“Esperamos novos céus
e uma nova terra, onde habitará a justiça” (cf. 2Pd 3,13).
Dedicamos as últimas postagens da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura ao estudo da Primeira Carta de Pedro (1Pd), uma das sete “Cartas Católicas” do Novo Testamento (NT).
Aqui gostaríamos de dar continuidade a esta proposta
contemplando dois breves escritos desse mesmo bloco: a Segunda Carta de Pedro (2Pd)
e a Carta de Judas (Jd).
1. Breve introdução à
Segunda Carta de Pedro e à Carta de Judas
A Carta de Judas é um dos menores escritos
do NT, com apenas 25 versículos. Seu autor se identifica como “Judas, servo de Jesus Cristo, irmão de Tiago”
(Jd 1). Embora alguns o associem ao Apóstolo Judas Tadeu, a hipótese
mais aceita é que este Judas é o “irmão de Jesus” citado em Mc 6,3 e Mt
13,55 e, portanto, também irmão de Tiago, o “Justo”, a quem é atribuída a Carta de Tiago (Tg). Cumpre lembrar que a palavra “irmão” aqui tem o sentido de
“parente próximo”.
São Judas Tadeu (José de Ribera): Representado aqui com a Carta |
Sua autoria, porém, é provavelmente simbólica: o autor, que pertence
a uma das comunidades da Palestina, escreve a outras comunidades da região recorrendo
à autoridade dos “irmãos de Jesus”. É difícil precisar quando a Carta foi escrita, embora a maioria dos
estudiosos a situe entre os anos 90 e 100, após Tg e antes da 2Pd.
A breve obra é composta de uma saudação (vv. 1-2) e de uma
doxologia final (vv. 24-25), além do corpo da Carta (vv. 3-23),
“emoldurado” pelas referências à fé nos versículos 3 e 20.
A grande questão é a presença de “falsos mestres” nas
comunidades, como nas Cartas de João. Os problemas parecem ser tanto de
ordem moral quanto doutrinal: “Convertem
a graça num pretexto para licenciosidade e negam Jesus Cristo” (v. 4).
O autor, para recriminá-los, cita vários exemplos de
personagens desobedientes do Antigo Testamento que foram punidos (inclusive de
textos apócrifos, como Henoc). Aos
fiéis, recorda o ensinamento dos Apóstolos, exortando à fé, esperança e caridade
(v. 20-21) e a convencer os “hesitantes”, tratando todos com misericórdia (vv.
22-23).
A Segunda Carta de Pedro, por sua vez,
é atribuída a “Simão Pedro, servo e
Apóstolo de Jesus Cristo” (2Pd 1,1). O autor se apresenta como
testemunha da Transfiguração do Senhor (2Pd 1,16-18) e se refere à Primeira
Carta (2Pd 3,1); portanto, esta provavelmente possuía os mesmos
destinatários. Porém, as grandes diferenças entre os dois escritos levam-nos a concluir
que são obras de autores diferentes.
Enquanto 1Pd
poderia estar mais próxima dos ensinamentos do Apóstolo, na 2Pd o autor parece estar mais distante, recorrendo
à sua autoridade para legitimar sua mensagem, falando como se fosse Pedro
diante da morte (2Pd 1,12-15), em uma
espécie de “testamento”. Este é provavelmente o último escrito do NT, tendo sua
redação estimada entre os anos 100 e 110, após Jd.
A Carta pode ser dividida em três partes, conforme
seus capítulos, emolduradas por breves fórmulas introdutórias e conclusivas:
Introdução: 2Pd
1,1-2;
1ª parte: 2Pd 1,3-21: Exortação a progredir na
virtude;
2ª parte: 2Pd 2,1-22: Condenação dos “falsos
mestres”;
3ª parte: 2Pd 3,1-16: Explicação sobre a
demora da parusia;
Conclusão: 2Pd
3,17-18.
Alguns autores propõem ainda uma estrutura “concêntrica” do
corpo da Carta, intercalando-se recordação do passado e exortação para o
futuro.
Na primeira parte, sobretudo nos vv. 3-11, o autor exorta à virtude, para que os cristãos possam “participar da natureza divina” (2Pd 1,4), fazendo eco a 1Pd 5,1: “Participante da glória que há de ser revelada”. Quem não progride na virtude é tido como “cego” ou “míope”, referindo-se assim indiretamente ao Batismo como iluminação.
O tema da luz é retomado em 2Pd 1,19 em referência à Palavra de Deus. Esta, atesta o autor, não “resulta de interpretação particular” (v. 20), afirmação que foi bastante debatida, sobretudo no meio protestante.
São Pedro (Matthias Stom) |
A segunda parte retoma basicamente a discussão de Jd sobre os “falsos mestres”, porém
omitindo as citações de textos apócrifos.
Por fim, o capítulo 3 reflete sobre o problema da demora da parusia,
isto é, da última vinda do Senhor. Após recordar novamente os “falsos mestres”,
contrapondo-lhes os ensinamentos dos Apóstolos (como em Jd), o autor justifica a “demora” como uma oportunidade dada por
Deus para que todos se convertam (2Pd 3,9), exortando novamente à
santidade (vv. 11-14).
