Há 10 anos, durante o Advento de 2013, o Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia (criado Cardeal em 2020), proferiu três meditações sobre São Francisco de Assis, honrando assim o Papa Francisco, que havia sido eleito no mês de março do mesmo ano, escolhendo o nome desse santo.
No contexto dos 800 anos da aprovação da Regra Franciscana e do presépio de Greccio (1223-2023), reproduzimos a seguir a primeira das três meditações:
Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
I pregação de Advento
06 de dezembro de 2013
Francisco de Assis e a reforma da Igreja por meio da santidade
O propósito destas três
meditações do Advento é preparar-nos para o Natal na companhia de Francisco de
Assis. Dele, nesta primeira meditação, gostaria de destacar a natureza do seu
retorno ao Evangelho. O teólogo Yves Congar, em seu estudo sobre “a verdadeira
e a falsa reforma na Igreja” vê em Francisco o exemplo mais claro de reforma da
Igreja pelo caminho da santidade [1]. Gostaríamos de procurar compreender em
que consistiu a sua reforma pelo caminho da santidade e o que o seu exemplo
implica para cada época da Igreja, inclusive a nossa.
1. A conversão de Francisco
Para entender um pouco da
aventura de Francisco é preciso partir da sua conversão. Desse evento existem,
nas fontes, diferentes descrições com notáveis diferenças entre si. Felizmente
temos uma fonte absolutamente confiável que nos dispensa de escolher entre as
várias versões. Temos o próprio testemunho de Francisco no seu Testamento,
a sua ipsissima vox, como
se diz das palavras certamente ditas por Cristo no Evangelho. Diz:
«O Senhor concedeu a mim, irmão Francisco, que começasse a fazer penitência assim: quando eu estava nos pecados parecia-me muito amargo ver os leprosos: e o próprio Senhor conduziu-me entre eles e fui misericordioso para com eles. E ao afastar-me deles, o que me parecia amargo foi-me trocado por doçura de alma e corpo. E, depois, demorei só um pouco e saí do mundo” » (Fontes Franciscanas, n. 110).
É sobre esse texto que
justamente se baseiam os historiadores, mas com um limite intransponível para
eles. Os historiadores, mesmo os mais bem intencionados e mais respeitosos com
as peculiaridades da vida de Francisco, como era, entre os italianos Raoul
Manselli, não conseguem entender o porquê último da sua mudança radical.
Detêm-se - e com razão, por causa do seu método - na porta, falando de um
“segredo de Francisco”, destinado a permanecer assim para sempre.
O que se consegue constatar
historicamente é a decisão de Francisco de mudar o seu status social. De
pertença à classe superior, que contava na cidade com nobreza e riqueza, ele
escolheu colocar-se no extremo oposto, compartilhando a vida dos últimos,
daqueles que não eram nada, os assim chamados “menores”, atingidos por todos os
tipos de pobreza.
Os historiadores justamente
insistem no fato de que Francisco não escolheu a pobreza e muito menos o
pauperismo: escolheu os pobres! A mudança é motivada mais pelo mandamento -
“Ama o teu próximo como a ti mesmo” - que pelo conselho: “Se queres ser
perfeito, vai’, vende tudo o que tens e dá aos pobres, depois vem e segue-me”.
Era a compaixão pela pobre gente, mais do que a busca da própria perfeição que
o movia, a caridade mais do que a pobreza.
Tudo isso é verdade, mas
ainda assim não toca o fundo do problema. É o efeito da mudança, não a sua
causa. A escolha verdadeira é muito mais radical: não se tratou de escolher
entre riqueza e pobreza, nem entre ricos e pobres, entre a pertença a uma classe
mais do que a outra, mas de escolher entre si mesmo e Deus, entre salvar a
própria vida ou perdê-la pelo Evangelho.
Houve alguns (por exemplo,
em tempos mais recentes, Simone Weil), que chegaram a Cristo por meio do amor
aos pobres e houve outros que chegaram aos pobres partindo do amor por Cristo.
Francisco pertence a este segundo grupo. A razão profunda da sua conversão não
é de natureza social, mas evangélica. Jesus tinha formulado a lei uma vez por
todas com uma das frases mais solenes e mais certamente autênticas do
Evangelho: “Se alguém quer vir após mim,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua
vida a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa a encontrará” (Mt
16 ,24-25).
