Confira a seguir a Homilia proferida pelo Papa Bento XVI (†2022) na Solenidade do Natal do Senhor de 2011. Em sua reflexão o Pontífice recorda a iniciativa do “presépio de Greccio” realizada por São Francisco de Assis na Noite de Natal de 1223, que completa 800 anos neste 2023.
Solenidade do Natal do Senhor - Missa da Noite
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica Vaticana
Sábado, 24 de dezembro de 2011
Amados irmãos e irmãs!
A leitura que
ouvimos, tirada da Carta do Apóstolo São Paulo a Tito, começa
solenemente com a palavra «apparuit»,
que encontramos de novo na leitura da Missa da Aurora: «apparuit - manifestou-se». Esta é uma palavra programática,
escolhida pela Igreja para exprimir, resumidamente, a essência do Natal. Antes,
os homens tinham falado e criado imagens humanas de Deus, das mais variadas
formas; o próprio Deus falara de diversos modos aos homens (cf. Hb 1,1; leitura da Missa do Dia). Agora,
porém, aconteceu algo mais: Ele manifestou-Se, mostrou-Se, saiu da luz
inacessível em que habita. Ele, em pessoa, veio para o meio de nós. Na Igreja
antiga, esta era a grande alegria do Natal: Deus manifestou-Se. Já não é apenas
uma ideia, nem algo que se há de intuir a partir das palavras. Ele
«manifestou-Se». Mas agora perguntamo-nos: Como Se manifestou? Ele
verdadeiramente quem é? A este respeito, diz a leitura da Missa da Aurora:
«Manifestou-se a bondade de Deus... e o seu amor pelos homens» (Tt 3,4). Para os homens do tempo
pré-cristão - que, vendo os horrores e as contradições do mundo, temiam que o
próprio Deus não fosse totalmente bom, mas pudesse, sem dúvida, ser também
cruel e arbitrário -, esta era uma verdadeira «epifania», a grande luz que se
nos manifestou: Deus é pura bondade. Ainda hoje há pessoas que, não conseguindo
reconhecer a Deus na fé, se interrogam se a Força última que segura e sustenta
o mundo seja verdadeiramente boa, ou então se o mal não seja tão poderoso e
primordial como o bem e a beleza que, por breves instantes luminosos, se nos
deparam no nosso cosmos. «Manifestou-se a bondade de Deus... e o seu amor pelos
homens»: eis a certeza nova e consoladora que nos é dada no Natal.
O Papa Bento XVI junto à imagem do Menino Jesus |
Na primeira das
três leituras desta Missa de Natal, a Liturgia cita um texto tirado do Livro
do Profeta Isaías, que descreve, de forma ainda mais concreta, a epifania
que se verificou no Natal: «Nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; ele
traz aos ombros a marca da realeza; o nome que lhe foi dado é: Conselheiro
admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros, Príncipe da Paz. Grande será o
seu reino e a paz não há de ter fim...» (Is
9,5-6). Não sabemos se o profeta, ao falar assim, tinha em mente um menino
concreto nascido no seu período histórico. Mas isso parece ser impossível.
Trata-se do único texto no Antigo Testamento, onde de um menino, de um ser
humano, se diz: o seu nome será “Deus forte”, “Pai para sempre”. Estamos
perante uma visão que se estende muito para além daquele momento histórico,
apontando para algo misterioso, colocado no futuro. Um menino, em toda a sua
fragilidade, é Deus forte; um menino, em toda a sua indigência e dependência, é
Pai para sempre. E isto em uma «paz sem fim». Antes, o profeta falara de uma
espécie de «grande luz» e, a propósito da paz emanada d’Ele, afirmara que o
bastão do opressor, o calçado ruidoso da guerra, toda a veste manchada de sangue,
seriam lançados ao fogo (cf. Is
9,1.3-4).
Deus
manifestou-Se... como menino. É precisamente assim que Ele Se contrapõe a toda
a violência e traz uma mensagem de paz. Neste tempo, em que o mundo está
continuamente ameaçado pela violência em tantos lugares e de muitos modos, em
que não cessam de reaparecer bastões do opressor e vestes manchadas de sangue,
clamamos ao Senhor: Vós, o Deus forte, Vos manifestastes como menino e Vos mostrastes
a nós como Aquele que nos ama e por meio de quem o amor há de triunfar. Fizestes-nos
compreender que, unidos convosco, devemos ser artífices de paz. Amamos o
vosso ser menino, a vossa não-violência, mas sofremos pelo fato de perdurar no
mundo a violência, levando-nos a rezar assim: Demonstrai a vossa força, ó Deus.
Fazei que, neste nosso tempo e neste nosso mundo, sejam queimados os bastões do
opressor, as vestes manchadas de sangue e o calçado ruidoso da guerra, de tal
modo que a vossa paz triunfe neste nosso mundo.