Cumpre destacar a referência a um “corpus paulinum”, isto é, um bloco de escritos de Paulo: “O nosso amado irmão Paulo vos escreveu...
em todas as suas cartas” (2Pd 3,15),
atestando já nesta época interpretações errôneas do seu pensamento (v. 16),
provavelmente relacionadas ao tema anterior, isto é, a demora da parusia.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
da Segunda Carta de Pedro: Composição
harmônica
Analisaremos a presença da Segunda Carta de Pedro e da Carta
de Judas nas celebrações litúrgicas segundo os dois critérios de seleção
dos textos indicados no n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa (ELM), começando pela composição harmônica:
a escolha do texto em harmonia com o tempo ou a festa litúrgica [1].
a) Celebração
Eucarística e sacramentos
Sob o critério da composição harmônica não temos nenhuma
leitura da Carta de Judas no Rito
Romano. A Segunda Carta de Pedro, por
sua vez, é lida sob este critério na Celebração Eucarística em duas ocasiões:
- II Domingo do
Advento do Ano B: 2Pd 3,8-14 [2]. Em sintonia com a índole escatológica
da primeira parte desse tempo (cf. ELM, n. 93) [3], lemos aqui a reflexão
sobre a demora da parusia como oportunidade que Deus nos oferece para a
conversão, acompanhada da exortação à santidade: “Qual não deve ser o vosso empenho numa vida santa e piedosa, enquanto
esperais com anseio a vinda do Dia de Deus” (vv. 11-12).
- Festa da Transfiguração
do Senhor (06 de agosto): 2Pd 1,16-19 [4]. Aqui, “vestindo o manto”
de Simão Pedro, o autor se apresenta como testemunha da Transfiguração do Senhor,
lida como cumprimento das profecias (v. 19).
Transfiguração do Senhor (Santuário do Monte Tabor) |
Além da Celebração Eucarística, a Segunda Carta de Pedro consta entre as leituras ad libitum (à escolha) para a celebração
do sacramento da Reconciliação. A
perícope sugerida aqui é 2Pd 1,3-11 [5], a exortação à vivência da
virtude: “Dedicai todo o esforço em
juntar à vossa fé a virtude” (v. 5).
b) Liturgia das Horas
Em relação à Liturgia
das Horas, identificamos três leituras breves da nossa Carta
em composição harmônica, particularmente nas Vésperas, uma vez que nesta Hora
sempre se leem textos do Novo Testamento:
- Vésperas das sextas-feiras do Advento até a
III semana e do dia 23 de dezembro: 2Pd 3,8b-9 [6], a “demora da parusia”
como oportunidade para a conversão;
- Vésperas do dia 30
de dezembro e da segunda-feira após a Epifania: 2Pd 1,3-4 [7], a
promessa de que, “depois de libertos da
corrupção da concupiscência do mundo”, participaremos da natureza divina;
- Hora Média (15h) da
Festa da Cátedra de São Pedro (22 de fevereiro): 2Pd 1,16 [8], sobre
Pedro como testemunha ocular da majestade de Jesus Cristo.
3. Leitura litúrgica
da Segunda Carta de Pedro e da Carta
de Judas: Leitura semicontínua
Sob o critério da leitura
semicontínua, isto é, a leitura dos principais textos de um livro na
sequência, as duas Cartas são
proclamadas tanto na Celebração Eucarística quanto na Liturgia das Horas.
A Carta de Judas é, junto com a Carta
a Filêmon, o escrito do NT menos lido nas celebrações do Rito Romano: está
presente, como veremos, em apenas duas ocasiões.
a) Celebração
Eucarística
Nos dias de semana do Tempo Comum são lidos de maneira semicontínua
os livros do Antigo e do Novo Testamento, várias semanas cada um, segundo sua
extensão (cf. ELM, n. 110) [9].
Assim, a Carta de Judas, por sua brevidade, é lida por apenas um dia, no
sábado da VIII semana do Tempo Comum do ano par, logo após a 1Pd.
A Segunda Carta de Pedro, por sua vez, é lida na sequência por
dois dias, na segunda e na terça-feira da IX semana do Tempo Comum do ano par, sucedida por outro escrito do
NT relativamente breve, a Segunda Carta a
Timóteo.
As perícopes selecionadas dos
nossos dois livros aqui são:
VIII semana do Tempo Comum (Ano par):
Sábado: Jd 17.20b-25.
IX semana do Tempo Comum (Ano par):
Segunda-feira: 2Pd 1,2-7;
Terça-feira: 2Pd 3,12-15a.17-18 [10].
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas,
por sua vez, as duas Cartas são lidas
durante uma semana, no Ofício das
Leituras da XXXIV semana do Tempo Comum, de segunda-feira a sábado (uma vez
que no domingo se celebra a Solenidade de Cristo Rei, com uma leitura em
composição harmônica do Apocalipse), após a leitura dos profetas Joel
e Zacarias 9–14 na semana anterior.
Sendo essa a última semana do Ano Litúrgico, a escolha dos
nossos dois escritos está em harmonia com a índole escatológica própria do
final do Tempo Comum.