Francisco, beijando o
leproso, negou-se a si mesmo naquilo que era mais “amargo” e repugnante à sua
natureza. Fez violência a si mesmo. O detalhe não escapou ao seu primeiro
biógrafo que descreve assim o episódio:
“Um dia um leproso parou
diante dele: fez violência a
si mesmo, aproximou-se dele
e o beijou. A partir daquele momento decidiu
desprezar-se sempre mais, até que pela misericórdia do Redentor obteve
plena vitória” [2].
Francisco não foi
voluntariamente aos leprosos, motivado por humana e religiosa compaixão. “O
Senhor - escreve - levou-me no meio deles”. É nesse pequeno detalhe que os
historiadores não sabem - nem poderiam - dar um juízo, e de fato é a origem de
tudo. Jesus tinha preparado o seu coração para que a sua liberdade, no momento
certo, respondesse à graça. O sonho de Spoleto tinha servido para isso e a
pergunta de se preferia servir o servo ou o patrão, a doença, a prisão em
Perugia e aquele mal-estar estranho que não lhe permitia mais encontrar alegria
nas diversões e lhe fazia procurar lugares solitários.
Embora sem pensar que se
tratasse de Jesus em pessoa sob as aparências de um leproso, como mais tarde
tentou-se fazer, pensando no caso análogo da vida de São Martinho de Tours [3],
naquele momento o leproso para Francisco representava em todos os aspectos
Jesus. Não tinha Ele dito: “O fizeste a mim”? Naquele momento escolheu entre si
mesmo e Jesus. A conversão de Francisco é da mesma natureza daquela de Paulo.
Para Paulo, em certo momento, aquilo que antes tinha sido “lucro” mudou e
tornou-se “perda”, “por amor de Cristo” (Fl 3,5ss); para Francisco
aquilo que tinha sido amargo converteu-se em doçura, também aqui “por Cristo”.
Depois deste momento, ambos podem dizer: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que
vive em mim”.
Tudo isso nos obriga a
corrigir certa imagem de Francisco popularizada pela literatura posterior e
aceita por Dante na Divina Comédia. A famosa metáfora das núpcias de
Francisco com a Senhora Pobreza, que deixou marcas profundas na arte e na
poesia franciscanas, pode ser enganosa. Ele não se apaixona por uma virtude,
nem mesmo pela pobreza; apaixona-se por uma pessoa. As núpcias de Francisco
foram, como aquelas de outros místicos, um casamento com Cristo.
Aos companheiros que lhe
perguntavam se ele pretendia ter uma mulher, vendo-o uma noite estranhamente
ausente e brilhante, o jovem Francisco respondeu: “Terei a esposa mais nobre e
bela que vocês jamais viram”. Esta resposta é muitas vezes mal interpretada. Do
contexto aparece claro que a esposa não é a pobreza, mas o tesouro escondido e
a pérola preciosa, ou seja, Cristo. “Esposa - comenta Celano, que narra o
episódio - é a verdadeira religião que ele abraçou; e o reino dos céus é o
tesouro escondido que ele procurou” [4].
Francisco não se casou com a
pobreza, nem sequer com os pobres; casou-se com Cristo e foi por amor a Ele que
se casou, por assim dizer, “em segundas núpcias” com a Senhora pobreza. Assim
será sempre na santidade cristã. Na base do amor pela pobreza e pelos pobres,
ou está o amor por Cristo, ou os pobres serão, de um modo ou de outro, instrumentalizados
e a pobreza se tornará facilmente um fato polêmico contra a Igreja, ou uma
ostentação de maior perfeição com relação a outros na Igreja, como aconteceu,
infelizmente, também em alguns dos seguidores do Poverello. Em ambos os casos,
faz-se da pobreza a pior forma de riqueza, aquela da própria justiça.
2. Francisco e a reforma da
Igreja
Como aconteceu que a partir
de um evento tão íntimo e pessoal, como foi a conversão do jovem Francisco,
tenha começado um movimento que mudou ao mesmo tempo o rosto da Igreja e teve tanta
influência na história, até os nossos dias?
É preciso dar uma olhada na
situação da época. Na época de Francisco a reforma da Igreja era uma
necessidade sentida mais ou menos conscientemente por todos. O corpo da Igreja
vivia tensões e lacerações profundas. De um lado estava a Igreja institucional -
Papa, Bispos, alto clero -, desgastada pelos seus perenes conflitos e pelas
suas alianças muito próximas com o Império. Uma Igreja sentida muito distante,
envolvida em assuntos muito acima dos interesses do povo. Em seguida, estavam
as grandes ordens religiosas, muitas vezes prósperas pela cultura e
espiritualidade após as várias reformas do século XI, entre as quais aquela
Cisterciense, mas fatalmente identificadas com os grandes proprietários de
terras, senhores feudais da época, vizinhos e ao mesmo tempo remotos também
eles, por problemas e padrões de vida, do povo comum.
