“Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador” (Lc 2,11).
Há um ano, em dezembro de 2023, publicamos aqui em nosso
blog um artigo sobre a sequência Grates nunc omnes para a Missa da Noite
da Solenidade do Natal do Senhor.
Durante a Idade Média, com efeito, as principais celebrações
do Ano Litúrgico contavam geralmente com uma ou mais sequências, composições poéticas
entoadas antes do Evangelho da Missa, até que a reforma do Concílio de Trento
(século XVI) infelizmente as reduziu a apenas quatro [1].
Era o caso da Solenidade do Natal do Senhor, que
contava com ao menos três sequências, em alusão às três Missas (da Noite, da
Aurora e do Dia): Grates nunc omnes, Eia recolamus e Natus
ante saecula.
Adoração dos pastores (Gerard van Honthorst) |
Essas composições foram elencadas pelo célebre Notker
Balbulus (†912), monge da Abadia beneditina de São Galo (Sankt Gallen), na
Suíça, em seu Liber Sequentiarum, no qual compila 38 sequências.
Após apresentamos a sequência Grates nunc omnes em
2023, nesta postagem damos continuidade à proposta com Eia recolamus
laudibus piis digna, geralmente indicada para a Missa da Aurora
(In aurora, In primo mane).
Contudo, uma vez que essa sequência era bastante popular em
toda a Europa, às vezes aparecia indicada para a “Missa principal” do Natal (In
summa Missa Nativitatis Domini, In magna Missa), isto é, a Missa com maior
concurso de povo, ou então para a Missa da Noite (In galli cantu).
No Missal de Sarum, utilizado na Inglaterra durante a
Idade Média, por sua vez, essa sequência era indicada para o dia 01 de janeiro,
Oitava do Natal e Festa da Circuncisão do Senhor (In Octava Nativitatis
Domini, In die Circumcisionis Domini).
Não está claro se Notker foi o autor do texto ou apenas o compilou. Alguns estudiosos sugerem que se trata de uma composição
anônima realizada na Alemanha entre os séculos X e XI.
Não obstante, assim como outras sequências atribuídas a
Notker, sua divisão em estrofes não é clara. Propomos aqui uma divisão em nove
estrofes de dois versos de métrica desigual, exceto a primeira e a
última estrofes, com três versos.
A composição, ademais, se caracteriza por uma espécie de “assonância”:
várias palavras terminam em “a” ou em variantes (“am”, “at”),
o que dá grande musicalidade ao texto.
Segue, pois, o texto da sequência no original (em latim) e
em uma tradução nossa bastante livre (mais uma adaptação do que uma tradução),
seguidos de um breve comentário sobre a sua teologia.
Sequentia in Nativitate Domini: Eia recolamus
1. Eia recolamus laudibus piis digna,
Hujus diei gaudia, in qua nobis lux oritur gratissima.
Noctis inter nebulosa pereunt nostri criminis umbracula.
2. Hodie saeculo maris stella est enixa novae salutis gaudia,
Quem tremunt barathra, mors cruenta pavet ipsa, a quo peribit mortua.
3. Gemit capta pestis antiqua, coluber lividus perdit spolia.
Homo lapsus, ovis abducta, revocatur ad aeterna gaudia.
4. Gaudent in hac die agmina angelorum caelestia:
Quia erat drachma decima perdita, et est inventa.
5. O culpa nimium beata, qua redempta est natura.
Deus, qui creavit omnia, nascitur ex femina.
6. Mirabilis natura, mirifice induta, assumens quod non erat, manens quod erat.
Induitur natura divinitas humana: quis audivit talia, dic, rogo facta.
7. Quaerere venerat pastor pius quod perierat.
Induit galeam, certat ut miles armatura.
8. Prostratus in sua propria ruit hostis spicula; auferuntur tela,
In quibus fidebat, divisa sunt illius spolia, capta praeda sua.
9. Christi pugna fortissima salus nostra est vera,
Qui nos suam ad patriam duxit post victoriam,
In qua tibi laus est aeterna [2].
Sagrada Família (Gerard van Honthorst) |
Sequência do Natal do Senhor: Vinde, celebremos
1. Vinde, celebremos as alegrias deste dia,
Digno de piedosos louvores, no qual nasce para nós a luz mais agradável:
Entre as nuvens da noite desaparecem as sombras dos nossos crimes.
2. Hoje, no tempo, a Estrela do mar deu à luz a alegria da nova salvação:
Aquele por quem tremem os infernos e a própria morte cruenta, pois por Ele ela perecerá.
