sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Sequência da Apresentação do Senhor: Concentu parili hic te

Quando se completaram os dias para a purificação da Mãe e do Filho, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22).

No dia 02 de fevereiro, 40 dias após o Natal, a Igreja celebra a Festa da Apresentação do Senhor, conforme o relato do Evangelho de Lucas (Lc 2,22-40).

Entre os cristãos orientais, onde a festa teve sua origem, esta é conhecida como Hypapanté, “Encontro”, pois celebra o encontro entre o Antigo e o Novo Testamento, entre Deus e o seu povo, que esperava a salvação.

Quando foi acolhida no Ocidente a partir do século VII, porém, a festa adquiriu um caráter mais mariano, sendo conhecida como “Purificação de Maria”. A ênfase cristológica só seria recuperada com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Apresentação do Senhor.

Apresentação do Senhor (Giotto)

Por esse motivo, a sequência proposta para o dia 02 de fevereiro possui um forte acento mariano: Concentu parili hic te (Unanimemente o povo te venera). Esta é a oitava das 38 composições presentes no Liber Sequentiarum compilado por Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça.

A partir do século X, com efeito, se tornaram muito populares no Rito Romano as sequências, composições poéticas em honra do mistério celebrado que eram entoadas antes do Evangelho da Missa. Infelizmente a reforma litúrgica do Concílio de Trento (séc. XVI) as reduziu a apenas quatro [1].

A fim de resgatar esse precioso tesouro da Igreja, como já fizemos com outras composições, publicamos a seguir o texto original da sequência para a Festa da Purificação da Bem-aventurada Virgem Maria (In Purificatione Beatae Mariae Virginis), seguido de uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” do que uma “tradução”) e um breve comentário sobre o texto.

Propomos uma divisão da sequência em sete estrofes de seis ou oito versos (à exceção da última, com sete versos).

Sequentia in Purificatione Beatae Mariae Virginis:
Concentu parili hic te

1. Concentu parili hic te,
Maria, veneratur populus
teque piis colit cordibus.
Generosi Abrahae tu filia
veneranda, regia de Davidis
stirpe genita.

2. Laetare, Mater et Virgo nobilis,
Gabrielis archangelico
quae oraculo credula
genuisti clausa filium.
In cuius sacratissimo sanguine
emundatur universitas
perditissimi generis,
ut promisit Deus Abrahae.

3. Te virga arida Aaron flore
speciosa, te figurat, Maria,
sine viri semine nato floridam.
Tu porta iugiter serata, quam
Ezechielis vox testatur, Maria,
soli Deo pervia esse crederis.

4. Sed tu tamen, matris virtutum,
dum nobis exemplum cupisti
commendare, subisti remedium
pollutis statutum matribus.
Ad templum detulisti tecum
mundandum, qui tibi integritatis
decus Deus homo genitus
adauxit, intacta genitrix.

5. Laetare, quam scrutator cordis
et renum probat habitatu proprio
singulariter dignam, sanctam Mariam.
Exsulta, cui parvulus arrisit tunc,
Maria, qui laetari omnibus
et consistere suo nutu tribuit.

6. Ergo quique colimus festa
parvuli Christi propter nos facti
eiusque piae matris Mariae.
Si non Dei possumus tantam
exsequi tardi humilitatem,
forma sit nobis eius genitrix.

7. Laus Patri gloriae, qui suum
Filium gentibus et populis
revelans Israel nos sociat.
Laus eius Filio, qui suo
sanguine nos Patri concilians
supernis sociavit civibus.
Laus quoque Sancto Spiritui sit per aevum [2].


Sequência da Purificação da Bem-aventurada Virgem Maria:
Unanimemente o povo te venera

1. Unanimemente o povo te venera,
ó Maria,
e te celebra com corações piedosos.
Tu és a venerável filha
do nobre Abraão,
nascida da estirpe régia de Davi.

2. Alegra-te, nobre Mãe e Virgem,
que, confiando no anúncio
do Arcanjo Gabriel,
permanecendo intacta, geraste um filho,
em cujo sacratíssimo sangue
foi purificado o gênero humano
que se havia perdido,
como Deus prometera a Abraão.

3. A vara seca de Aarão, com flor preciosa,
te prefigura, ó Maria,
que floresceste sem a semente do homem.
Tu és a porta sempre fechada,
testemunhada pela voz de Ezequiel,
que só a Deus é acessível.

4. Porém, desejando dar-nos o exemplo,
ó Mãe das virtudes,
te sujeitaste ao remédio
instituído para as mães impuras.
Para ser purificado contigo,
conduziste ao templo
o Deus nascido como homem,
que exaltou tua integridade, ó Mãe intacta.

5. Alegra-te, Santa Maria,
pois Aquele que perscruta os corações e as entranhas,
encontrou em ti digna habitação.
Exulta, ó Maria,
porque o Menino que sorriu a ti
alegra a todos e sustenta o universo.

