“Quando se completaram os oito dias... deram-lhe o nome
de Jesus” (Lc 2,21).
Assim como a Páscoa da Ressurreição, a Solenidade do Natal
do Senhor é enriquecida no Rito Romano com uma Oitava, isto é, com uma
celebração prolongada por oito dias, de 25 de dezembro a 01 de janeiro.
1. Simbolismo do número “oito” e origem da Oitava do
Natal
Na tradição cristã, o número oito é associado ao domingo, o “dia
do Senhor”, que é ao mesmo tempo o primeiro e o oitavo dia da semana, no qual tem lugar a nova criação iniciada na Ressurreição do
Senhor (cf. Mt 28,1 e paralelos) [1].
Assim, logo as grandes
festas passaram a ser enriquecidas com uma “oitava”, tanto como uma celebração prolongada por oito
dias quanto como um “eco” da festa apenas no oitavo dia (octava dies).
A primeira a ser celebrada foi a Oitava da Páscoa, já a
partir dos séculos III-IV, e que corresponde ao primeiro modelo: uma celebração
prolongada por oito dias, nos quais tinham lugar as “catequeses mistagógicas”
aos neófitos (aqueles que haviam recebido os sacramentos da Iniciação Cristã na
Vigília Pascal).
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a Oitava da Páscoa.
Também no século IV se celebrava no Oriente a Oitava
da Epifania, de 06 a 13 de janeiro. Vale lembrar que nessa época a Epifania
celebrava tanto o nascimento do Senhor quanto sua manifestação aos povos.
A partir do século V, porém, as Igrejas do Oriente acolheram
a celebração ocidental do nascimento do Senhor no dia 25 de dezembro e as
Igrejas do Ocidente acolheram a festa da Epifania a 06 de janeiro.
Para saber mais, confira nossas postagens sobre a história da Solenidade do Natal do Senhor e sobre a história da Solenidade da Epifania.
A peregrina Etéria (ou Egéria), que visitou a Terra Santa em
meados do século IV, testemunha a celebração da Oitava da Epifania tanto em Jerusalém
como em Belém: “Durante oito dias, celebra-se com todo este júbilo e esplendor...
Em Belém, durante toda esta oitava, todos os dias há este esplendor e esta
festa...” [2].
Em Roma, após a proclamação do dogma da Maternidade
Divina de Maria no Concílio de Éfeso (431), o oitavo dia após o Natal passou
a ser celebrado como festa em honra da Santa Mãe de Deus.
Vemos aqui a influência das “festas associadas” ou “festas decorrentes”
da tradição oriental: após a celebração de um evento da história da salvação recordam-se
os personagens que participaram dele [3]. No Rito Bizantino, por exemplo, se celebra a “Sinaxe
da Mãe de Deus” em 26 de dezembro, no dia seguinte ao Natal.
Note-se que não temos aqui uma oitava como celebração
prolongada por oito dias, como na Páscoa, mas apenas dois dias de festa: o
primeiro (25 de dezembro) e o oitavo (01 de janeiro).
No final do século VII, porém, quando o Papa Sérgio I
(†701), de origem síria, popularizou diversas celebrações orientais em Roma, incluindo
várias festas marianas [4], a celebração da Mãe de Deus a 01 de janeiro perdeu
importância, passando a ser simplesmente a “Oitava do Natal” (In Octava
Nativitatis Domini).
Vitral em honra da Mãe de Deus (Mater Dei) |
Posteriormente, entre os séculos XIII e XIV, Roma acolheria
a Festa da Circuncisão do Senhor no dia 01 de janeiro.
Esta tem sua origem na Espanha, em meados do século VI, quando começa a
organizar-se o Rito Hispano-Mozárabe a partir da cidade de Toledo.
Uma vez que nesse Rito a Festa da Mãe de Deus é celebrada no
dia 18 de dezembro, oito dias antes do Natal, no dia 01 de janeiro, em
consonância com o Evangelho (Lc 2,21), foi instituída a Festa da
Circuncisão do Senhor (In Circuncisione Domini).
Para saber mais, confira nossas postagens sobre a história da Solenidade da Santa Mãe de Deus e sobre a história da Festa da Circuncisão do Senhor.