3. A peste antiga geme cativa, a serpente invejosa perde sua presa.
O homem caído, como a ovelha perdida, é reconduzido às alegrias eternas.
4. Alegrem-se neste dia as multidões dos anjos no céu,
Porque a décima dracma perdida foi encontrada.
5. Ó culpa verdadeiramente feliz, pela qual a natureza foi redimida.
Deus, que criou todas as coisas, nasceu de uma mulher.
6. A admirável natureza (divina), milagrosamente revestida, assumiu o que não era, permanecendo o que era;
A divindade reveste a natureza humana: diga-me, eu imploro, quem ouviu falar de tais feitos?
7. O pastor piedoso veio buscar o que estava perdido.
Ele endossa o elmo e, como soldado, combate em armadura.
8. O inimigo cai prostrado sobre seu próprio aguilhão, arrebatadas as armas nas quais confiava,
Seu espólio é dividido, sua presa é tomada.
9. Nossa verdadeira salvação é a fortíssima luta de Cristo,
Que depois da vitória nos conduz à sua pátria,
Onde o louvor a Ele é eterno.
“E o seu reino não terá fim” (Lc 1,33) (Catedral de St Albans, Inglaterra) |
Breve comentário:
Enquanto Grates nunc omnes era uma espécie de
“ladainha” em louvor à Trindade, Eia recolamus
se centra no caráter soteriológico (salvífico) do mistério da Encarnação,
celebrando a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte.
A 1ª estrofe começa com uma interjeição, “eia”,
que serve como convite ao louvor: “Eia recolamus...” - “Vinde,
celebremos...”.
O verbo utilizado, “recolere”, remete ao caráter
cíclico da celebração: retomemos, recordemos, cultivemos de novo. A cada ano,
com efeito, a Igreja nos concede celebrar “as alegrias deste dia, digno de
piedosos louvores”.
A segunda parte da estrofe começa a elencar os “motivos do
louvor”: neste dia “nasce para nós a luz mais agradável”, isto é, Cristo (cf.
Jo 8,12; 1,4-5.9-10).
O último verso da estrofe continua cantando o tema da luz,
destacando seu caráter salvífico: “Entre as nuvens da noite desaparecem as
sombras dos nossos crimes”. O texto parece referir-se ao nascimento de Cristo,
quando as trevas da noite dão lugar ao “dia da salvação” (cf. Lc 2,8-9; Sb
18,14-15; Is 9,1).
A 2ª estrofe começa com uma palavra fundamental no
contexto do Natal: “hodie”, “hoje”, que remete diretamente ao anúncio
dos anjos (Lc 2,11). A celebração litúrgica, na qual se entoa a
sequência, não é mera recordação do passado, mas atualização do mistério da
salvação (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1104.1165).
O texto prossegue cantando a Encarnação: neste dia, “no
tempo” ou “no mundo” (saeculo), a Estrela do mar, Maria, deu à luz a
alegria da nova salvação: Cristo.
O título “estrela do mar” (stella maris) é aplicado a
Maria desde os séculos VIII-IX, destacando-a como aquela que aponta para o
porto seguro, que é Cristo (cf. Jo 2,5). Este, por sua vez, é referido
como “alegria da nova salvação” (novae salutis gaudia), em alusão à nova
e eterna aliança que será inaugurada com o seu sangue.
O último verso da estrofe, com efeito, canta a vitória de
Cristo sobre “os infernos” ou “os abismos” (barathra) e sobre a morte
(mors), vitória que será obtida principalmente pelo Mistério Pascal da sua
Morte e Ressurreição, mas que pode ser referida a toda a sua vida (cf.
Catecismo, nn. 514-518).
A 3ª estrofe continua cantando esse mistério,
proclamando a derrota da “peste antiga” (pestis antiqua), isto é, o
pecado, e da serpente invejosa (coluber lividus), o Diabo (cf. Os
3,14; 1Cor 15,54-57; Ap 1,18; 20,14).
A segunda parte da estrofe, por sua vez, recorda a célebre
parábola da “ovelha perdida” (Lc 15,4-7; Mt
18,12-14; cf. Ez 34). A “ovis abducta” é comparada ao “homem caído” (homo lapsus),
que será “chamado de volta” (revocatur) às alegrias
eternas.
A imagem do homem caído reconduzido à alegria pode nos
recordar a célebre parábola do “filho perdido” ou do “filho pródigo” (Lc
15,11-32).
As duas parábolas são representadas na Porta Santa da Basílica de São Pedro, que será aberta pelo Papa Francisco na Noite de Natal, dando início ao Jubileu 2025.
