Há 10 anos, durante o Advento de 2013, o Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia (criado Cardeal em 2020), proferiu três meditações sobre São Francisco de Assis, honrando assim o Papa Francisco, que havia sido eleito no mês de março do mesmo ano, escolhendo o nome desse santo.
No contexto dos 800 anos da aprovação da Regra Franciscana e do presépio de Greccio (1223-2023), reproduzimos a seguir a terceira e última meditação:
Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
III pregação de Advento
20 de dezembro de 2013
O mistério da Encarnação contemplado com os olhos de Francisco de Assis
1. Greccio e a instituição
do presépio
Todos nós conhecemos a
história de Francisco que, em Greccio, três anos antes de sua morte, deu início
à tradição natalina do presépio; mas é bom recordá-la, brevemente, nesta
circunstância. Celano escreve assim:
“Uns quinze dias antes do Natal, São Francisco mandou chamá-lo [um homem chamado João], como costumava fazer, e disse: ‘Se você quiser que celebremos o Natal em Greccio, é bom começar a preparar diligentemente e desde já o que eu vou dizer. Quero lembrar o menino que nasceu em Belém, os apertos que passou, como foi posto num presépio, e contemplar com os próprios olhos como ficou em cima da palha, entre o boi e o burro’. (...) E veio o dia da alegria... O santo vestiu dalmática, porque era diácono, e cantou com voz sonora o santo Evangelho. De fato, era ‘uma voz forte, doce, clara e sonora’, convidando todos às alegrias eternas. Depois pregou ao povo presente, dizendo coisas doces como o mel sobre o nascimento do Rei pobre e sobre a pequena cidade de Belém” [1].
A importância do episódio
não está tanto no fato em si e nem sequer na influência espetacular que teve na
tradição cristã; está na novidade que isso revela a respeito da compreensão que
o santo tinha do mistério da Encarnação. A insistência demasiado unilateral, e
às vezes até obsessiva, sobre os aspectos ontológicos da Encarnação (natureza,
pessoa, união hipostática, comunicação dos idiomas) tinha feito muitas vezes
perder de vista a verdadeira natureza do mistério cristão, reduzindo-o a um
mistério especulativo, que deve ser formulado com categorias cada vez mais
rigorosas, mas muito distantes do alcance do povo.
Francisco de Assis nos ajuda
a integrar a visão ontológica da Encarnação com aquela mais existencial e
religiosa. Não importa, de fato, só saber que Deus
se fez homem; importa também saber que tipo de homem se fez. É
significativo o modo diferente e complementar com o qual João e Paulo descrevem
o evento da Encarnação. Para João, consiste no fato de que o Verbo, que era
Deus, se fez carne (cf. Jo 1,1-14); para Paulo, consiste no fato de que
“Cristo, sendo de natureza divina, assumiu a forma de servo e se humilhou a si
mesmo fazendo-se obediente até a morte” (cf. Fl 2,6ss). Para João, o
Verbo, sendo Deus, se fez homem; para Paulo “Cristo, sendo rico, se fez pobre”
(cf. 2Cor 8,9).
Francisco de Assis segue a
lógica de São Paulo. Ao invés da realidade ontológica da humanidade de
Cristo (na qual ele acredita firmemente com toda a Igreja), ele insiste, até à
comoção, na humildade e na pobreza dela. Duas coisas, dizem as
fontes, tinham o poder de comovê-lo até as lágrimas, cada vez que as escutava:
“a humildade da Encarnação e a caridade da sua Paixão” [2]. “Não conseguia
reprimir as lágrimas ao pensar na extrema pobreza que padeceu nesse dia a
Virgem Senhora pobrezinha. Uma vez, estando sentado à mesa a comer, e tendo um
irmão recordado a pobreza da bem-aventurada Virgem e de seu Filho,
imediatamente se levantou a chorar e a soluçar, e, com o rosto banhado em
lágrimas, comeu o resto do pão sobre a terra nua” [3]. Francisco recolocou
dessa forma “carne e sangue” nos mistérios do Cristianismo, muitas vezes “desencarnados”
e reduzidos a conceitos e silogismos nas escolas teológicas e nos livros. Um
estudioso alemão viu em Francisco de Assis aquele que criou condições para o
nascimento da arte moderna da Renascença, enquanto que dissolve pessoas e
eventos sacros da rigidez estilizada do passado e lhes dá concretude e vida [4].