No lado oposto havia uma
sociedade que começava a emigrar dos campos para as cidades em busca de maior
liberdade das várias servidões. Esta parte da sociedade identificava a Igreja
com as classes dominantes das quais se sentia a necessidade de libertar-se.
Assim, se alinhavam de boa vontade com aqueles que a contradiziam e a
combatiam: hereges, grupos radicais e pauperísticos, enquanto simpatizavam com
o baixo clero, muitas vezes não com a altura espiritual dos prelados, porém
mais perto das pessoas.
Havia, portanto, fortes
tensões que cada um procurava explorar em proveito próprio. A hierarquia
procurava responder a estas tensões melhorando a própria organização e
reprimindo os abusos, tanto internamente (luta contra a simonia e concubinato
dos sacerdotes) quanto externamente na sociedade. Os grupos hostis procuravam,
pelo contrário, explodir as tensões, radicalizando o contraste com a hierarquia
dando origem a movimentos mais ou menos cismáticos. Todos brandiam contra a
Igreja o ideal da pobreza e simplicidade evangélica fazendo disso uma arma
polêmica, mais do que um ideal espiritual a ser vivido com humildade, chegando
a questionar também o ministério da Igreja, o sacerdócio e o papado.
Estamos acostumados a ver
Francisco como o homem providencial que capta essas demandas populares de
renovação, as purifica de toda carga polêmica e as traz de volta ou as atua na
Igreja em profunda comunhão e submissão a essa. Francisco, portanto, como uma
espécie de mediador entre os hereges rebeldes e a Igreja institucional. Em um
conhecido manual de História da Igreja é apresentada dessa forma a sua missão:
“Já que a riqueza e o poder da Igreja apareciam muitas vezes como uma fonte de graves males e os hereges do tempo a utilizavam como argumento para as principais acusações contra ela, em algumas almas piedosas surgiu o nobre desejo de restaurar a vida pobre de Jesus e da Igreja primitiva, para poder assim mais eficazmente influir sobre o povo com a palavra e o exemplo” [5].
Entre estas almas coloca-se
naturalmente em primeiro lugar, juntamente com São Domingos, Francisco de
Assis. O historiador protestante Paul Sabatier, embora tão benemérito dos
estudos franciscanos, tornou quase canônica entre os historiadores, e não só
entre aqueles leigos e protestantes, a tese segundo a qual o Cardeal Ugolino (o
futuro Papa Gregório IX) teria tido a intenção de captar Francisco para a Cúria,
domesticando a carga crítica e revolucionária do seu movimento. Na prática é a
tentativa de fazer de Francisco um precursor de Lutero, ou seja, um reformador
pela via de críticas, mais do que da santidade.
Não sei se esta intenção
possa ser atribuída a algum dos grandes protetores e amigos de Francisco.
Parece difícil atribuí-la ao Cardeal Ugolino e menos ainda a Inocêncio III,
conhecido pela ação reformadora e o apoio dado às várias formas novas de vida
espiritual surgidas em seu tempo, incluindo os Frades Menores, os Dominicanos,
os Humilhados Milaneses. Uma coisa, porém, é absolutamente certa: aquela
intenção nunca passou pela mente de Francisco. Ele nunca pensou ser chamado
para reformar a Igreja.
É preciso ter cuidado para
não tirar conclusões erradas das famosas palavras do Crucifixo de São Damião:
“Vai, Francisco e repara a minha igreja que, como vês, está em ruínas”. As
fontes mesmas nos asseguram que ele compreendeu aquelas palavras no sentido
bastante modesto de ter que reparar materialmente a igrejinha de São Damião.
Foram os discípulos e os biógrafos que interpretaram - e, é preciso dizer, não
sem razão - aquelas palavras como se referindo à Igreja instituição e não só à igreja
edifício. Ele permaneceu sempre na sua interpretação literal e de fato
continuou a reparar outras igrejinhas nos arredores de Assis que estavam em
ruínas.
