, e te
sentes rejeitado; sentes que é Ele mesmo quem te persegue, quem te golpeia,
quem te abandona; que é Ele mesmo que te esmaga sob o peso enorme e
insuportável da sua vingança... A cólera de um Deus enfurecido: Jesus reza e o
Pai, irado, não o escuta; é a justiça de um Deus vingador perante as ofensas
recebidas; Jesus sofre e o Pai não se aplaca!” [9]. Se assim falava um orador
do alto nível de Bossuet, podemos imaginar a que tipo de coisa se abandonavam
os pregadores populares daquele tempo. Entende-se, assim, como foi se formando
aquela imagem “predefinida” de Deus no coração do homem.
É claro que nunca se ignorou
a misericórdia de Deus! Mas a ela foi confiada apenas a tarefa de moderar os
irrenunciáveis rigores da justiça. Aliás, na prática, fez-se com que o amor e o
perdão de Deus dependessem do amor e do perdão que damos ao próximo: se
perdoarmos a quem nos ofendeu, então Deus poderá, por sua vez, nos perdoar
também. Criou-se com Deus um relacionamento de barganha. Não se diz que é
preciso acumular méritos para ganhar o Paraíso? E não se atribui grande
importância aos esforços a ser feitos, às Missas a mandar rezar, às velas a ser
acesas, às novenas a realizar?
Tudo isso, que permitiu no
passado a muita gente demonstrar o próprio amor a Deus, não pode ser jogado
fora: deve ser respeitado. Deus faz desabrocharem as suas flores - e os seus
santos - em qualquer clima. Não há como negar, porém, o risco de se cair numa
religião utilitária, no “do ut des”, “dou para que dês”. Por trás de
tudo está o pressuposto de que a relação com Deus depende do homem. Ele não
pode se apresentar diante de Deus de mãos vazias: deve sempre ter algo a lhe
dar. E é verdade que Deus diz a Moisés: “Ninguém se apresentará diante de mim
com as mãos vazias” (Ex 23,15; 34, 20), mas este é o Deus da lei, não
ainda o Deus da graça. No reino da graça, o homem deve se apresentar diante de
Deus justamente “de mãos vazias”; a única coisa que ele precisa trazer “nas
mãos”, ao se apresentar a Ele, é o seu Filho Jesus.
Vejamos como o Espírito
Santo, quando nos abrimos a Ele, transforma esta situação. Ele nos ensina a
olhar para Deus com olhos novos: como o Deus da lei, é claro, mas, ainda mais,
como o Deus do amor e da graça, como o Deus “misericordioso e compassivo; lento
na ira e grande no amor” (Ex 34,6). Ele nos revela Deus como um aliado e
amigo, como quem “não poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (é
assim que deve ser entendida a passagem de Rm 8,32!); em suma, como um
Pai de imensa ternura. Aflora então o sentimento filial que se traduz
espontaneamente no grito: “Abbá, Pai!”. Como quem diz: “Eu não te
conhecia, ou só te conhecia por ouvir dizer; agora te conheço, sei quem és; sei
que me amas de verdade e que me és propício”. O filho tomou o lugar do escravo;
o amor, o lugar do medo. É assim que se chega verdadeiramente à reconciliação
com Deus, inclusive no âmbito subjetivo e existencial.
Repitamos também nós, de vez
em quando, com a íntima alegria e a jubilosa certeza do Apóstolo: “Justificados
pela fé, estamos em paz com Deus!”.
Meditação do Padre Raniero Cantalamessa (Capela Redemptoris Mater) |
Notas:
[1] E. R. Dodds, Pagani e cristiani in un’epoca di
angoscia. Aspetti
dell’esperienza religiosa da Marco Aurelio a Costantino, Florença, La
Nuova Italia, 1993.
[2] Hino das Laudes do Domingo (Próprio da
Itália).
[3] São Leão Magno, In Nativitate Domini, XXXVI,
5 (PL 54, 215).
[4] N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 5 (PG 150, 313); cf.
Anselmo, Cur Deus homo?, II,
18.20; Tomás de Aquino, Summa
theologiae, III, q. 46, art.
1, ad 3.
[5] cf. R. Girard, La violence et le sacré,
Grasset, Paris, 1972.
[6] cf. idem, Il sacrificio, Milão, 2004.
[7] G. Theissen - A. Merz; Il Gesú storico, Queriniana,
Brescia, 2003, p. 573.
[8] Pseudo-Dionísio Areopagita, Nomes divinos, XI, 1s (PG 3,
948s).
[9] J.B. Bossuet, Oeuvres complètes, IV,
Paris, 1836, p. 365.
Fonte: Zenit (Acesso em dezembro de 2014).
Confira o índice das meditações do Cardeal Cantalamessa publicadas em nosso blog clicando aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário