Há 10 anos, durante o Advento de 2013, o Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia (criado Cardeal em 2020), proferiu três meditações sobre São Francisco de Assis, honrando assim o Papa Francisco, que havia sido eleito no mês de março do mesmo ano, escolhendo o nome desse santo.
No contexto dos 800 anos da aprovação da Regra Franciscana e do presépio de Greccio (1223-2023), reproduzimos a seguir a segunda das três meditações:
Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
II pregação de Advento
13 de dezembro de 2013
Humildade como verdade e como serviço em Francisco de Assis
1. Humildade objetiva e
humildade subjetiva
Francisco de Assis, como vimos
na última pregação, é a prova viva de que a reforma mais útil para a Igreja é
aquela pelo caminho da santidade, que consiste em um corajoso retorno ao
Evangelho e que deve começar a partir de nós mesmos.
Nesta segunda meditação
gostaria de aprofundar um aspecto do retorno ao Evangelho, uma virtude de
Francisco. De acordo com Dante Alighieri, toda a glória de Francisco depende do
“seu ter-se feito humilde” [1], ou seja, da sua humildade. Mas, em que
consistiu a proverbial humildade de São Francisco?
Em todas as línguas pelas
quais a Bíblia passou para chegar até nós, ou seja, em hebraico, grego, latim,
a palavra “humildade” tem dois significados básicos: um objetivo, que indica mesquinhez, pequenez ou
miséria de fato, e um subjetivo, que
indica o sentimento e o reconhecimento que se tem da própria pequenez. Este
último é o que entendemos por virtude da humildade.
Quando Maria diz no Magnificat:
“Olhou para a humildade (tapeinosis) da sua serva”, entende a humildade no
sentido objetivo, não subjetivo! Por isso muito apropriadamente em diferentes
idiomas, por exemplo, em alemão, a palavra é traduzida como “pequenez” (Niedrigkeit).
Como se pode imaginar, além do mais, que Maria exalte a sua humildade e atribua
a essa a escolha de Deus, sem, com isso mesmo, destruir a própria humildade? No
entanto, às vezes, se escreveu imprudentemente que em Maria não se reconhece
nenhuma outra virtude a não ser aquela da humildade, como se, de tal forma, se
fizesse uma grande honra, e não, pelo contrário, um grande erro, a tal virtude.
A virtude da humildade tem
um estatuto todo especial: a tem quem pensa que não a tem, não a tem quem pensa
tê-la. Só Jesus pode declarar-se “humilde de coração” e sê-lo realmente; esta,
veremos, é a característica única e irrepetível da humildade do homem-Deus.
Maria não tinha, portanto, a virtude da humildade? Claro que tinha e no
mais alto grau, mas só Deus sabia isso, ela não. Precisamente isto, com efeito,
constitui o mérito incomparável da verdadeira humildade: que o seu odor só é
percebido por Deus, não por quem o emana. São Bernardo escreve: “O verdadeiro
humilde quer ser considerado desprezível, não proclamado humilde” [2].
A humildade de Francisco se
coloca nesta linha. O Florilégio nos mostra um episódio significativo a
este respeito e, no fundo, certamente histórico:
Um dia, voltando São
Francisco de orar no bosque, e ao sair do bosque, o dito Frei Masseo quis
experimentar sua humildade; foi-lhe ao encontro e, a modo de gracejo, disse:
“Por que a ti? Por que a ti? Por que a ti?”. São Francisco respondeu: “Que
queres dizer?”. Disse Frei Masseo: “Por que todo o mundo anda atrás de ti e
toda a gente parece que deseja ver-te e ouvir-te e obedecer-te? Não és homem
belo de corpo, não és de grande ciência, não és nobre: de onde vem, pois, que
todo o mundo anda atrás de ti?”. Ouvindo isto, São Francisco, todo jubiloso em
espírito, levantando a face para o céu por grande espaço de tempo, esteve com a
mente enlevada em Deus; e depois, voltando a si, ajoelhou-se e louvou e deu
graças a Deus; e depois, com grande fervor de espírito, voltou-se para Frei
Masseo e disse: “Queres saber porque a mim? Queres saber porque a mim? Queres
saber porque todo o mundo anda atrás de mim? Isto recebi dos olhos de Deus Altíssimo,
os quais em cada lugar contemplam os bons e os maus: porque aqueles olhos
santíssimos não encontraram entre os pecadores nenhum mais vil nem mais
insuficiente nem maior pecador do que eu” [3].