A parusia (última vinda de Cristo) |
Nesse contexto lê-se 2Pd
na íntegra, enquanto são omitidos seis versículos de Jd.
Ofício das Leituras: XXXIV semana do Tempo Comum
Segunda-feira: 2Pd 1,1-11 - Incentivo
ao caminho da salvação;
Terça-feira: 2Pd 1,12-21 - O testemunho
dos Apóstolos e dos profetas;
Quarta-feira: 2Pd 2,1-9 - Os falsos
doutores;
Quinta-feira: 2Pd 2,9-22 - Denúncia
dos pecados;
Sexta-feira: 2Pd 3,1-18 - Exortação
à espera da vinda do Senhor;
Sábado: Jd 1-8.12-13.17-25 - Denúncia
dos ímpios e exortação aos fiéis [11].
No ciclo bienal do Ofício das
Leituras, que infelizmente ainda não foi traduzido para o Brasil, os dois
livros são lidos ao longo de toda a XXIII semana do Tempo Comum nos
anos pares, entre as Cartas de Paulo a Tito e Timóteo
(semanas XXI-XXII) e os Livros de Ester e Baruc (semana XXIV).
A única diferença em relação ao
ciclo anual, uma vez que aqui a leitura começa já no domingo, é que a perícope
de sexta-feira (2Pd 3,1-18) é dividida em duas partes:
Ofício das Leituras: XXIII
semana do Tempo Comum (Ano par)
Domingo a quarta-feira: Como
no ciclo anual;
Quinta-feira: 2Pd 3,1-10 -
Deus é fiel a suas promessas;
Sexta-feira: 2Pd 3,11-18 -
O Senhor é fiel: esperemos sua vinda;
Sábado: Como no ciclo anual
[12].
Por fim, além das leituras
longas, temos ainda três leituras breves de 2Pd distribuídas ao longo de duas das quatro
semanas do Saltério na oração das Laudes e Vésperas.
Vale lembrar que os salmos organizados nessas quatro semanas
são entoados ao longo de todo o ano, mas as leituras são proferidas apenas no
Tempo Comum, dado que os Tempos do Advento, Natal, Quaresma e Páscoa possuem
leituras próprias.
- Laudes do sábado da I semana: 2Pd 1,10-11 [13], a exortação
a “confirmar a vocação e eleição”
recebidas no Batismo com uma vida de santidade;
- I Vésperas do domingo da IV semana: 2Pd 1,19-21 [14], a
exortação a ter a Palavra de Deus diante dos olhos, “como lâmpada que brilha em lugar escuro”;
- Laudes do sábado da IV semana: 2Pd 3,13-15a [15], a
exortação à esperança e a uma “vida pura
e sem mancha e em paz”.
Breve bibliografia sobre a Segunda
Carta de Pedro e a Carta de Judas:
BROWN, Raymond. Carta (epístola) de Judas; Segunda epístola
(carta) de Pedro. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo:
Paulinas, 2012, pp. 973-988; 989-1003.
GABARRÓN, José Cervantes. Segunda Carta de São Pedro;
Carta de São Judas. in: OPORTO,
Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 657-661;
663-666.
NEYREY, Jerome H. Epístola de Judas; Segunda Epístola de
Pedro. in: BROWN, Raymond E.;
FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos
sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 683-688;
875-884.
SCHLOSSER, Jacques. A segunda epístola de Pedro; A epístola de
Judas. in: MARGUERAT, Daniel [org.].
Novo Testamento: História, escritura e
teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 549-558; 559-567.
TUÑI, Josep-Oriol. A segunda carta de Pedro; Carta de Judas. in:
ALEGRE, Xavier; TUÑI, Josep-Oriol. Escritos
joaninos e cartas católicas. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2007, pp. 321-335;
337-344. Coleção: Introdução ao Estudo da
Bíblia, v. 8.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1994.
[3] ALDAZÁBAL, op. cit., pp. 93-94.
[4] LECIONÁRIO
I, op. cit.; LECIONÁRIO III: Para as Missas
dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[5] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda
edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, p. 152.
[6] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano.
Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol.
I, pp. 156.211.267.338.
[7] ibid., vol. I, pp. 416.527. A segunda-feira após a Epifania
equivale ao dia 07 de janeiro onde a Epifania é celebrada no dia 06.
[8] ibid.,
vol. II, p. 1457; vol. III, p. 1278.
[9] cf. ALDAZÁBAL,
op. cit., p. 105.
[10] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo:
Paulus, 1995.
[11] OFÍCIO DIVINO, vol. IV, pp.
513.516.520.523.527.530.
[12] Os títulos das leituras “inéditas”
em relação ao ciclo anual foram traduzidos livremente do texto espanhol divulgado
pelo site Dei Verbum.
[13] OFÍCIO DIVINO, vol. III, p.
743; vol. IV, p. 697.
[14] ibid.,
vol. III, p. 1030; vol. IV, p. 984.
[15] ibid.,
vol. III, p. 1153; vol. IV, p. 1107.
Imagens: Wikimedia Commons.
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