2. Os santos da Oitava do Natal, “companheiros de Cristo”
Em Jerusalém e Constantinopla, entre os séculos
IV-V (antes da acolhida da celebração do Natal no dia 25 de
dezembro, quando ainda se celebrava o nascimento do Senhor na Epifania, a 06 de
janeiro), os últimos dias do mês de dezembro eram dedicados à celebração de alguns
santos:
25 de dezembro: Rei Davi e São Tiago, o “irmão do Senhor”
26 de dezembro: Santo Estêvão
27 de dezembro: São Pedro e São Paulo
28 de dezembro: São Tiago Maior e São João Evangelista
Rupert Berger em seu Dicionário de Liturgia Pastoral
(pp. 165-166) propõe uma interessante tese para a origem dessas festas: no mês
de dezembro os judeus celebram a festa de Hannukah, em honra da Dedicação
do Templo de Jerusalém em 164 a. C., no contexto da revolta dos Macabeus [5].
Após a destruição do Templo no ano 70, os judeus passaram a
celebrar a festa em Hebron, onde, segundo a tradição, encontram-se os túmulos
dos patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó e suas esposas, exceto Raquel, que estaria
sepultada em Belém).
A celebração dos Apóstolos e de outros santos importantes
nos últimos dias de dezembro pelos cristãos, portanto, seria um paralelo a essa
memória dos Patriarcas celebrada pelos judeus.
Essa tradição foi paulatinamente acolhida pelas Igrejas
Orientais, mesclando-se com outros costumes. Por exemplo, a festa de São Pedro e São Paulo logo foi transferida para a data romana de 29 de junho. Também São
Tiago Maior passou a ser celebrado em outras datas (25 de julho no Rito Romano,
30 de abril no Rito Bizantino).
São João Evangelista, por sua vez, é celebrado no Rito
Bizantino em duas datas: 08 de maio e 26 de setembro. No Rito Romano, porém,
conservou-se sua festa em dezembro, transferida posteriormente para o dia 27,
como veremos adiante.
O Rito Bizantino conservou nos últimos dias de dezembro a festa
de Santo Estêvão, transferida para o dia 27 de dezembro (dando lugar à Sinaxe
da Mãe de Deus no dia 26), e dos Santos Davi e Tiago, o “irmão do Senhor”, que
após a acolhida da festa do Natal no dia 25 de dezembro passaram a ser
celebrados no domingo após o Natal, junto com São José.
Vitral representando a Natividade com os santos da Oitava: Santo Estêvão, Santos Inocentes e São João |
Entre os séculos VI e VII essas celebrações dos santos
passaram às Igrejas do Ocidente (norte da África, Roma, França), mesclando-se
com tradições locais, incluindo a Festa dos Santos Inocentes, isto é, as
crianças martirizadas por Herodes após o nascimento de Jesus (cf. Mt 2,16-18),
uma “festa associada” ou “festa decorrente” ligada ao Natal.
Posteriormente essa Festa dos Santos Inocentes também seria
acolhida no Rito Bizantino, sendo celebrada no dia 29 de dezembro, uma vez que
no dia 28 se celebram os Mártires de Nicomédia, mortos durante a perseguição do
Imperador Diocleciano no início do século IV.
No Rito Romano, a ordem dessas três celebrações foi
fixada da seguinte forma:
26 de dezembro: Santo Estêvão, Diácono e
Protomártir
27 de dezembro: São João, Apóstolo e
Evangelista
28 de dezembro: Santos Inocentes, Mártires
Como podemos ver, diferentemente da comemoração dos Santos
Inocentes, as celebrações de Santo Estêvão e São João não são “festas
associadas” ao Natal, surgindo a partir de uma tradição distinta.
Não obstante, sobretudo no final da Idade Média, os teólogos
buscaram associar essas três festas hagiológicas ao Natal, identificando esses
santos como “comites Christi” (companheiros de Cristo) ou “comites
Sponsi” (companheiros do Esposo).
O Bispo francês Guilherme Durando (†1296), por exemplo, propôs em sua obra Rationale
divinorum officiorum uma associação desses santos a três formas de
martírio: voluntário e real (Estêvão); voluntário, mas não real (João); real,
mas não voluntário (Santos Inocentes).
Essa espécie de “tríduo” após o Natal traçava um paralelo
com uma espécie de “tríduo” que se celebrava a partir do século IX após a
Páscoa, nos primeiros três da Oitava. Dada sua riqueza litúrgica, porém, essas
três festas merecem ser tratadas mais detalhadamente em postagens futuras.
As festas de 26 a 28 de dezembro, com efeito, logo
foram enriquecidas com vários textos próprios: orações, hinos, sequências...
Além disso, possuíam precedência inclusive sobre o Domingo dentro da Oitava do
Natal.
Ou seja, quando o dia 26, 27 ou 28 caía no domingo,
celebrava-se a festa do respectivo santo. Os textos da Missa do domingo eram
então recitados no dia 30 de dezembro.