2. A humildade como verdade
A humildade de Francisco tem
duas fontes de iluminação, uma de natureza teológica e uma de natureza
cristológica. Reflitamos sobre a primeira. Na Bíblia encontramos atos de
humildade que não partem do homem, da consideração da própria miséria ou do
próprio pecado, mas têm como única razão Deus e a sua santidade. Tal é
exclamação de Isaías diante da súbita manifestação da glória e da santidade de
Deus no templo: “Sou um homem de lábios impuros” (Is 6,5s); tal é também
o grito de Pedro depois da pesca milagrosa: “Afasta-te de mim, que sou um
pecador!” (Lc 5,8).
Temos diante de nós a
humildade essencial, aquela da criatura que toma consciência de si na presença
de Deus. Enquanto a pessoa se comparar consigo mesma, com os outros ou com a
sociedade, nunca terá a ideia exata do que ela é; falta-lhe a medida. “Que
acento infinito - escreveu Kierkegaard - coloca-se no eu quando tem como medida
Deus!” [4]. Francisco teve de modo eminente esta humildade. Uma máxima que
repetia muito era: “O que um homem é diante de Deus, assim é, e nada mais” [5].
O Florilégio narra
que, uma noite, o irmão Leão quis espiar de longe o que fazia Francisco durante
a sua oração no bosque da Verna e de longe o ouvia murmurar por muito tempo
algumas palavras. No dia seguinte o santo o chamou e, depois de tê-lo
amavelmente repreendido por ter desobedecido sua ordem, revelou-lhe o conteúdo
de sua oração:
“Sabe, frei ovelhinha de
Jesus Cristo, que quando eu dizia as palavras que ouviste estavam sendo
mostrados a minha alma dois lumes: um da notícia e conhecimento de mim mesmo, o
outro da notícia e conhecimento do Criador. Quando eu dizia: ‘Quem és tu, ó
dulcíssimo Deus meu?’, eu estava em lume de contemplação, em que via o abismo
da infinita bondade, sabedoria e poder de Deus. E quando eu dizia: ‘Quem sou
eu?’, estava em um lume de contemplação em que via a profundeza lamentável de
minha vileza e miséria” [6].
Era aquilo que Santo
Agostinho pedia a Deus e que considerava a totalidade de toda a sabedoria: “Noverim
me, noverim te” - “Que eu conheça a mim e que eu conheça a
ti; que eu me conheça para humilhar-me e que eu conheça a ti para amar-te” [7].
O episódio de Frei Leão foi
certamente embelezado, como sempre no Florilégio, mas o conteúdo
corresponde perfeitamente à ideia que Francisco tinha de si e de Deus. Prova
disso é o começo do Cântico das criaturas com a distância infinita que
coloca entre Deus “altíssimo, onipotente, bom Senhor”, a quem deve-se o louvor,
a glória, a honra e a benção”, e o mísero mortal que não é digno nem sequer de
“mencionar”, isto é, pronunciar, o seu nome:
“Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória,
a honra e toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são
devidos,
E homem algum é digno de te
mencionar”.
Com esta luz, que eu chamei
teológica, a humildade nos aparece essencialmente como verdade. “Perguntava-me
um dia - escreve Santa Teresa d’Avila - por qual motivo o Senhor ama tanto a
humildade e veio-me à mente, de repente, sem nenhuma reflexão minha, que deve
ser assim porque Ele é a mais alta Verdade e a humildade é verdade” [8].
É uma luz que não humilha,
mas pelo contrário dá alegria imensa e exalta. Ser humilde, de fato, não significa
ser infeliz consigo e nem sequer reconhecer a própria miséria, nem, de alguma
forma, a própria pequenez. É olhar para Deus antes que para si mesmo e medir o
abismo que separa o finito do infinito. Quanto mais percebemos isso, mais nos
tornamos humilde. Então começamos até mesmo a alegrar-se do próprio nada,
porque é graças a ele que é possível oferecer a Deus um rosto cuja pequenez e
cuja miséria cativou o coração da Santíssima Trindade desde toda a eternidade.
“Conversão” de Francisco (Giotto) |
Uma grande discípula do Poverello,
que o Papa Francisco proclamou Santa há pouco tempo, Ângela de Foligno, perto
da morte, exclamou: “Ó nada desconhecido, ó nada desconhecido! A alma não pode
ter melhor visão neste mundo do que contemplar o próprio nada e morar nele como
na cela de uma prisão” [9]. Há um segredo neste conselho, uma verdade que se
experimenta provando. Descobre-se então que existe realmente esta cela e que é
possível entrar realmente cada vez que se queira. Ela consiste no calmo e
tranquilo sentimento de ser um nada diante de Deus, mas um nada amado por Ele!
