Com sua 49ª Catequese sobre Jesus Cristo o Papa São João Paulo II concluiu a seção sobre a formulação dogmática da fé em Cristo e com ela a 1ª parte das suas meditações, centrada na Pessoa de Jesus.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO
49. As definições cristológicas dos Concílios e a fé da Igreja de hoje
João Paulo II - 13 de abril de 1988
1. Nas últimas Catequeses, resumindo
a doutrina cristológica dos Concílios Ecumênicos e dos Padres, pudemos perceber
do esforço realizado pela mente humana para penetrar no mistério do homem-Deus,
e ler n’Ele as verdades da natureza humana e da natureza divina, da sua dualidade
e da sua união na pessoa do Verbo, das propriedades e faculdades da natureza
humana e da sua perfeita harmonização e subordinação à hegemonia do “Eu”
divino. Essa leitura profunda foi traduzida pelos Concílios com conceitos e termos
tomados da linguagem corrente, que era a expressão natural do modo comum de conhecer
e de raciocinar, anterior à conceitualização realizada por qualquer escola
filosófica ou teológica.
A busca, a reflexão e a tentativa
de aperfeiçoar a forma de expressão não faltaram aos Padres e não faltarão nos
sucessivos séculos da Igreja, ao longo dos quais os conceitos e termos utilizados
na cristologia - especialmente o de “pessoa” - receberam aprofundamentos e
precisões de valor incalculável também para o progresso do pensamento humano. Mas
o seu significado na aplicação à verdade revelada não estava vinculado ou condicionado
por autores ou escolas particulares: era aquele que se podia captar na linguagem
ordinário dos entendidos e também dos não entendidos de qualquer tempo, como se
pode perceber da análise das definições formuladas nesses termos.
Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) |
2. É compreensível que em tempos mais
recentes, querendo traduzir os dados revelados em uma linguagem que correspondesse
a novas concepções filosóficas ou científicas, alguns encontraram certa dificuldade
na hora de empregar e aceitar aquela terminologia antiga, especialmente a
distinção entre natureza e pessoa, que é
fundamental tanto na cristologia tradicional como na teologia da Trindade.
Particularmente quem deseja se inspirar nas posições das diversas escolas modernas,
que insistem em uma filosofia da linguagem e em uma hermenêutica dependente dos
pressupostos do relativismo, subjetivismo, existencialismo, estruturalismo,
etc., será levado a menosprezar ou mesmo a rejeitar os antigos conceitos e termos
por considerá-los imbuídos de escolasticismo, formalismo, estaticismo, a-historicidade,
etc., e, por conseguinte, inadequados para expressar e comunicar hoje o mistério
do Cristo vivo.
3. Mas o que aconteceu então? Em
primeiro lugar, que alguns se tornaram prisioneiros de uma nova forma de
escolasticismo, induzidos por noções e terminologias vinculadas às novas correntes
de pensamento filosófico e científico, sem preocupar-se por um autêntico confronto
com a forma de expressão do senso comum e, podemos dizer, da inteligência
universal, que permanece indispensável também hoje para comunicar-se uns com os
outros no pensamento e na vida. Em segundo lugar, como era previsível, se passou
da crise aberta sobre a questão da linguagem à relativização do dogma niceno e
calcedoniano, considerado como uma simples tentativa de leitura histórica,
datada, superada e que não poderia mais ser proposta à inteligência moderna.
Esta passagem foi e continua sendo muita arriscada e pode conduzir a posturas
dificilmente conciliáveis com os dados da Revelação.
4. Nessa nova linguagem, com
efeito, se chegou a falar da existência de uma “pessoa humana”
em Jesus Cristo, baseando-se na concepção fenomenológica da personalidade, dada
por um conjunto de momentos expressivos da consciência e da liberdade, sem consideração
suficiente pelo sujeito ontológico que está na sua origem. Ou então se reduziu a
personalidade divina à autoconsciência que Jesus tem do “divino”
que há n’Ele, sem entender a Encarnação como assunção da natureza humana por
parte de um “Eu” divino transcendente e preexistente. Essas concepções, que refletem
também sobre o dogma mariano e, de maneira particular, sobre a maternidade
divina de Maria, tão ligada nos Concílios ao dogma cristológico, incluem quase
sempre a negação da distinção entre natureza e pessoa,
termos que, ao contrário, os Concílios tomaram da linguagem comum e elaboraram
teologicamente como chave interpretativa do mistério de Cristo.
5. Esses fatos, que aqui só
podemos referir brevemente, nos fazem compreender quão delicado seja o problema
da nova linguagem tanto para a teologia como para a catequese, sobretudo quando,
partindo da rejeição - cheia de preconceito - de categorias antigas (por exemplo,
as apresentadas como “helênicas”), se acaba por sofrer tal dependência das novas
categorias - ou das novas palavras - que, em seu nome, se pode chegar a manipular
mesmo a substância da verdade revelada.