2. O Natal e os pobres
A diferença entre o fato e o modo da Encarnação, entre a sua
dimensão ontológica e aquela existencial, nos interessa porque lança luz sobre
o problema atual da pobreza e da atitude dos cristãos para com ela. Ajuda a dar
uma base bíblica e teológica para a opção preferencial pelos pobres, proclamada
no Concílio Vaticano II. Se, pelo fato da Encarnação, o Verbo, de
certa forma, assumiu cada homem, como diziam certos Padres da Igreja, pelo modo em que ocorreu a Encarnação Ele
assumiu, de uma forma muito especial, o pobre, o humilde, o sofredor, a ponto
de se identificar com eles.
É claro que no pobre não se
tem o mesmo gênero de presença de Cristo que se tem na Eucaristia e nos outros
sacramentos, mas trata-se de uma presença, também essa, verdadeira, “real”. Ele
“instituiu” este sinal, como instituiu a Eucaristia. Aquele que pronunciou
sobre o pão as palavras: “Este é o meu corpo”, disse essas mesmas palavras
também dos pobres. Disse-as quando, falando daquilo que se fizer, ou não se
fizer, pelo faminto, o sedento, o prisioneiro, o nu e o desterrado, declarou
solenemente: “Fizestes a mim” e “Não o fizestes a mim” (cf. Mt 25,31-46).
De fato, isso equivale a dizer: “Aquela pessoa esfarrapada, necessitada de um
pouco de pão, aquele ancião que morria entorpecido de frio nas calçadas, era Eu!”.
“Os Padres conciliares - escreveu Jean Guitton, observador leigo do Vaticano II
- reencontraram o sacramento da pobreza, a presença de Cristo sob as espécies
daqueles que sofrem” [5].
Não aceita plenamente a
Cristo quem não estiver disposto a aceitar o pobre com o qual Ele se
identificou. Quem, no momento da Comunhão, se aproxima cheio de fervor para
receber a Cristo, mas tem o seu coração fechado para os pobres, se assemelha,
diria Santo Agostinho, a alguém que vê se aproximar de longe um amigo que não
vê há anos. Cheio de alegria, corre para encontrá-lo, fica na ponta dos pés
para beijar sua testa, mas ao fazê-lo não percebe que está esmagando os seus
pés com sapatos com pregos. Os pobres são os pés descalços que Cristo ainda tem
sobre esta terra.
Também o pobre é um “vigário de Cristo”, aquele que faz as vezes de Cristo. Vigário, no sentido passivo, não ativo. Ou seja, não no sentido de que aquilo que faz o pobre é como se Cristo o fizesse, mas no sentido em que aquilo que se faz ao pobre é como se o fizesse a Cristo. É verdade, como escreve São Leão Magno, que depois da Ascensão, “tudo aquilo que havia de visível em nosso Senhor Jesus Cristo passou aos sinais sacramentais da Igreja” [6], mas é igualmente verdade que, do ponto de vista da existência, isso também passou aos pobres e a todos aqueles dos quais Ele disse: “Fizestes a mim”.
O “presépio de Greccio” (Giotto) |
Colhamos a consequência que deriva de tudo isso em termos de eclesiologia. João XXIII, no Concílio, cunhou a expressão “Igreja dos pobres” [7]. É, talvez, um significado que vai além do que se entende à primeira vista. A Igreja dos pobres não é constituída apenas pelos pobres da Igreja. Em certo sentido, todos os pobres do mundo, sejam batizados ou não, fazem parte dela. A sua pobreza e sofrimento é o seu “batismo de sangue”. Se os cristãos são aqueles que foram “batizados na Morte de Cristo” (Rm 6,3), quem é, de fato, mais batizado na Morte de Cristo do que eles?