6. Por isso celebramos a festa
do Cristo, que por nós se fez pequeno,
e de Maria, sua piedosa Mãe.
Se, em nossa fragilidade,
não podemos compreender tão grande humildade de Deus,
tomemos como modelo sua Mãe.

7. Louvor ao Pai da glória,
que revelando seu Filho às nações,
associa-nos a Israel.
Louvor ao seu Filho,
que em seu sangue nos reconciliou ao Pai,
associando-nos aos cidadãos do alto.
Louvor também ao Santo Espírito para sempre.

Apresentação do Senhor (Andrea Mantegna)

Comentário:

A sequência é dirigida diretamente a Maria, com o uso do vocativo (“Ó Maria”) e da segunda pessoa do singular, “tu”. A 1ª estrofe serve como “oferecimento” do hino a Maria, venerada “unanimemente” pelo povo, exortado a celebrá-la com um “coração piedoso”.

A expressão usada aqui, que dá nome à sequência (“Concentu parili”), traz o verbo “concino” ou “concinere”, “cantar conjuntamente”, “cantar harmoniosamente”, reforçado pelo advérbio “pariter”, que exprime a mesma ideia de “unidade”.

A segunda parte da 1ª estrofe, por sua vez, proclama a ascendência de Maria: “venerável filha do nobre Abraão, nascida da estirpe régia de Davi”.

O adjetivo usado para Abraão, “generosus”, indica tanto sua “nobreza” como sua “generosidade” ao oferecer o próprio filho em “sacrifício” ao Senhor (Gn 22), assim como Maria apresenta seu Filho no templo e, à luz da profecia de Simeão (Lc 2,35), participa da sua oblação aos pés da cruz (Jo 19,25-27).

Alguns manuscritos trazem outros três versos unidos a essa estrofe, celebrando a pureza de Maria: “Sanctissima corpore, castissima moribus, omnium pulcherrima, virgo virginum” - “Santíssima no corpo, castíssima, mais bela que todos, Virgem das virgens” [3].

A esse “oferecimento” segue-se nas estrofes 2-3 uma “introdução”, situando o mistério da festa no contexto da Encarnação e da expectativa de Israel pela vinda do Senhor.

A 2ª estrofe começa com o convite “Alegra-te” (Laetare), o mesmo dirigido à “Virgem Mãe” pelo anjo Gabriel: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28). Em seguida, se elogia a fé de Maria (cf. Lc 1,45), a qual gerou seu Filho confiando (acreditando) no anúncio do anjo.

A segunda parte da estrofe destaca o simbolismo do “sacratíssimo sangue” de Cristo, derramado pela primeira vez em sua Circuncisão (Lc 2,21), episódio tradicionalmente lido em paralelo com a Apresentação.

É o sangue de Cristo, como canta a sequência, que purifica todo o “gênero humano” que se havia perdido por causa do pecado, “como Deus prometera a Abraão”.

A “promessa a Abraão” deve ser entendida aqui em sentido amplo, indicando todas as promessas do Senhor ao povo da primeira aliança, que agora se cumprem em Cristo. A expressão também remete-nos ao cântico da Virgem Maria, o Magnificat: “Acolheu Israel, seu servidor, fiel ao seu amor, como havia prometido aos nossos pais, em favor de Abraão e de seus filhos, para sempre” (Lc 1,54-55).

Apresentação do Senhor (Francisco Rizi)

A 3ª estrofe usa duas “imagens” do Antigo Testamento para referir-se a Maria. Trata-se da “linguagem tipológica”, muito utilizada pelos Padres da Igreja, na qual os acontecimentos da primeira aliança são interpretados como “tipos” (modelos, profecias) do mistério de Cristo.

Para saber mais sobre as imagens do Antigo Testamento associadas a Maria, confira nossa postagem sobre o ícone do Akathistos.

Maria é comparada primeiramente com a “vara” ou “bastão” do sacerdote Aarão, que floriu milagrosamente como sinal da sua eleição (Nm 17,16-26).

Em relatos apócrifos este fenômeno repete-se com José, indicando sua eleição como esposo de Maria. O simbolismo da “flor”, além disso, é recorrente na tradição cristã para referir-se tanto a ela como a Cristo, rebento que brotou da “árvore de Jessé” (Is 11).

Maria é comparada também à porta oriental do templo de Jerusalém, que, segundo a profecia de Ezequiel, permaneceria fechada, só abrindo para acolher o Senhor (Ez 44,1-3). Na tradição cristã, essa imagem foi interpretada em alusão à virgindade de Maria, símbolo da sua total consagração a Deus.

Após a “introdução”, as estrofes 4-6 constituem o “corpo” da sequência, cantando o duplo mistério celebrado nessa festa: a Apresentação de Jesus e a Purificação de Maria.

4ª estrofe começa apresentando o “motivo” da Purificação de Maria. A lei judaica, com efeito, era baseada no “horror sanguinis”: todo contato com sangue, incluindo o parto, gerava impureza. Assim, após o nascimento do filho a mulher devia oferecer um sacrifício purificatório (Lv 12).