Quando se está dentro da
cela, desta prisão luminosa, não se veem mais os defeitos do próximo, ou se veem
em um outra luz. Compreende-se que é possível, com a graça e com o exercício,
realizar o que disse o Apóstolo e que parece, à primeira vista, excessivo, isto
é, “considerar todos os outros superiores a si” (Fl 2,3), ou pelo menos
se entende como isso possa ter sido possível aos santos.
Fechar-se naquela prisão é
muito diferente de fechar-se em si mesmos; é, pelo contrário, abrir-se aos
outros, ao ser, à objetividade das coisas. O contrário daquilo que sempre
pensaram os inimigos da humildade cristã. É fechar-se ao egoísmo, não no
egoísmo. É a vitória sobre um dos males que também a moderna psicologia julga
funesta para a pessoa humana: o narcisismo. Naquela cela, além disso, não
penetra o inimigo. Um dia Santo Antônio o Grande (Santo Antão) teve uma visão;
viu, em um instante, todos os infinitos laços do inimigo estendidos pela terra
e disse gemendo: “Quem poderá, portanto, evitar todos estes laços?” e
respondeu-lhe uma voz: “Antônio, a humildade!” [10] “Nada - escreve o autor da
Imitação de Cristo - conseguirá fazer ensoberbecer aquele que está firmemente
fixado em Deus” [11].
3. Humildade como serviço de
amor
Falamos da humildade como
verdade da criatura diante de Deus. Paradoxalmente, porém, o que mais enchia de
assombro a alma de Francisco não era a grandeza de Deus, mas a sua humildade.
Nos Louvores do Deus Altíssimo que se conservam escritos com
sua caligrafia em Assis, entre as perfeições de Deus - “Tu és Santo. Tu és
Forte. Tu és Trino e Uno. Tu és Amor, Caridade. Tu és Sabedoria...” -, a certo
ponto Francisco insere um incomum: “Tu és humildade!”. Não é um título colocado
ali por engano! Francisco captou uma verdade profundíssima sobre Deus que
deveria também maravilhar-nos.
Deus é humildade porque é
amor. Diante das criaturas humanas, Deus se encontra desprovido de qualquer
capacidade não só coercitiva, mas também defensiva. Se os seres humanos
escolhem, como fizeram, recusar o seu amor, Ele não pode intervir com
autoridade para impor-se. Não pode fazer outra coisa além de respeitar a livre
escolha dos homens. É possível rejeitá-lo, excluí-lo: Ele não se defenderá,
deixará fazê-lo. Ou melhor, a sua maneira de defender-se e de defender os homens
contra o seu próprio aniquilamento será aquela de amar agora e sempre,
eternamente. O amor cria por sua própria natureza dependência e a dependência,
a humildade. Assim é também, misteriosamente, em Deus.
O amor fornece, portanto, a
chave para entender a humildade de Deus: é preciso pouco poder para se mostrar,
é preciso muito mais, porém, para se esconder, para desaparecer. Deus é esta
força ilimitada de escondimento de si e como tal se revela na Encarnação. Podemos
ver a manifestação visível da humildade de Deus contemplando Cristo que se
coloca de joelhos diante dos seus discípulos para lavar os seus pés - e eram,
podemos imaginá-lo, pés sujos -, e ainda mais, quando, reduzido à mais radical
impotência na cruz, continua a amar, sem nunca condenar.
Francisco captou este nexo
estreitíssimo entre a humildade de Deus e a Encarnação. Eis algumas das suas
fogosas palavras:
“Eis que a cada dia Ele se
humilha, como quando desceu da sede real para o ventre da Virgem; cada dia Ele
mesmo vem a nós com aparência humilde; cada dia desce do seio do Pai para o
altar nas mãos do sacerdote” [12]. “Ó humildade sublime! Ó sublimidade humilde,
que o Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, assim se humilhe a ponto de
esconder-se, para a nossa salvação, sob a pouca aparência de pão! Olhai,
irmãos, a humildade de Deus, e abri os vossos corações diante d’Ele” [13].