Completando a referência às “parábolas da misericórdia” do
capítulo 15 do Evangelho de Lucas, na 4ª estrofe se recorda a “dracma
perdida” ou “moeda perdida”, que foi encontrada, símbolo do homem redimido. Por
isso as multidões (ou exércitos) dos anjos no céu (agmina angelorum
caelestia) são convidadas a alegrar-se “neste dia” (in hac die).
A estrela de Belém (Bruno Piglhein) |
A 5ª estrofe começa retomando uma imagem presente na
Proclamação da Páscoa (Exsultet), entoada no início da Vigília Pascal: a “felix culpa” de Adão que
ocasionou a graça da redenção: “Ó culpa tão feliz que há merecido a graça de um
tão grande Redentor”.
Nossa sequência, “fazendo a ponte” entre o Natal e a Páscoa,
canta: “O culpa nimium beata, qua redempta est natura” - “Ó culpa
verdadeiramente feliz, pela qual a natureza (humana) foi redimida”.
Em alguns manuscritos, porém, a frase é “O
proles nimium beata...”, ou seja, “Ó criança verdadeiramente bem-aventurada...”,
conservando a referência ao mistério da Encarnação, como canta a segunda parte
da estrofe: Deus, que criou todas as coisas (cf. Jo 1,3; Cl
1,15-17), nasceu de uma mulher (Gl 4,4).
A 6ª estrofe prossegue cantando o “admirabile
commercium”, o admirável intercâmbio de dons entre o céu e a terra
que ocorre na Encarnação: a natureza divina se reveste da natureza humana - “Induitur
natura divinitas humana...” (cf. Fl 2,6-7).
A sequência cita indiretamente aqui uma expressão de São
Leão Magno, Papa (†461): Cristo “assumiu o que não era, permanecendo o que era”
(assumens quod non erat, manens quod erat). Ou seja, assumiu a natureza
humana, sem deixar de ser Deus (cf. Catecismo,
n. 469; São Leão Magno, Sermão 1 no Natal do Senhor).
Essa expressão é citada também na antífona do cântico evangélico das Laudes (oração da manhã da Liturgia das Horas) da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (01 de janeiro): “(...) conservando a divindade, assumiu a
humanidade”.
A 7ª estrofe retoma algumas imagens usadas anteriormente: o “pastor piedoso” (pastor pius) ou “bom pastor” (cf. Jo
10,1-18), mencionado indiretamente na alusão à “ovelha perdida”, que veio
“buscar o que estava perdido” (Lc 19,10); e a “luta” de Cristo contra o
pecado e a morte, recordando aqui as imagens “bélicas” como o capacete ou elmo
e a armadura (cf. Ef 6,10-17).
A 8ª estrofe prossegue com essa metáfora,
retomando as referências da 3ª estrofe sobre a derrota do “inimigo”
(hostis), isto é, o Diabo: ele “cai prostrado sobre seu próprio
aguilhão”, as “armas nas quais confiava” lhe são “arrebatadas”, etc.
Por fim, a 9ª estrofe conclui celebrando mais uma vez
a “luta” de Cristo, que é “nossa verdadeira salvação” (Christi pugna
fortissima salus nostra est vera), acrescentando uma nota de esperança
escatológica: após sua vitória, Ele nos conduzirá à sua pátria (qui nos suam
ad patriam duxit) - ou, em algumas versões do texto, à
pátria mais elevada (qui nos summam ad patriam duxit) -, isto é, ao
céu, onde o louvor a Ele é eterno (in qua tibi laus est aeterna).
Notas:
[1] Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa), Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes), Lauda Sion (Corpus Christi) e Dies irae (Missas dos defuntos). No século XVIII seria acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Nossa Senhora das Dores).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II transformou a
sequência Dies irae em hino facultativo da Liturgia das Horas para a
última semana do Tempo Comum, conservando as outras quatro.
Para acessar outras sequências apresentadas aqui em nosso blog, clique aqui.
[2] NOTKER
Balbulus. Liber Sequentiarum, cap. II: In primo mane. in: MIGNE, J.
P. Patrologiae: Cursus Completus, Series Latina, vol. 131, p. 1005.
MISSALE AD USUM INSIGNIS ET PRAECLARAE ECCLESIAE SARUM. Labore ac studio: Francisci Henrici
Dickinson. Burntisland: 1861-1883, pp. 77-79.
THESAURUS HYMNOLOGICUS sive Hymnorum, canticorum,
sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio amplissima. Tomus Secundus:
Sequentiae, cantica, antiphonae. Lipsiae, 1855, pp. 03-04.
Imagens: Wikimedia Commons.
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