Como não considerá-los, de alguma forma, Igreja de Cristo, se o próprio Cristo declarou que eles são o seu corpo? Eles são “cristãos”, não porque se declaram membros de Cristo, mas porque Cristo os declarou seus membros: “Fizestes a mim!”. Se existe um caso em que o polêmico termo “cristãos anônimos” pode ter uma aplicação plausível, é precisamente este dos pobres.
A Igreja de Cristo é,
portanto, muito maior do que o que as estatísticas atuais dizem. Não só como
modo de dizer, mas verdadeiramente, realmente. Nenhum dos fundadores de
religiões se identificou com os pobres como fez Jesus. Nenhum proclamou: “Tudo
aquilo que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”
(Mt 25,40), onde o “irmão mais pequenino” não indica somente aquele
que crê em Cristo, mas, como é aceito por todos, cada homem.
Segue-se disso que o Papa, Vigário
de Cristo, é realmente o “pai dos pobres”, o pastor deste imenso rebanho, e é
uma alegria e uma inspiração para todo o povo cristão ver como este papel tem
sido levado a sério pelos últimos Sumos Pontífices e de uma maneira especial
pelo pastor que hoje está sentado na Cátedra de Pedro. Ele é a voz mais
respeitável que se eleva na defesa deles. A voz dos sem voz. Realmente “não se esqueceu
dos pobres”!
O que escreve o Papa na
recente Exortação Apostólica Evangelii Gaudium sobre a necessidade de
não ficar indiferente diante do drama da pobreza no mundo globalizado de hoje
me fez pensar em uma imagem. Temos a tendência de colocar, entre nós e os
pobres, vidros duplos. O efeito dos vidros duplos, muito utilizado hoje na
construção, é que ele impede a passagem do frio, do calor e do ruído, suaviza
tudo, atenua tudo, abafa tudo. E, de fato, vemos os pobres mover-se, agitar-se,
gritar por trás da tela da televisão, nas páginas dos jornais e das revistas
missionárias, mas o seu clamor nos chega como de longe. Não nos penetra o
coração. Falo-o para a minha própria confusão e vergonha. A palavra “os pobres”,
“os migrantes” provoca, nos países ricos, aquilo que provocava nos romanos
antigos o grito “os bárbaros”: o choque, o pânico. Eles se preocupavam por
construir muros e enviar exércitos às fronteiras para mantê-los afastados; nós
fazemos a mesma coisa, de outras maneiras. Mas a história diz que é inútil.
Choramos e reclamamos - e
com razão! - pelas crianças que são impedidas de nascer, mas não devemos fazer
o mesmo pelas milhões de crianças nascidas e condenadas à morte pela fome, pelas
doenças, crianças obrigadas a ir à guerra e matar-se entre si por interesses
que não são estranhos a nós dos países ricos? Não será porque as primeiras
pertencem ao nosso continente e têm a nossa própria cor, enquanto as segundas
pertencem a outro continente e têm uma cor diferente? Protestamos - e mais do
que com razão! - pelos idosos, os doentes, os deficientes “ajudados” (às vezes
forçados) a morrer com a eutanásia; mas não deveríamos fazer o mesmo pelos
anciãos que morrem congelados de frio ou abandonados à sua sorte sozinhos? A
lei do liberalismo econômico do “viver e deixar viver” nunca deveria
transformar-se na lei do “viver e deixar morrer”, como está acontecendo em todo
o mundo.
É claro que a lei natural é
santa, mas é precisamente para ter a força de aplicá-la que temos necessidade
de recomeçar da fé em Jesus Cristo. São Paulo escreveu: “O que era impossível à
Lei, porque enfraquecida pela carne, Deus tornou possível, enviando o seu
próprio Filho” (Rm 8,3). Os primeiros cristãos, com os seus costumes,
ajudaram o Estado a mudar as próprias leis; nós, cristãos de hoje, não podemos
fazer o contrário e pensar que seja o Estado com as suas leis que têm o dever
de mudar os costumes do povo.