Descobrimos assim o segundo
motor da humildade de Francisco: o exemplo de Cristo. É o mesmo motor que Paulo
indicava aos filipenses quando lhes recomendava a “ter os mesmos sentimentos de
Cristo Jesus” que “humilhou-se a si mesmo fazendo-se obediente
até a morte” (Fl 2,5.8). Antes de Paulo foi o próprio Jesus em pessoa
que convidou os discípulos a imitar a sua humildade: “Aprendei de mim que sou
manso e humilde de coração!” (Mt 11,29).
Em que, poderíamos perguntar-nos,
Jesus nos diz para imitar a sua humildade? Em que Jesus foi humilde?
Percorrendo os Evangelhos, nunca encontramos a menor admissão de culpa nos
lábios de Jesus, nem quando conversa com os homens, nem quando conversa com o
Pai. Esta - a propósito - é uma das provas mais escondidas, mas também das mais
convincentes, da divindade de Cristo e da absoluta unicidade da sua
consciência. Em nenhum santo, em nenhum grande da história e em nenhum fundador
de religião se encontra tal consciência de inocência.
Todos reconhecem, mais ou
menos, ter cometido alguns erros e ter algo para ser perdoados, pelo menos por
Deus. Gandhi, por exemplo, tinha uma consciência agudíssima de ter, em certas
ocasiões, tomado posições erradas; também ele teve os seus remorsos. Jesus
nunca. Ele pode dizer dirigindo-se aos seus adversários: “Quem dentre vós me
acusa de pecado?” (Jo 8, 46). Jesus proclama ser “Mestre e Senhor” (Jo
13,13), de ser mais do que Abraão, Moisés, Jonas, Salomão. Onde, então, a
humildade de Jesus, para poder dizer: “Aprendei de mim que sou humilde”?
Aqui descobrimos algo
importante. A humildade não consiste principalmente em ser pequenos, porque podemos
ser pequenos sem ser humildes; não consiste principalmente no sentir-se
pequeno, porque a
pessoa pode sentir-se pequena e sê-lo realmente e esta seria objetividade, não
ainda humildade; sem contar que o sentir-se pequeno e insignificante pode
nascer também de um complexo de inferioridade e levar ao fechamento em si mesmo
e ao desespero, em vez de à humildade. Portanto, a humildade, por si, no grau
mais perfeito, não é ser pequeno, não é sentir-se pequeno, ou proclamar-se
pequeno: é fazer-se pequeno,
e não por alguma necessidade ou utilidade pessoal, mas por amor, para “elevar”
os outros.
Assim foi a humildade de
Jesus: Ele se fez tão pequeno a ponto de “desaparecer” mesmo para nós. A
humildade de Jesus é a humildade que desce de Deus e que tem o seu modelo
supremo em Deus, não no homem. Na posição em que se encontra, Deus não pode
“elevar-se”; nada existe acima d’Ele. Se Deus sai de si mesmo e faz algo fora
da Trindade, isso só pode ser um abaixar-se e um fazer-se pequeno; só poderá
ser, em outras palavras, humildade, ou, como diziam alguns Padres gregos, synkatabasis, isto é, condescendência.
São Francisco faz da “irmã
água” o símbolo da humildade, definindo-a “útil, humilde, preciosa e casta”. A
água, de fato, nunca se “exalta”, nunca “sobe”, mas sempre “desce”, até
alcançar o ponto mais baixo. O vapor sobe e é por isso o símbolo tradicional do
orgulho e da vaidade; a água desce e é por isso símbolo da humildade.
Agora sabemos o que quer
dizer a palavra de Jesus: “Aprendei de mim que sou humilde”. É um convite a
fazer-nos pequenos por amor, a lavar, como Ele, os pés dos irmãos. Em Jesus vemos,
porém, também a seriedade desta escolha. Não se trata, de fato, de descer e
fazer-se pequeno de tanto em tanto, como um rei que, na sua generosidade, de
vez em quando, se digna descer entre o povo e talvez também servi-lo com algo.
Jesus se fez “pequeno” como “se fez carne”, ou seja, de forma permanente, até o
fim. Escolheu pertencer à categoria dos pequenos e dos humildes.
Cântico das criaturas (Fiorenzo Bacci) |
Esta nova face da humildade
é resumida em uma palavra: serviço. Um dia - lemos no Evangelho - os discípulos
tinham discutido uns com os outros sobre quem era o “maior”; então Jesus,
“sentando-se” - como para dar maior solenidade à lição que estava prestes a dar
-, chamou os Doze e disse-lhes: “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último
de todos e o servo de todos” (Mc 9,35). Quem quer ser o “primeiro” seja
o “último”, ou seja, desça, se abaixe. Mas, depois explica o que compreende por
último: seja o “servo” de todos. A humildade proclamada por Jesus é, portanto,
serviço. No Evangelho de Mateus, esta lição de Jesus é proclamada com um
exemplo: como “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mt
20,28).