Isso não significa que não se possa
ou não se deva continuar a investigar o mistério do Verbo Encarnado e a “pesquisar
a maneira mais adequada de comunicar a doutrina cristã”, segundo as normas e o espírito
do Concílio Vaticano II, o qual, com João XXIII, enfatiza bem que “uma coisa
é o próprio depósito da fé ou as verdades, e outra é a maneira pela qual são enunciadas,
conservando o mesmo sentido e o mesmo significado” (Gaudium et spes, n. 62;
cf. João XXIII, Discurso de abertura do Concílio, 11 de outubro
de 1962).
A mentalidade do homem moderno,
formada segundo os critérios e os métodos do conhecimento científico, deve ser
entendida levando em conta sua tendência à investigação nos distintos campos do
saber, mas sem esquecer sua mais profunda aspiração a um “mais além” que supera
qualitativamente todas os confins do experimentável e do calculável, assim como
as frequentes manifestações da necessidade de uma sabedoria muito
mais satisfatória e estimulante do que a que oferece a ciência. Desse
modo, essa mentalidade contemporânea não se apresenta de nenhuma maneira impenetrável
ao discurso sobre as “razões supremas” da vida e sobre o seu fundamento em Deus.
Daqui emerge também a possibilidade de um discurso sério e leal sobre o Cristo
dos Evangelhos e da história, formulado consciente do mistério e, portanto, como
que “balbuciando”, mas sem renunciar à clareza dos conceitos elaborados com a ajuda
do Espírito pelos Concílios e pelos Padres e transmitidos a nós pela Igreja.
6. A esse “depósito” revelado e transmitido
deverá permanecer fiel a catequese cristológica, a qual, estudando e apresentando
a figura, a palavra, a obra do Cristo dos Evangelhos, poderá enfatizar magnificamente,
precisamente nesse conteúdo de verdade e de vida, a afirmação da preexistência
eterna do Verbo, o mistério da sua “kénosis” (cf. Fl 2,7),
sua predestinação e exaltação, que é o fim verdadeiro de toda a economia da salvação
e que engloba com Cristo e em Cristo, homem-Deus,
toda a humanidade e, de certo modo, todo o criado.
Essa catequeses deverá presentar a
verdade integral do Cristo como Filho e Verbo de Deus na grandeza da Trindade (outro
fundamental dogma cristão), que se encarna para nossa salvação e realiza assim a
máxima união pensável e possível entre a criatura e o Criador, no ser humano e
em todo o universo.
Tal catequese não poderá descuidar, além disso, a verdade de Cristo que tem sua própria realidade ontológica de humanidade pertencente à Pessoa divina, mas também uma íntima consciência da sua divindade, da unidade entre a sua humanidade e a sua divindade e da missão salvífica que, como homem, lhe foi confiada.
Aparecerá assim a verdade pela qual
em Jesus de Nazaré, em sua experiência e conhecimento interior, se dá a mais elevada
realização da “personalidade” também no seu valor de “sensus sui”,
de autoconsciência como fundamento e centro vital de toda atividade interior e
exterior, mas realizada na esfera infinitamente superior da Pessoa divina do Filho.
Aparecerá igualmente a verdade do
Cristo que pertence à história como um personagem e um fato particular - “nascido de mulher, nascido sujeito à Lei” (Gl 4,4),
mas que concretiza em si o valor universal da humanidade pensada e criada no “eterno
conselho” de Deus; a verdade do Cristo como realização total do projeto eterno
que se traduz na “aliança” e no “reino” - de Deus e do homem - que conhecemos pela
profecia e pela história bíblica; a verdade do Cristo, Logos eterno, luz
e razão de todas as coisas (cf. Jo 1,4.9ss), que se
encarna e se faz presente no meio dos homens e das coisas, no coração da história,
para ser - segundo o desígnio de Deus Pai - a cabeça ontológica do universo, o
Redentor e Salvador de todos os homens, o Restaurador que recapitula todas as
coisas, do céu e da terra (cf. Ef 1,10).
7. Bem longe das tentações de qualquer
forma de monismo materialista ou panlógico, uma nova reflexão sobre este mistério
de Deus que assume a humanidade para integrá-la, salvá-la e glorificá-la na comunhão
conclusiva da sua glória, não perde nada do seu fascínio e permite saborear sua
verdade e beleza profundas, se, desenvolvida e explicada no âmbito da cristologia
dos Concílios e da Igreja, é levada também a novas expressões teológicas,
filosóficas e artísticas (cf. Gaudium et spes, n. 62), nas quais o espírito
humano possa haurir cada vez melhor daquilo que brota do abismo infinito da Revelação
divina.
João Paulo II em 1988 |
Tradução nossa a partir do texto italiano
divulgado no site da Santa Sé (13 de abril de 1988).
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