3. Amar, socorrer,
evangelizar os pobres
A primeira coisa a ser
feita, com relação aos pobres, é, portanto, quebrar os vidros duplos, superar a
indiferença e a insensibilidade. Devemos, como o Papa nos exorta, “dar-nos
conta” dos pobres, deixar-nos tomar por uma preocupação saudável pela sua
presença no meio de nós, muitas vezes, a uma curta distância da nossa casa. O
que precisamos fazer concretamente por eles pode ser resumido em três palavras:
amá-los, socorrê-los, evangelizá-los.
Amar os pobres. O amor pelos pobres é um dos traços mais comuns da santidade
católica. No próprio São Francisco, como vimos na primeira meditação, o amor
pelos pobres, a partir de Cristo pobre, vem antes do que o amor pela pobreza e
foi esse que o levou a casar-se com a pobreza. Para alguns santos, como Vicente
de Paulo, Madre Teresa de Calcutá e muitos outros, o amor para com os pobres
foi, de fato, o seu caminho para a santidade, o seu carisma.
Amar os pobres significa
antes de tudo respeitá-los e reconhecer a sua dignidade. Neles, por causa da
falta de outros títulos e distinções secundárias, brilha com uma luz mais
brilhante a radical dignidade do ser humano. Em uma homilia de Natal realizada
em Milão, o Cardeal Montini (futuro Papa Paulo VI) dizia: “A visão completa da
vida humana sob a luz de Cristo vê em um pobre algo mais do que um necessitado;
vê neles um irmão misteriosamente revestido de uma dignidade, que exige pagar-lhe
reverência, recebê-lo com cuidado, compadecê-lo além do mérito” [8].
Mas os pobres não só merecem
a nossa piedade; também
merecem a nossa admiração. Eles
são os verdadeiros campeões da humanidade. São distribuídos anualmente taças,
medalhas de ouro, de prata, de bronze, ao mérito, à memória ou aos vencedores
de competições. E talvez só porque foram capazes de correr em uma fração de
segundos menos do que os outros, os cem, duzentos ou quatrocentos metros com
barreiras, ou de saltar um centímetro mais alto do que os outros, ou de vencer
uma maratona ou uma corrida de slalom.
Contudo, se alguém
observasse de quais saltos mortais, de quais forças, de quais slalom são
capazes, às vezes, os pobres, e não uma vez, mas durante toda a vida, o
desempenho dos mais famosos atletas nos pareceria joguinhos de crianças. O que
é uma maratona em comparação, por exemplo, ao que faz um homem-riquixá de
Calcutá, que no final de sua vida andou a pé o equivalente a várias voltas ao
redor da terra, no calor mais extenuante, puxando um ou dois passageiros, por
estradas ruins, entre buracos e poças d’água, deslizando-se entre um carro e
outro para não ser atropelado?
Imagem do Menino Jesus no altar da Gruta de Greccio |
Francisco de Assis nos ajuda a descobrir uma razão ainda mais forte para amar os pobres: o fato de que eles não são simplesmente os nossos “semelhantes” ou o nosso “próximo”: são nossos irmãos! Jesus tinha falado: “Um só é o vosso Pai celeste e vós sois todos irmãos” (Mt 23,8-9), mas esta palavra foi compreendida até agora como direcionada somente aos discípulos. Na tradição cristã, irmão no sentido estrito é somente aquele que compartilha da mesma fé e recebeu o mesmo Batismo.
Francisco retoma a palavra de Cristo e dá a ela um sentido universal que é aquele que certamente tinha em mente também Jesus. Francisco colocou “todo o mundo em estado de fraternidade” [9]. Chama irmãos não apenas os seus irmãos e companheiros de fé, mas também os leprosos, os ladrões, os sarracenos, ou seja, crentes e não-crentes, bons e maus, especialmente os pobres. Novidade, esta, absoluta, que estende o conceito de irmão e irmã também às criaturas inanimadas: o sol, a lua, a terra, a água e até mesmo a morte. Isso, evidentemente, é poesia, mais do que teologia. O santo sabe bem que entre essas criaturas e os seres humanos, feitos à imagem de Deus, há a mesma diferença do que entre o filho de um artista e as obras criadas por ele. Mas é que o senso de fraternidade universal do Poverello não tem fronteiras.