4. Uma Igreja humilde
Algumas considerações
práticas sobre a virtude da humildade, tomadas em todas as suas manifestações,
ou seja, tanto na relação com Deus quanto na relação com os homens. Não devemos
nos iludir pensando que alcançamos a humildade só porque a Palavra de Deus nos
tenha levado a descobrir o nosso nada e nos tenha mostrado que ela tem que traduzir-se
em serviço fraterno. Até que ponto chegamos de fato à humildade se vê quando a
iniciativa passa de nós aos outros, ou seja, quando não somos mais nós que
reconhecemos os nossos defeitos e erros, mas são os outros que o fazem; quando
não somente somos capazes de dizer-nos a verdade, mas também de deixar que os
outros a digam, de boa vontade. Antes de reconhecer-se diante de Frei Matteo
como o mais vil dos homens, Francisco tinha aceitado de bom grado e por um
longo tempo ser ridicularizado, considerado por amigos, familiares e por toda a
cidade de Assis um ingrato, um fanático, alguém que nunca teria feito nada de
bom na vida.
Em que ponto estamos na luta
contra o orgulho, se vê, em outras palavras, em como reagimos, interna ou externamente,
quando somos contrariados, corrigidos, criticados ou deixados de lado.
Pretender matar o próprio orgulho batendo nele sozinhos, sem que alguém
intervenha de fora, é como usar o próprio braço para punir a si mesmo:
realmente nunca se fará mal. É como se um médico quisesse tirar um tumor de si
mesmo.
Quando tento receber glória
de um homem por qualquer coisa que eu diga ou faça, é quase certo que quem está
na minha frente tenta receber glória de mim a respeito de como escuta e como
responde. E acontece assim que cada um busca a sua própria glória e ninguém a
recebe e, se, por acaso, a recebe não é mais do que “vaidade”, ou seja, glória
vazia, destinada a dissolver-se em fumaça com a morte. Mas o efeito é
igualmente terrível; Jesus atribuía à busca da própria glória até mesmo a
impossibilidade de crer. Dizia aos fariseus: “Como podeis crer, vós que
recebeis glória uns dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus
único?” (Jo 5,44).
Quando nos encontrarmos
imersos em pensamentos e desejos de glória humana, joguemos na mistura de tais
pensamentos, como uma tocha ardente, a palavra que Jesus mesmo usou e que nos
deixou: “Eu não busco a minha glória!” (Jo 8,50). A luta da humildade
dura a vida inteira e se estende a todos os aspectos da mesma. O orgulho é
capaz de alimentar-se tanto do mal quanto do bem; porém, ao contrário do que
acontece com todos os outros vícios, o bem, não o mal, é o terreno de cultivo
preferido deste terrível “vírus”. Escreve sabiamente o filósofo Blaise Pascal:
“A vaidade tem raízes tão
profundas no coração do homem que um soldado, um servo da milícia, um
cozinheiro, um carregador, se gaba e finge ter seus admiradores e os mesmos
filósofos os querem. E aqueles que escrevem contra a vanglória aspiram à glória
de terem escrito bem, e aqueles que os leem, a vangloria de tê-los lido; e eu,
que escrevo isto, talvez tenha o mesmo desejo; e aqueles que me leem talvez
também” [14].
Para que o homem “não se
ensoberbeça”, Deus geralmente o fixa no chão com uma espécie de âncora; coloca
do seu lado, como com São Paulo, um “mensageiro de Satanás que o fere”, “um
espinho na carne” (2Cor 12,7). Não sabemos exatamente o que fosse
exatamente para o Apóstolo este “espinho na carne”, mas sabemos bem o que é
para nós! Cada um que queira seguir o Senhor e servir a Igreja o tem. São
situações humilhantes que nos lembram constantemente, às vezes de noite e de
dia, a dura realidade daquilo que nós somos. Pode ser um defeito, uma doença,
uma fraqueza, uma impotência, que o Senhor nos deixa, apesar de todas as
súplicas; uma tentação persistente e humilhante, talvez mesmo uma tentação de
soberba; uma pessoa com a qual somos obrigamos a conviver e que, apesar da
retidão de ambas as partes, tem o poder de tirar fora a nossa fragilidade, de
demolir a nossa presunção.
