sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Raniero Cantalamessa: Celebração da Paixão 2012

Ao longo dessa Quaresma gostaríamos de propor, de maneira retrospectiva, as homilias do Cardeal Raniero Cantalamessa na Celebração da Paixão do Senhor que não foram publicadas aqui no blog a seu tempo.

Começamos com a homilia da Sexta-feira Santa de 2012, a última do pontificado do Papa Bento XVI:

Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Basílica de São Pedro
Sexta-feira Santa, 06 de abril de 2012
Passar de espectadores a atores

1. Alguns Padres da Igreja concentraram em uma imagem todo o mistério da redenção. Dizem: imagina que aconteceu uma luta épica na arena. Um herói enfrentou o cruel tirano que escravizava a cidade e, com enorme esforço e sofrimento, o venceu. Você estava na arquibancada, não lutou, não se esforçou nem se feriu. Mas, se você admira o herói, se alegra com ele pela vitória, tece-lhe uma coroa, se anima e exalta a plateia por ele, se ajoelha com alegria diante do vencedor, beija a sua cabeça e aperta a sua mão direita; em suma, se tanto se exalta por ele, a ponto de considerar como sua a vitória dele, eu lhe digo que você terá certamente parte no prêmio do vencedor.

E mais: supondo que o vencedor não tenha necessidade alguma do prêmio que conquistou para si, mas que deseje, mais do que tudo, ver honrado o seu admirador e considere que o prêmio da sua luta seja a coroação do seu amigo, em tal caso aquele homem não terá talvez a coroa, mesmo sem ter lutado e sem ter feridas? Certamente a obterá (cf. Nicolau Cabasilas, Vita in Christo, I, 9; PG 150, 517).

Dessa forma, dizem esses Padres, acontece entre nós e Cristo. Ele, na cruz, derrotou o antigo adversário. “As nossas espadas - exclama São João Crisóstomo - não estão sujas de sangue, não estivemos na arena, não temos lesões, nem sequer vimos a batalha, e eis que obtivemos a vitória. Sua foi a luta, nossa a coroa. E porque também nós vencemos, imitemos o que fazem os soldados nesse caso: com vozes de alegria exaltemos a vitória, entoemos hinos de louvor ao Senhor” (São João Crisóstomo, De coemeterio et de cruce; PG 49, 596). Não poderia ser explicado melhor o significado da Liturgia que estamos celebrando.


2. Mas o que estamos fazendo é, em si, uma imagem, a representação de uma realidade passada, ou é a própria realidade? Ambas as coisas! “Nós - dizia Santo Agostinho ao povo - sabemos e acreditamos com fé certíssima que Cristo morreu uma vez só por nós... Sabeis perfeitamente que tudo isto aconteceu apenas uma vez, e ainda assim a solenidade o renova periodicamente... Verdade histórica e solenidade litúrgica não estão em contradição entre si, como se a segunda fosse falsa e só a primeira correspondesse à verdade. O que a história afirma ter acontecido uma só vez na realidade, a solenidade renova muitas vezes através da celebração nos corações dos fiéis” (Santo Agostinho, Sermão 220; PL 38, 1089).

A Liturgia “renova” o evento! Quantas discussões, durante cinco séculos até hoje, sobre o sentido desta palavra, especialmente quando é aplicada ao sacrifício da cruz e à Missa! Paulo VI esclareceu o sentido que a Igreja Católica dá a esta afirmação usando o verbo “representar”, compreendido no sentido forte de reapresentar, ou seja, tornar novamente presente e operante o acontecido (cf. Encíclica Mysterium fidei, 1965).

Há uma diferença substancial entre esta nossa representação litúrgica da morte de Cristo e aquela, por exemplo, da morte de Júlio César na tragédia de Shakespeare. Ninguém assiste, estando vivo, o aniversário da própria morte; Cristo sim, porque ressuscitou. Somente Ele pode dizer, como faz no Apocalipse: “Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos” (Ap 1,18). Devemos ter cuidado neste dia, ao visitar os chamados “sepulcros” ou ao participar nas procissões do “Cristo morto”, para não merecermos a censura que o Ressuscitado dirigiu às piedosas mulheres na manhã de Páscoa: “Por que procurais entre os mortos Aquele que vive?” (Lc 24,5).