Isso da fraternidade é a contribuição específica que a fé cristã pode dar para fortalecer a paz no mundo e a luta contra a pobreza, como sugere o tema da próxima Jornada Mundial da Paz: “Fraternidade, fundamento e caminho para a paz”. Pensando bem, esse é o único fundamento verdadeiro e não irrealista. Que sentido, de fato, falar de fraternidade e de solidariedade humana se partimos de certa visão científica do mundo que conhece, como únicas forças de ação no mundo, “o acaso e a necessidade”? Se partimos, em outras palavras, de uma visão filosófica como aquela de Nietzsche, segundo a qual o mundo só é vontade de poder e toda tentativa de opor-se a isso é sinal de ressentimento dos fracos contra os fortes? Está certo quem diz que “se o ser é apenas caos e força, a ação que busca a paz e a justiça permanecerá inevitavelmente sem fundamento” [10]. Falta, neste caso, uma razão suficiente para se opor ao liberalismo desenfreado e à iniquidade fortemente denunciada pelo Papa na Exortação Evangelii Gaudium.
Ao dever de amar e respeitar
os pobres, segue aquele de socorrê-los.
Aqui nos ajuda São Tiago. Para que serve, diz ele, compadecer-se diante de um
irmão ou uma irmã sem roupa ou comida, dizendo-lhes: “Pobrezinho, como sofre!
Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos”, e não lhes der o necessário para a sua
manutenção? Assim como a fé, a compaixão sem obras é morta (cf. Tg
2,15-17). Jesus não dirá no juízo: “Estive nu e tivestes pena de mim”, mas: “Estive
nu e me vestiste”. Não devemos culpar a Deus pela miséria do mundo, mas a nós
mesmos. Um dia vendo uma criança tremendo de frio e que chorava de fome, um
homem foi tomado de revolta e gritou: “Ó, Deus, onde estás? Porque não fazes
nada por esta criatura inocente?”. Mas uma voz interior lhe respondeu: “Claro
que fiz algo. Fiz a ti!”. E compreendeu imediatamente.
Hoje, no entanto, já não é
suficiente só a esmola. O problema da pobreza se tornou planetário. Quando os
Padres da Igreja falavam dos pobres pensavam nos pobres da sua cidade, ou, no
máximo, naqueles da cidade vizinha. Não conheciam nada mais, a não ser muito
vagamente e, além disso, embora conhecessem, enviar ajuda teria sido ainda mais
difícil, em uma sociedade como a deles. Hoje sabemos que isso não basta, embora
nada nos dispense de fazer aquilo que possamos também a nível individual.
O exemplo dos muitos homens
e mulheres do nosso tempo mostra-nos que há muitas coisas que podem ser feitas
para socorrer os pobres, cada um de acordo com os seus meios e possibilidades, e
promover-lhes a elevação. Falando do “grito dos pobres”, na Exortação
Apostólica Evangelica testificatio, Paulo VI falava especialmente a
nós religiosos: “Isso faz com que alguns de vocês cheguem aos pobres em seu
estado, compartilhem com eles as suas preocupações amargas. Convida, por outro
lado, não poucos dos vossos institutos a reconverter em favor dos pobres
algumas das suas obras” [11].
Eliminar ou reduzir o
injusto e escandaloso abismo que existe entre ricos e pobres no mundo é a
tarefa mais urgente e mais ingente que o milênio que apenas terminou entregou
ao novo milênio no qual entramos. Esperemos que não seja ainda o problema
número um que o presente milênio deixará em herança para o próximo.
Finalmente, evangelizar os pobres. Esta foi a missão que Jesus reconheceu como a sua por excelência: “O Espírito do Senhor está sobre mim, me ungiu para evangelizar os pobres” (Lc 4,18), e que indicou como sinal da presença do Reino aos enviados pelo Batista: “Aos pobres é anunciada a boa nova” (Mt 11,5). Não devemos permitir que a nossa má consciência nos leve a cometer a enorme injustiça de privar da boa nova aqueles que são seus primeiros e mais naturais destinatários. Talvez, acrescentando à nossa desculpa, o provérbio que “barriga vazia não tem ouvidos”. A ação social deve acompanhar a evangelização, e não substituí-la.
