“Vós fostes integrados no edifício que tem como fundamento os Apóstolos e os Profetas, e o próprio Jesus Cristo como pedra principal” (Ef 2,20).
Nas postagens anteriores da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura começamos a analisar as “Cartas do
cativeiro” atribuídas a São Paulo, com importantes reflexões sobre Cristo e a
Igreja.
Após a análise das Cartas aos Filipenses e aos Colossenses,
concluiremos esse “bloco” com a Carta
aos Efésios (Ef), Πρὸς Ἐφεσίους.
1. Breve introdução à
Carta aos Efésios
Após uma breve passagem por Éfeso (na atual Turquia) no
final da sua “segunda viagem missionária” (At 18,19-21), o Apóstolo
Paulo visitou novamente a cidade na sua “terceira viagem” (At 19),
permanecendo por um longo período, talvez como prisioneiro por um tempo (Ef
3,1; 4,1; 6,20).
A grande maioria dos estudiosos considera a Carta aos Efésios “dêutero-paulina”,
isto é, escrita por um discípulo do Apóstolo, devido às diferenças de linguagem
e de teologia em relação às Cartas proto-paulinas. Efésios é a
maior das Cartas dêutero-paulinas,
com seis capítulos.
O autor de Efésios baseia-se amplamente em Colossenses, de modo que se discute se as duas Cartas têm o mesmo
autor ou se são autores distintos. De toda forma, Efésios teria sido
escrita provavelmente entre os anos 80 e 90 do século I.
Embora use boa parte do material de Colossenses, a Carta possui textos próprios, como a “ação de
graças” em estilo hínico (Ef 1,3-14) e parte
da seção parenética (Ef 4,1-14). Além disso, o problema do “falso
ensinamento” de Cl 2 não aparece aqui.
Não obstante, a estrutura de Efésios é a mesma, com uma
seção teológica (doutrinal) e uma seção parenética (exortativa) “emolduradas”
por uma introdução e uma conclusão:
a) Ef 1,1-23: Introdução, com a saudação (vv. 1-2) e
a ação de graças (vv. 3-23);
b) Ef 2,1–3,20: Seção teológica;
c) Ef 4,1–6,20: Seção parenética;
d) Ef 6,21-24: Conclusão.
Assim como Filipenses
e Colossenses, Efésios contém
um “hino cristológico”, embora alguns estudiosos não o considerem como tal,
preferindo falar de “ação de graças” em estilo hínico.
Em sua forma a composição possui elementos da tradição
judaica, embora seu conteúdo seja autenticamente cristão. Podemos dividi-la em
três estrofes, conforme as três Pessoas Divinas: nossa eleição por Deus Pai
(vv. 3-6), a redenção operada por Cristo (vv. 7-12) e a obra do Espírito Santo
(vv. 13-14). Cada uma das três estrofes conclui-se com um refrão: “Para louvor
da sua glória” (vv. 6.12.14).
Outra divisão do cântico é conforme as seis bênçãos
mencionadas após o v. 3, que serve de introdução: a eleição (v. 4), a adoção
filial (vv. 5-6), a redenção (vv. 7-8), a revelação (vv. 9-10), novamente a
eleição (vv. 11-12) e, por fim, os dons da Palavra de Deus e do Espírito Santo,
aos quais respondemos com a fé (vv. 13-14).
Esse hino serve, com efeito, de “resumo” da Carta. Sua seção teológica está centrada
na obra de Cristo já delineada no hino: a salvação, a unificação de judeus e
gentios em um só povo (a Igreja) e a revelação do mistério de Deus (Ef
2,1–3,13), concluindo com uma “oração” (Ef 3,14-21).
Na seção parenética esses temas são retomados: o autor
exorta à unidade, a colocar os próprios dons a serviço da Igreja (Ef
4,1-16) e a andar como “filhos da luz”, abandonando as “obras das trevas” (Ef
4,17–5,20), retomando a célebre metáfora dos “dois caminhos”. Por fim, conclui
com um “código doméstico” (Ef 5,21–6,9), como em Colossenses, e uma exortação à oração (Ef 6,10-20).