É uma afirmação ousada, mas verdadeira aquela de certos autores ortodoxos: “a anamnese - ou seja, o memorial litúrgico - torna o evento mais verdadeiro do que quando aconteceu historicamente pela primeira vez”. Em outras palavras, é mais verdadeiro e real para nós que o revivemos “segundo o Espírito”, do que para aqueles que o viveram “segundo a carne”, antes que o Espírito Santo revelasse à Igreja o seu pleno significado.

Não estamos apenas comemorando um aniversário, mas um mistério. É ainda Santo Agostinho que explica a diferença entre as duas coisas: na celebração “como aniversário”, não se pede outra coisa do que “indicar com uma solenidade religiosa o dia do ano no qual se repete a lembrança do mesmo acontecimento”; na celebração “como mistério” (“em sacramento”), “não só se comemora um acontecimento, mas é feito também de tal forma que se compreenda o seu significado e seja acolhido santamente” (Santo Agostinho, Epístola 55, 1, 2; CSEL 34, 1, p. 170).

Isso muda tudo. Não se trata somente de assistir a uma representação, mas de “acolher” o seu significado, de passar de espectadores a atores. Cabe a nós, portanto, escolher qual parte queremos representar no drama, quem queremos ser: se Pedro, Judas, Pilatos, a multidão, o Cireneu, João, Maria... Ninguém pode permanecer neutro; não tomar partido é tomar um bem preciso: aquele de Pilatos, que lava as mãos, ou da multidão, que de longe “permanecia lá, a olhar” (Lc 23,35).

Se, voltando para casa hoje, alguém nos perguntar: “De onde vens? Onde estiveste?”, respondamos, portanto, pelo menos em nosso coração: “No Calvário!”

3. Mas nada disso acontece automaticamente, só porque participamos nesta Liturgia. Trata-se, dizia Agostinho, de “acolher” o significado do mistério. Isto acontece com a fé. Não há música onde não há ouvidos que a escutem, por mais alto que a orquestra toque; não há graça onde não há uma fé que a acolha.

Em uma homilia pascal do século IV, o Bispo pronunciava estas palavras surpreendentemente modernas e, poderíamos dizer, existenciais: “Para cada homem, o princípio da vida é que Cristo foi imolado por ele. Mas Cristo é imolado por ele quando este reconhece a graça e se torna consciente da vida que lhe foi dada por aquela imolação” (Homilia pascal do ano 387; SCh 36, pp. 59s).

Isso aconteceu sacramentalmente no Batismo, mas deve acontecer conscientemente sempre de novo na vida. Antes de morrer, devemos ter a coragem de praticar um ato de audácia, quase como um golpe de mão: apropriar-nos da vitória de Cristo. Apropriação indevida! Infelizmente isso é comum na sociedade em que vivemos, mas com Jesus ela não só não é proibida, mas é sumamente recomendada. “Indevida” aqui significa que não nos é devida, que não a merecemos, mas nos é dada gratuitamente, pela fé.

Mas andemos com passos firmes: escutemos um Doutor da Igreja. Escreve São Bernardo: “O que não posso obter por mim mesmo, o aproprio (literalmente, o usurpo!) com confiança do lado aberto do Senhor, porque está cheio de misericórdia. Meu mérito, portanto, é a misericórdia de Deus. Não sou tão pobre de méritos, enquanto Ele é rico de misericórdia. E se as misericórdias do Senhor são muitas (Sl 118,156), também eu terei muitos méritos. E o que acontece com a minha justiça? Ó Senhor, me lembrarei somente da tua justiça. De fato, ela é também a minha, porque tu és para mim fonte de justiça” (cf. 1Cor 1,30) (São Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico dos Cânticos, 61, 4-5; PL 183, 1072).

Porventura esta forma de conceber a santidade tornou São Bernardo menos zeloso das boas obras, menos empenhado na aquisição das virtudes? Deixava de mortificar o seu corpo ou de “reduzi-lo à escravidão” (cf. 1Cor 9,27), aquele que, antes de todos e mais do que todos, tinha feita desta apropriação da justiça de Cristo o objetivo da sua vida e da sua pregação (cf. Fl 3,7-9)?