Também o sonho em que
Inocêncio III teria visto o Poverello sustentar com as suas costas a igreja
do Latrão desmoronando não diz nada de mais. Supondo que o fato seja histórico
(um fato análogo também é narrado sobre São Domingos), o sonho foi do Papa, não
de Francisco! Ele nunca foi visto como o vemos hoje no afresco de Giotto. Isto
significa ser reformador pelo caminho da santidade: sê-lo, sem sabê-lo!
3. Francisco e o retorno ao
Evangelho
Se não quis ser um
reformador, o que quis ser e fazer Francisco? Também aqui temos a sorte de ter
o testemunho direto do Santo no seu Testamento:
“E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu deveria fazer; mas o mesmo Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho. E eu com poucas palavras e simplesmente o fiz escrever, e o senhor Papa o confirmou”.
Fala do momento no qual,
durante uma Missa, escutou a passagem do Evangelho onde Jesus envia os seus
discípulos dizendo: “Enviou-os a pregar o reino de Deus e a curar os enfermos.
E disse-lhes: ‘Nada leveis para o caminho, nem bastão, nem alforje, nem pão,
nem dinheiro; tampouco tenhais duas túnicas’” (Lc 9,2-3) [6]. Foi uma
revelação impressionante daquelas que orientam toda uma vida. Daquele dia em
diante foi clara a sua missão: um retorno simples e radical ao evangelho real,
aquele vivido e pregado por Jesus. Restaurar no mundo a forma e o estilo de
vida de Jesus e dos Apóstolos descrito nos Evangelhos. Escrevendo a Regra
para os seus frades começará assim: “A
regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de nosso
Senhor Jesus Cristo”.
Francisco não teorizou esta
sua descoberta, tornando-a o programa para a reforma da Igreja. Ele realizou em
si a reforma e assim indicou tacitamente à Igreja o único caminho para sair da
crise: reaproximar-se do Evangelho, reaproximar-se dos homens e especialmente
dos humildes e dos pobres.
Este retorno ao Evangelho
reflete-se em primeiro lugar na pregação de Francisco. É surpreendente, mas
todos notaram: o Poverello fala quase sempre de “fazer penitência”. A
partir de então, diz Celano, “com grande fervor e exultação, ele começou a
pregar a penitência, edificando todos com a simplicidade de suas palavras e a
generosidade de seu coração. Onde quer que fosse, Francisco dizia, recomendava,
suplicava que fizessem penitência” [7].
O que Francisco compreendia
com esta palavra que ele trazia tanto no coração? Neste sentido caímos (pelo
menos eu caí por muito tempo) em erro. Reduzimos a mensagem de Francisco a uma
simples exortação moral, a um bater-se no peito, angustiar-se e mortificar-se
para expiar os pecados, enquanto que tem toda a vastidão e o ar do Evangelho de
Cristo. Francisco não exortava a fazer “penitências”, mas fazer “penitência”
(no singular”!) que, veremos, é totalmente outra coisa.
Crucifixo de São Damião |
O Poverello, exceto
nos poucos casos que conhecemos, escrevia em latim. E o que encontramos no
texto latino, do Testamento, quando escreve: “O Senhor deu a mim, frade
Francisco, começar a fazer penitência”? Encontramos a expressão “paenitentiam
agere”. Sabe-se que ele amava
expressar-se com as mesmas palavras de Jesus. E esta palavra - “fazer
penitência” - é a palavra com a qual Jesus começou a pregar e que repetia em
cada cidade e aldeia onde ia:
“Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus: cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15).
A palavra que hoje se traduz
com “convertei-vos” ou “arrependei-vos”, no texto da Vulgata usado pelo Poverello,
soava “paenitemini” e nos Atos dos Apóstolos ainda
mais literalmente “poenitentiam
agite”, fazei
penitência (At 2,37). Francisco nada fez além de relançar o grande apelo
à conversão com o qual se abre a pregação de Jesus no Evangelho e aquela dos Apóstolos
no dia de Pentecostes. O que ele quis dizer com a palavra “conversão” não
precisa explicá-lo: sua vida, ele mostrou.
Francisco fez no seu tempo
aquilo que no tempo do Concílio Vaticano II tentou-se fazer com o lema “quebrar
as muralhas”: quebrar o isolamento da Igreja, trazê-la de novo para o contato
com o povo. Um dos fatores de escuridão do Evangelho era a transformação da
autoridade compreendida como serviço em autoridade compreendida como poder que
tinha produzido infinitos conflitos dentro e fora da Igreja. Francisco, por sua
vez, resolve o problema em senso evangélico. Na sua Ordem, novidade absoluta,
os superiores se chamarão “ministros”, ou seja, “servos”, e todos os outros se
chamarão “frades”, ou seja, “irmãos”.