Nos outros dias da Oitava, por sua vez, celebravam-se as
memórias de São Thomas Becket, Bispo e Mártir (29 de dezembro), e São Silvestre
I, Papa (31 de dezembro), com alguns textos próprios e outros retomados do
Natal.
3. A Oitava do Natal hoje
Durante o final da Idade Média houve uma “proliferação” de
oitavas nas celebrações do Senhor, da Virgem Maria e dos santos. Essas seriam em
sua maioria suprimidas pelo Papa Pio XII (†1958), decisão confirmada pela reforma
litúrgica do Concílio Vaticano II (1962-1965).
O novo calendário litúrgico, com efeito, conservou apenas
as Oitavas da Páscoa e do Natal. A Oitava da Páscoa é mais solene, tendo
precedência sobre todas as Solenidades e Festas. Nos dias de semana da Oitava
do Natal, em contrapartida, é possível celebrar as memórias dos santos ou mesmo
Missas para diversas necessidades e votivas, se houver verdadeira razão pastoral (cf. Instrução
Geral do Missal Romano, 3ª edição, n. 306).
No dia 01 de janeiro, conclusão da Oitava, foi suprimida a
Festa da Circuncisão do Senhor, resgatando-se a celebração mais antiga da Solenidade
de Santa Maria, Mãe de Deus. Não obstante, a Circuncisão e a imposição do Nome
de Jesus são recordadas em alguns textos desse dia, como no Evangelho (Lc
2,16-21).
As celebrações de Santo Estêvão, São João e dos Santos
Inocentes foram conservadas nos dias 26 a 28 de dezembro, com o grau de Festa. Contudo,
não possuem mais a precedência sobre o domingo.
No Domingo dentro da Oitava do Natal, pois, se celebra
atualmente a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José. Esta celebração
de caráter devocional foi instituída no início do século XX, sendo celebrada
até então no domingo após a Epifania (o qual acolheu a Festa do Batismo do Senhor).
Quando o dia 25 de dezembro cai em um domingo, por sua vez,
a Festa da Sagrada Família é celebrada no dia 30 de dezembro.
Com a reforma litúrgica, os dias 29, 30 e 31 foram enriquecidos
com textos próprios, permanecendo a possibilidade de celebrar as Memórias facultativas
de São Thomas Becket e de São Silvestre nos dias 29 e 31. A partir do pôr-do-sol
do dia 31 de dezembro, porém, celebra-se já a Solenidade da Santa Mãe de Deus
(I Vésperas).
Quanto às leituras, além das Solenidades e Festas com textos
próprios em composição harmônica, no dia 29 de dezembro começa a leitura semicontínua
da 1ª Carta de João, enquanto o Evangelho traz alguns relatos da
infância do Senhor (cf. Elenco das Leituras da Missa, nn. 95-96).
Além disso, retomam-se vários textos do Tempo do Natal,
tanto na Missa como na Liturgia das Horas (Prefácios, hinos...).
“Ó Deus invisível e todo-poderoso, que dissipastes as trevas do mundo com a vinda da vossa luz, volvei para nós o vosso olhar, a fim de que proclamemos dignamente a maravilhosa natividade de vosso Filho Unigênito. Que convosco vive e reina, na unidade do Espírito Santo. Amém”
(Coleta de 29 de dezembro, 5º dia na Oitava do Natal - Missal Romano, 2ª edição, p. 156).
Notas:
[1] Sobre o simbolismo bíblico e teológico do número “oito”,
confira:
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e
sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, p. 345.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos.
São Paulo: Paulus, 1993, pp. 160-162.
Em relação ao domingo como “oitavo dia” confira o n. 106 da Constituição
Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II e a Carta Apostólica Dies
Domini do Papa São João Paulo II, particularmente os nn. 23-26.
[2] ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem (Itinerarium
ad loca sancta), nn. 11-12. in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia
Litúrgica: Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio.
Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 450.
[3] cf. BERGER, Rupert. Festa associada. in:
Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões
referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 165-166.
[4] Dentre as festas popularizadas pelo Papa Sérgio I estão a
Apresentação do Senhor (02 de fevereiro), a Anunciação (25 de março), a Dormição-Assunção de Maria (15 de agosto), a Natividade de Maria (08 de setembro) e a Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro).
[5] cf. DI SANTE, Carmine. Liturgia judaica:
fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 242-244.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu
significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 100-105.
BERGER, Rupert. Oitava. in: Dicionário de Liturgia
Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia.
São Paulo: Loyola, 2010, pp. 272-273.
RIGHETTI,
Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico;
El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 703-715.
Imagens: Wikimedia Commons.
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