Natal é
epifania: a manifestação de Deus e da sua grande luz em um menino que nasceu
para nós. Nascido no estábulo de Belém, não nos palácios do rei. Em 1223,
quando Francisco de Assis celebrou em Greccio o Natal com um boi, um jumento e
uma manjedoura cheia de feno, tornou-se visível uma nova dimensão do mistério
do Natal. Francisco de Assis designou o Natal como «a festa das festas» - mais
do que todas as outras solenidades - e celebrou-a com «solicitude inefável» (2
Celano, 199; Fontes Franciscanas,
787). Beijava, com grande devoção, as imagens do menino e balbuciava palavras
de ternura como se faz com os meninos - refere Tomás de Celano (ibid.). Para a Igreja antiga, a festa
das festas era a Páscoa: na Ressurreição, Cristo arrombara as portas da morte,
e assim mudara radicalmente o mundo: criara para o homem um lugar no próprio
Deus. Pois bem! Francisco não mudou, nem quis mudar, esta hierarquia objetiva
das festas, a estrutura interior da fé com o seu centro no Mistério Pascal.
Mas, graças a Francisco e ao seu modo de crer, aconteceu algo de novo: ele
descobriu, em uma profundidade totalmente nova, a humanidade de Jesus. Este fato
de Deus ser homem resultou-lhe evidente ao máximo, no momento em que o Filho de
Deus, nascido da Virgem Maria, foi envolvido em panos e colocado em uma
manjedoura. A Ressurreição pressupõe a Encarnação. O Filho de Deus visto como
menino, como verdadeiro filho de homem: isto tocou profundamente o coração do
Santo de Assis, transformando a fé em amor. «Manifestou-se a bondade de Deus...
e o seu amor pelos homens»: esta frase de São Paulo adquiria assim uma
profundidade totalmente nova. No menino do estábulo de Belém, pode-se, por
assim dizer, tocar Deus e acariciá-Lo. E o Ano Litúrgico ganhou assim um
segundo centro em uma festa que é, antes de tudo, uma festa do coração.
Tudo isto não tem
nada de sentimentalismo. É precisamente na nova experiência da realidade da
humanidade de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava
Jesus menino, porque, neste ser menino, tornou-se clara a humildade de Deus.
Deus tornou-Se pobre. O seu Filho nasceu na pobreza do estábulo. No menino
Jesus, Deus fez-Se dependente, necessitado do amor de pessoas humanas, reduzido
à condição de pedir o seu, o nosso, amor. Hoje, o Natal tornou-se uma festa dos
negócios, cujo fulgor ofuscante esconde o mistério da humildade de Deus, que
nos convida à humildade e à simplicidade. Peçamos ao Senhor que nos ajude a
alongar o olhar para além das fachadas lampejantes deste tempo a fim de
podermos encontrar o menino no estábulo de Belém e, assim, descobrimos a autêntica
alegria e a verdadeira luz.
Francisco fazia
celebrar a santíssima Eucaristia sobre a manjedoura que estava colocada entre o
boi e o jumento (cf. 1 Celano,
85: Fontes, 469). Depois, sobre esta
manjedoura, construiu-se um altar para que, «onde outrora os animais comeram o
feno, os homens pudessem agora receber, para a salvação da alma e do corpo, a
carne do Cordeiro imaculado», Jesus Cristo, como narra Celano (cf. 1 Celano, 87: Fontes, 471). Na Noite Santa de Greccio, Francisco - como diácono
que era - cantara, pessoalmente e com voz sonora, o Evangelho do Natal. E toda
a celebração parecia uma exultação contínua de alegria, graças aos magníficos
cânticos natalícios dos Frades (cf. 1
Celano, 85-86: Fontes, 469-470).
Era precisamente o encontro com a humildade de Deus que se transformava em
júbilo: a sua bondade gera a verdadeira festa.
Hoje, quem entra
na igreja da Natividade de Jesus em Belém dá-se conta de que o portal de
outrora com cinco metros e meio de altura, por onde entravam no edifício os
imperadores e os califas, foi em grande parte tapado, tendo ficado apenas uma
entrada com um metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito com a
intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assaltos, mas sobretudo
para evitar que se entrasse a cavalo na casa de Deus. Quem deseja entrar no
lugar do Nascimento de Jesus deve inclinar-se. Parece-me que nisto se encerra
uma verdade mais profunda, pela qual queremos nos deixar tocar nesta Noite Santa:
se quisermos encontrar Deus manifestado como menino, então devemos descer do
cavalo da nossa razão «iluminada». Devemos depor as nossas falsas certezas, a
nossa soberba intelectual, que nos impede de perceber a proximidade de Deus.
Devemos seguir o caminho interior de São Francisco: o caminho rumo àquela extrema
simplicidade exterior e interior que torna o coração capaz de ver. Devemos
inclinar-nos, caminhar espiritualmente por assim dizer a pé, para podermos
entrar pelo portal da fé e encontrar o Deus que é diverso dos nossos
preconceitos e das nossas opiniões: o Deus que Se esconde na humildade de um
menino recém-nascido. Celebremos assim a Liturgia desta Noite Santa,
renunciando a fixarmo-nos no que é material, mensurável e palpável. Deixemo-nos
fazer simples por aquele Deus que Se manifesta ao coração que se tornou
simples. E nesta hora rezemos também e sobretudo por todos aqueles que são
obrigados a viver o Natal na pobreza, no sofrimento, na condição de migrantes,
pedindo que se lhes manifeste a bondade de Deus no seu esplendor, que nos toque
a todos, a eles e a nós, aquela bondade que Deus quis, com o Nascimento de seu
Filho no estábulo, trazer ao mundo. Amém.
Bento XVI na Missa da Noite de Natal 24 de dezembro de 2011 |
Fonte: Santa Sé.
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