Outro muro de separação
entre a Igreja e o povo era a ciência e a cultura da qual o clero e os monges
tinham o monopólio na prática. Francisco sabe disso e, portanto, assume a
posição drástica que sabemos sobre este ponto. Ele não é contrário à
ciência-conhecimento, mas à ciência-poder, aquela que favorece aqueles que
sabem ler sobre aqueles que não sabem ler e lhes permite comandar com altivez
ao irmão: “Traga-me o Breviário”. Durante o famoso Capítulo das Esteiras a
alguns dos seus irmãos que queriam empurrá-lo a adequar-se à atitude das
“ordens” cultas do tempo, respondeu com palavras de fogo que deixaram, lê-se,
os frades tomados de temor:
“Irmãos, meus irmãos, Deus me chamou para trilhar o caminho da simplicidade e o mostrou para mim. Não quero, portanto que me citem outras Regras, nem aquela de Santo Agostinho, nem aquela de São Bernardo ou de São Bento. O Senhor revelou-me ser sua vontade que eu fosse um idiota no mundo: esta é a ciência à qual Deus quer que nos dediquemos! Ele vos confundirá por meio da vossa mesma ciência e sabedoria” [8].
Sempre a mesma atitude
coerente. Ele quer para si e para os seus irmãos a mais rígida pobreza, mas na Regra,
exorta-os a “não desprezar e a não julgar os homens que vêm vestidos com
hábitos finos e coloridos e usar comida e bebida delicadas, mas sim cada um
julgue e despreze a si mesmo” [9]. Escolhe ser um iletrado mas não condena a
ciência. Uma vez assegurado que a ciência não extinga “o espírito da santa
oração e devoção”, será ele mesmo a permitir a frade Antônio de dedicar-se ao
ensino da teologia e São Boaventura não pensa que está traindo o espírito do Fundador
abrindo a Ordem aos estudos nas grandes universidades. Yves Congar vê nisso uma
das condições essenciais da “verdadeira reforma” na Igreja, ou seja, a reforma que
permanece tal e não se transforma em cisma: isto é, a capacidade de não
absolutizar a própria intuição, mas permanecer solidário com o todo que é a
Igreja [10]. A convicção, diz o Papa Francisco, na sua recente Exortação Apostólica Evangelii gaudium, de
que “o todo é superior à parte”.
4. Como imitar Francisco
O que diz a nós hoje a
experiência de Francisco? O que podemos imitar dele, todos e rápido? Seja
aqueles que Deus chama a reformar a Igreja pelo caminho da santidade, aqueles
que se sentem chamados a renová-la pelo caminho da crítica, ou aqueles que Ele
mesmo chama a reformá-la pelo caminho do cargo que ocupam? A mesma coisa
com a qual se começou a aventura espiritual de Francisco: a sua conversão do “eu”
a Deus, a sua negação de si. É assim que nascem os verdadeiros reformadores,
aqueles que mudam realmente algo na Igreja. Os mortos a si mesmos. Melhor,
aqueles que decidem seriamente morrer a si mesmos,
porque se trata de uma empresa que dura toda a vida e também além, se, como
dizia brincando Santa Teresa de Ávila, o nosso amor próprio morre vinte minutos
depois de nós.
Dizia um santo monge
ortodoxo, Silvano do Monte Athos: “Para ser verdadeiramente livres, é
necessário começar a prender a si mesmo”. Homens como estes são livres com a
liberdade do Espírito; nada os para e nada os espanta mais. Tornam-se
reformadores pelo caminho da santidade, e não somente pelo caminho do ofício.
Mas o que significa a
proposta de Jesus de negar-se a si mesmo? É ainda possível propô-la a um mundo
que fala somente de autorrealização, autoafirmação? A negação nunca é fim em si
mesmo, nem um ideal em si. A coisa mais importante é aquela positiva: Se queres seguir-me... É o seguir Cristo, possuir
Cristo. Dizer não a si mesmo é o meio; dizer sim a Cristo é o fim. Paulo a
apresenta como uma espécie de lei do espírito: “Se com a ajuda do Espírito
fazes morrer as obras da carne, vivereis” (Rm 8,13). Isso, como se pode
ver, é um morrer para viver; é o oposto da visão filosófica que diz que a vida
humana é “um viver para morrer” (Heidegger).