A humildade não é apenas uma
virtude privada. Existe uma humildade que deve brilhar na Igreja como
instituição e povo de Deus. Se Deus é humildade, também a Igreja deve ser
humildade; se Cristo serviu, também a Igreja deve servir, e servir por amor.
Por muito tempo a Igreja, no seu conjunto, tem apresentado ao mundo a verdade de Cristo, mas talvez não muito a humildade de Cristo. No entanto, é com essa,
melhor do que com qualquer apologética, que se acalmam as hostilidade e os
prejuízos contra ela e se abre o caminho para a aceitação do Evangelho.
Há um episódio de “Os
noivos” de Alessandro Manzoni que contém uma profunda verdade psicológica e
evangélica. Frei Cristoforo, acabado o noviciado, decide pedir publicamente
perdão aos parentes do homem que, antes de fazer-se frade, matou em um duelo. A
família se enfileira, formando uma espécie de “forcas caudinas”, de modo que o
gesto se torne o mais humilhante possível para o frade e de maior satisfação
para o orgulho da família. Mas, quando veem o jovem frade abaixar a testa no chão,
ajoelhar-se diante do irmão do morto e pedir perdão, cai a arrogância, são eles
que se sentem confusos e pedem perdão, até que ao final todos se apertam para
beijar-lhe a mão e encomendar-se às suas orações [15]. São os milagres da
humildade.
No profeta Sofonias Deus
diz: “Deixarei em teu seio um povo humilde e pobre, e procurará refúgio no nome
do Senhor” (Sf 3,12). Esta palavra ainda é atual e talvez também dessa
dependerá o sucesso da evangelização na qual a Igreja está comprometida.
Agora sou eu que, antes de
terminar, tenho que lembrar a mim mesmo uma máxima querida por São Francisco.
Ele repetia muitas vezes: “Carlos imperador, Orlando, Oliviero, todos os
paladinos trouxeram uma vitória gloriosa e inesquecível... Mas há muitos que,
somente com a narração dos seus feitos, querem receber honra e glória dos
outros homens” [16]. Usava este exemplo para dizer que os santos praticaram as
virtudes e outros procuram a glória somente narrando isso aos outros [17].
Para que eu também não entre
nesse número, me esforço por colocar em prática o conselho que um antigo Pai do
deserto, Isaac de Nínive, dava a quem é obrigado pelo dever a falar de coisas
espirituais, às quais ainda não chegou com a própria vida: “Fale delas - dizia -
como alguém que pertence à classe dos discípulos e não com autoridade, depois
de ter humilhado a tua alma e de ter-se feito menor do que todos os teus
ouvintes”. Com este espírito, Santo Padre, Veneráveis Pais, irmãos e irmãs,
ousei falar-vos de humildade.
Notas:
[1] Dante Alighieri, Paraíso XI, 111.
[2] São Bernardo de Claraval, Sermões
sobre o Cântico dos Cânticos XVI, 10 (PL 183, 853).
[3] Fioretti, cap. X.
[4] Søren Kierkegaard, La malattia mortale II, cap. 1;
in: Opere, a cura
di C. Fabro, Sansoni, Firenze, 1972, pp. 662s.
[5] Admoestações, XIX (Fontes Franciscanas [FF] 169); cf. também São Boaventura, Legenda
maior, VI,1 (FF 1103).
[6] Considerações dos Sagrados
Estigmas, III (FF 1916).
[7] Santo Agostinho, Solilóquios I, 1, 3; II, 1, 1
(PL 32, 870.885).
[8] Santa Teresa d’Ávila, Castelo Interior, VI,
cap. 10.
[9] Il libro della Beata Angela da
Foligno, Quaracchi, 1985, p. 737.
[10] Apophtegmata Patrum, Antonio 7 (PG 65, 77).
[11] Imitação de Cristo, II, cap.
10.
[12] Admoestações, I (FF 144).
[13] Carta a toda a Ordem (FF 221).
[14] Blaise Pascal, Pensamentos, n. 150 Br.
[15] Alessandro Manzoni, Os Noivos, cap. IV.
[16] Admoestações VI (FF 155).
[17] Tomás de Celano, Vita secunda, 72 (FF
1626).
Fonte: Zenit (Acesso em dezembro de 2013).
Este ano, não haverá as pregações de Advento por parte do Cardeal Cantalamessa?
ResponderExcluirAs meditações deste ano serão nos dias 15 e 22 de dezembro. Na sexta-feira passada (dia 08) não houve meditação por ser a Solenidade da Imaculada Conceição.
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