Jesus multiplicava os pães e
também a Palavra, na verdade administrava primeiro - às vezes por três dias
seguidos - a Palavra, depois se preocupava também dos pães. Não só de pão vive
o pobre, mas também de esperança e de cada palavra que sai da boca de Deus. Os
pobres têm o direito sagrado de ouvir o Evangelho na sua totalidade, não em
edições reduzidas ou polêmicas; o Evangelho que fala de amor aos pobres, mas
não de ódio aos ricos.
4. Alegria no céu e alegria
na terra
Terminemos com outro tom.
Para Francisco de Assis, Natal não era somente a ocasião para chorar a pobreza
de Cristo; era também a festa que tinha o poder de fazer explodir toda a
capacidade de alegria que estava no seu coração, e era muito grande. No Natal
ele fazia literalmente loucuras.
“Queria que nesse dia os pobres e os mendigos fossem saciados pelos ricos, e que os bois e os burros recebessem uma ração de comida e de feno mais abundante que o normal. ‘Se pudesse falar ao imperador - dizia - suplicaria a ele que emitisse um decreto geral, pelo qual todos aqueles que têm possibilidade espalhem pelas ruas trigo e grãos, para que em um dia de tanta solenidade até os pássaros, especialmente as irmãs cotovias, tenham em abundância’” [12].
Transformava-se como que em
uma dessas crianças que estavam com os olhos cheios de admiração diante do
presépio. Durante a celebração do Natal em Greccio, narra o biógrafo, quando
pronunciava o nome “Belém” enchia a boca de voz e de muito afeto, produzindo um
som parecido ao balido das ovelhas. E cada vez que dizia: “Menino de Belém” ou “Jesus”,
passava a língua sobre os lábios, como para saborear e reter toda a doçura
daquelas palavras.
Há uma canção de Natal que
expressa perfeitamente os sentimentos de São Francisco diante do presépio e
isso não surpreende se pensarmos que foi escrita, letra e música, por um santo
como ele, Santo Afonso Maria de Ligório. Escutando-a no tempo do Natal,
deixemo-nos comover pela sua mensagem simples, mas essencial:
Tu desces das estrelas, ó Rei do céu,
e vens em uma gruta no frio e no gelo…
A ti que sois do mundo o Criador,
faltam vestes e fogo, ó meu Senhor.
Caro bebezinho eleito, toda esta pobreza
ainda mais me apaixona, pois te fizeste pobre por amor [13].
Santo Padre, Veneráveis
Padres, irmãos e irmãs, Feliz Natal!
Notas:
[1] Tomás de Celano, Vita Prima, 84-86 (Fontes
Franciscanas [FF] 468-470)
[2] ibid., 30 (FF 467).
[3] idem, Vita Secunda, 200 (FF 788).
[4] Henry Thode, Franz von Assisi und die Anfänge
der Kunst des Renaissance in Italien, Berlin, 1885.
[5] Jean Guitton, citado por R. Gil, Presencia de los pobres en el Concilio,
in: Proyección 48, 1966, p. 30.
[6] São Leão Magno, Discurso sobre a Ascensão 2, 2 (PL 54, 398).
[7] cf. Acta Apostolicae Sedis
54, 1962, p. 682.
[8] cf. Il Gesú di Paolo VI,
organizado por V. Levi, Milano, 1985, p. 61.
[9] P. Damien Vorreux, Saint François d’Assise, Documents,
Paris, 1968, p. 36.
[10] V. Mancuso, in: La Repubblica, 04
de outubro de 2013.
[11] Paulo VI, Exortação Apostólica Evangelica
testificatio, 18.
[12] Tomás de Celano, Vita Secunda, 200 (FF 787-788).
[13] “Tu scendi dalle
stelle o Re del cielo, / e vieni in una grotta al freddo e al gelo... / A te
che sei del mondo il Creatore, / mancano i panni e il fuoco, o mio Signore. / Caro
eletto pargoletto, quanta questa povertà / più mi innamora, giacché ti fece
amor povero ancora”.
Fonte: Zenit (Acesso em dezembro de 2013).
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