Trata-se de saber qual
fundamento queremos dar à nossa existência: se o nosso “eu” ou “Cristo”; na
linguagem de Paulo, se queremos viver “para nós mesmos”, ou “para o Senhor” (cf.
2Cor 5,15; Rm 14,7-8). Viver “para si mesmos” significa viver
para a própria comodidade, a própria glória, o próprio progresso; viver “para o
Senhor” significa recolocar sempre em primeiro lugar, nas nossas intenções, a
glória de Cristo, os interesses do Reino e da Igreja. Cada “não”, pequeno ou
grande, falado a si mesmo por amor, é um sim dito a Cristo.
Somente deve-se evitar a
ilusão. Não se trata de saber tudo sobre a negação cristã, sua beleza e
necessidade; trata-se de passar ao ato, de praticá-la. Um grande mestre do
espírito da Antiguidade dizia: “É possível despedaçar dez vezes a própria
vontade em um brevíssimo tempo; e vos digo como. A pessoa está passeando e vê
algo; o seu pensamento lhe diz: ‘Olha lá’, mas ele responde ao seu pensamento: ‘Não,
não olho’, e despedaça assim a própria vontade. Depois encontra outros que
estão falando mal de alguém e o seu pensamento lhe diz: ‘Fala também tu aquilo
que sabes’, e despedaça a sua vontade calando” [11].
Este antigo Padre traz, como
se vê, exemplos tirados todos da vida monástica. Mas eles podem ser atualizados
e adaptados facilmente para a vida de cada um, clérigos e leigos. Encontros, se
não com um leproso como Francisco, com um pobre que você sabe que vai lhe pedir
algo; o seu homem velho te empurra a passar do lado oposto do caminho, e você
pelo contrário, se faz violência e lhe vai ao encontro, talvez presenteando-lhe
somente com uma saudação e um sorriso, se não pode fazer outra coisa. Oferecem
a você a ocasião para um lucro ilícito: e você diz não e negou a si mesmo. Foi
contestado em uma ideia; toca o ponto sensível, gostaria de responder com
força, cala e espera: despedaçou o seu “eu”. Acredita ter sido passado pra
trás, um tratamento, ou um destino não adequado aos seus merecimentos: gostaria
de contar para todos, fechando-se em um silêncio cheio de tácita reprovação.
Diz não, quebra o silêncio, sorri e reabre o diálogo. Negou a si mesmo e salvou
a caridade. E assim por diante. Um sinal que prova uma boa luta contra o
próprio “eu” é a capacidade ou ao menos o esforço de alegrar-se pelo bem feito
ou a promoção recebida de outro, como se acontecesse consigo mesmo:
“Bem aventurado aquele servo - escreve Francisco em uma das suas Admoestações - que não se orgulha pelo bem que o Senhor diz e obra por meio dele, mas sim pelo bem que diz e obra por meio de outro”.
Uma meta difícil (eu não
falo certamente como quem já a alcançou!), mas a história de Francisco nos
mostra o que pode nascer de uma negação de si feita em resposta à graça. A meta
final é poder dizer com Paulo e com Ele: “Não mais eu que vivo, é Cristo que vive
em mim”. E haverá alegria e paz plenas, já sobre esta terra. Francisco, em sua
“perfeita alegria”, é um exemplo vivo da “alegria que vem do Evangelho,” da Evangelii gaudium!
Notas:
[1] Yves Congar, Vera e falsa riforma
nella Chiesa, Milano, Jaka Book, 1972, p. 194.
[2] Tomás de Celano, Vita Prima, VII, 17 (Fontes
Franciscanas [FF], n. 348).
[3] cf. idem, Vita Secunda, V, 9 (FF, n.
592)
[4] cf. idem, Vita prima, III, 7 (FF, n. 331).
[5] Bihhmeyer - Tuckle, II, p. 239.
[6] Lenda dos três companheiros VIII (FF, nn. 1431s).
[7] Fontes Franciscanas, nn. 358;
1436s; 1508.
[8] Legenda perugina 114 (FF, n. 1673).
[9] Regra Bulada, cap. II.
[10] Sobre as condições da verdadeira
reforma, cf. Congar, op. cit., pp. 177ss.
[11] Doroteu de Gaza, Obras espirituais, I, 20 (SCH
92, p.177).
Fonte: Zenit (Acesso em dezembro de 2013).
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