A tradição cristã, contudo, considera que Maria não tinha necessidade de submeter-se a esse ritual, pois Cristo vem inaugurar a nova aliança, na qual essa prescrição ritual deixa de fazer sentido. Além disso, o sangue de Cristo, que Ele recebe justamente da sua Mãe, como indicado duas vezes (estrofes 2 e 7), não é causa de impureza, mas sim de salvação.

Maria, referida como “Mãe das virtudes” (Matris virtutum), sujeitou-se a essa prescrição “para dar-nos um exemplo” (dum nobis exemplum) de obediência e humildade. Algo similar ocorre com Cristo em seu Batismo no Jordão, como canta o mesmo Notker na sequência da Epifania, Festa Christi omnis.

A segunda parte da 4ª estrofe reforça essa ideia, indicando que “o Deus nascido como homem” (Deus homo genitus), que Maria conduz ao templo, por seu próprio nascimento já havia exaltado a pureza da “Mãe intacta” (intacta genitrix).

Apresentação do Senhor (Andrea Celesti)

A 5ª estrofe começa retomando o convite do anjo a Maria: “Alegra-te” (Laetare), pois o Deus que perscruta os corações e as entranhas / rins (scrutator cordis et renum), expressão recorrente na Escritura (cf. Sl 7,10; Sb 1,6; Jr 11,20; Rm 8,27), encontrou nela uma digna morada.

Esta última expressão nos remete à coleta (oração do dia) da Solenidade da Imaculada Conceição de Maria (08 de dezembro), a qual remonta à proclamação do dogma (1854): “Ó Deus, que preparastes uma digna habitação para o vosso Filho pela Imaculada Conceição da Virgem Maria...”.

A segunda parte da 5ª estrofe acrescenta outro convite a Maria: “Exulta” (Exsulta), expressão presente no Magnificat, retomando alguns cânticos do Antigo Testamento (cf. Lc 1,47; 1Sm 2,1; Is 61,10), indicando o motivo da sua alegria: o Menino que “sorriu para ela” é o mesmo Deus que a todos alegra e a tudo sustenta.

Concluindo o “corpo” da sequência, a 6ª estrofe enfatiza o “motivo” da festa: nela celebramos o Cristo, “que por nós se fez pequeno” (parvuli Christi propter nos facti), e sua “piedosa Mãe”, Maria (piae matris Mariae).

Na Exortação Apostólica Marialis Cultus, promulgada por São Paulo VI (†1978) em 1974, a festa do dia 02 de fevereiro é elencada entre as “celebrações que comemoram eventos salvíficos em que a Virgem Maria esteve intimamente associada ao Filho”: “nela se evoca, de fato, a memória, ao mesmo tempo, do Filho e da Mãe; quer dizer, é a celebração de um mistério da salvação operado por Cristo, em que a Virgem Santíssima esteve a Ele intimamente unida...” (nn. 6-7).

A estrofe conclui enfatizando o mistério da “grande humildade de Deus” em sua Encarnação, mistério que não somos capazes de compreender totalmente, exortando-nos a tomar sua Mãe como modelo dessa mesma humildade.

Por fim, como é comum nos hinos litúrgicos, a 7ª estrofe, que serve de “conclusão” ao poema, é uma doxologia (breve fórmula de louvor) em honra da Santíssima Trindade:

- ao “Pai da glória”, que revelou seu Filho às nações, associando-nos ao povo eleito de Israel. Tal expressão remete-nos ao “cântico de Simeão”, o Nunc dimittis, que proclama o Menino como “luz que brilhará para as nações” e “glória de Israel, o seu povo” (Lc 2,32).

- ao Filho, cujo sangue, isto é, cujo sacrifício, prefigurado em sua Apresentação no templo, nos reconciliou com o Pai, “associando-nos aos cidadãos do alto”, os santos no céu.

- ao Espírito Santo, que moveu o justo Simeão ao templo (Lc 2,25-27) ao encontro da Mãe e do Filho.

Apresentação do Senhor (Miguel Jacinto Meléndez)
A Sagrada Família e os justos Simeão e Ana com a Trindade e os Arcanjos Miguel e Gabriel

Notas:

[1] Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa); Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes); Lauda Sion (Corpus Christi) e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727 seria acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores). Após o Concílio Vaticano II a sequência Dies irae tornou-se hino facultativo da Liturgia das Horas para a última semana do Tempo Comum.

[2] NOTKER Balbulus. Liber Sequentiarum, cap. VIII: In Purificatione Sanctae Mariae. in: MIGNE, J. P. Patrologiae: Cursus Completus, Series Latina, vol. 131, pp. 1008-1009.

[3] THESAURUS HYMNOLOGICUS sive Hymnorum, canticorum, sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio amplissima. Tomus Secundus: Sequentiae, cantica, antiphonae. Lipsiae, 1855, pp. 10-11.

Imagens: Wikimedia Commons.

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