Em Roma, como infelizmente em todas as grandes cidades, há muitos moradores de rua. Existe um nome para eles em todas as línguas: homeless, clochards, sem-teto, mendigos: pessoas que não têm mais do que poucos trapos que carregam e algum objeto que levam consigo em sacos plásticos. Imaginemos que um dia se espalha a notícia: na Via Condotti (todos sabemos o que representa a Via Condotti em Roma!) a proprietária de uma boutique luxuosa, por razões desconhecidas, de interesse ou de generosidade, convida todos os moradores de rua da Estação Termini a irem à sua loja; convida-os a tirar os seus trapos sujos, a tomar um bom banho e a escolher a roupa que desejam entre aquelas expostas e levá-la de graça.

Todos dizem entre si: “Isto é um conto de fadas, nunca acontecerá!”. É verdade, mas o que nunca acontece entre os homens pode acontecer todos os dias entre os homens e Deus, porque diante d’Ele aqueles mendigos somos nós! É o que acontece em uma boa Confissão: tiramos os nossos trapos sujos, os pecados, recebemos o banho da misericórdia e levantamo-nos “revestidos das vestes da salvação, cobertos com um manto de justiça” (Is 61,10).

O publicano da parábola subiu ao templo para rezar; disse simplesmente, mas do fundo do coração: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!”, e “voltou para casa justificado” (Lc 18,13-14), reconciliado, feito novo, inocente. O mesmo, se tivermos a sua fé e o seu arrependimento, poderá dizer-se de nós, voltando para casa depois desta Liturgia.

4. Entre os personagens da Paixão com quem podemos nos identificar percebo que não mencionei um, aquele que mais espera quem sigam o seu exemplo: o “bom ladrão”.

O “bom ladrão” faz uma confissão completa dos pecados; diz ao seu companheiro que insulta Jesus: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas Ele não fez nada de mal” (Lc 23,40-41). O “bom ladrão” demonstra-se um excelente teólogo. De fato, só Deus sofre absolutamente como inocente; qualquer outro ser que sofre deve dizer: “Eu sofro com justiça,” porque embora não seja responsável pela ação imputada, nunca está totalmente sem culpa. Só o sofrimento das crianças inocentes é semelhante àquele de Deus, e por isso é tão misterioso e sagrado.

Quantos crimes atrozes, nos últimos tempos, permanecem sem culpados, quantos casos sem solução! O “bom ladrão” faz um apelo aos responsáveis: fazei como eu, vinde à luz, confessai a vossa culpa; experimentareis também vós a alegria que eu senti quando ouvi a palavra de Jesus: “Hoje estarás comigo no Paraíso!” (Lc 23,43). Quantos réus confessos podem confirmar que foi assim também para eles: passaram do inferno ao paraíso no dia que tiveram a coragem de arrepender-se e confessar a sua culpa. Eu também conheci alguns. O paraíso prometido é a paz da consciência, a possibilidade de se olhar no espelho ou olhar para os próprios filhos sem sentir desprezo por si mesmo.

Não leveis para o túmulo o vosso segredo; encontraríeis uma condenação muito mais temível do que aquela humana. O nosso povo não é cruel com quem errou, mas reconhece o mal feito, sinceramente, não só por algum interesse. Ao contrário! Está pronto a ter piedade e acompanhar o arrependido no seu caminho de redenção (que, em muitos casos, se torna mais breve). “Deus perdoa muitas coisas por uma obra boa”, diz Lúcia ao Inominado no romance “Os Noivos”. Ainda mais, devemos dizer, Ele perdoa muitas coisas por um ato de arrependimento. Ele prometeu solenemente: “Ainda que vossos pecados sejam como a púrpura, se tornarão brancos como a neve; se forem vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã” (Is 1,18).

Continuemos a fazer o que, como escutamos no início, é a nossa tarefa neste dia: com vozes de alegria exaltemos a vitória da cruz, entoemos hinos de louvor ao Senhor. “O Redemptor, sume carmen temet concinentium” - “Ó Redentor, acolhe o canto que elevamos a ti”.


Fonte: Zenit / Santa Sé. 

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