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
da Carta aos Efésios: Composição
harmônica
Como todos os livros estudados nesta série, analisaremos a
leitura litúrgica da Carta aos Efésios a partir dos dois critérios de
seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura
semicontínua [1].
Iniciamos com o critério da composição harmônica:
a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração Eucarística
Antes ainda de considerarmos as leituras em composição
harmônica, vale destacar um versículo da conclusão da Carta proposto como
uma das opções de saudação inicial na Missa: “A vós, irmãos, paz e fé
da parte de Deus, o Pai, e do Senhor Jesus Cristo” (Ef 6,23) [2].
Seguindo o ciclo do Ano
Litúrgico, identificamos primeiramente duas leituras de Efésios no Tempo do Natal:
- II Domingo após o
Natal: Ef 1,3-6.15-18 [3]. No Brasil este domingo é substituído pela
Solenidade da Epifania do Senhor, transferida do dia 06 de janeiro. Aqui se lê
a primeira estrofe do “hino”, que celebra nossa eleição por Deus (vv. 3-6), e a
invocação do “espírito de sabedoria”
que nos leva a conhecê-lo (vv. 15-18).
- Solenidade da Epifania do Senhor (06 de janeiro, no
Brasil transferida para o domingo entre 02 e 08 de janeiro): Ef 3,2-3a.5-6 [4], atestando
que Deus revelou o seu mistério, isto é, manifestou-se (epifania em grego significa “manifestação”), e destacando a
acolhida dos pagãos como “membros do mesmo corpo”, representados nesta Solenidade
pelos “magos do Oriente” (cf. Mt 2,1-12).
Nas terças-feiras do Tempo do Natal, por sua vez, a antífona
da Comunhão é composta por dois versículos de Efésios e Romanos,
celebrando a Encarnação como fruto do amor do Pai: “Pela grande caridade com
que nos amou, Deus nos mandou o seu Filho, numa carne semelhante à do pecado”
(Ef 2,4; Rm 8,3) [5].
Na sequência há duas leituras de Efésios nos domingos do Tempo da Quaresma, nos quais “as leituras do Apóstolo foram escolhidas de tal
forma que tenham relação com as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento” (ELM,
n. 97) [6]:
- IV Domingo da Quaresma (Ano A): Ef 5,8-14 [7], com a exortação a viver “como
filhos da luz”. O tema da luz, com efeito, é retomado no Evangelho do dia com a
cura do cego de nascença (Jo 9,1-41).
A “iluminação” também é lida aqui em chave batismal, uma vez
que neste domingo se celebra o II Escrutínio
em preparação para os sacramentos da Iniciação Cristã [8]. A leitura, com
efeito, contém um “refrão” que poderia ter origem na Liturgia batismal da
Igreja primitiva: “Desperta, tu que
dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá” (Ef
5,14).
- IV Domingo da Quaresma (Ano B): Ef 2,4-10 [9], sobre a salvação realizada por Cristo, sobre a qual o próprio Jesus fala no Evangelho (Jo 3,14-21), em seu diálogo com Nicodemos: “Deus não enviou seu Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (v. 17).
Na sexta-feira da IV semana da Quaresma, por sua vez, a Igreja propõe como antífona da Comunhão um versículo do “hino” que canta a nossa redenção pelo sacrifício de Cristo: “Temos a redenção em Cristo pelo seu sangue e, pela riqueza de sua graça, o perdão dos pecados” (Ef 1,7) [10].
Seguimos nosso percurso com o Tempo Pascal, no qual ocorrem duas leituras em composição harmônica
da Carta, mais especificamente na Solenidade da Ascensão do Senhor, celebrada na quinta-feira da VI semana,
quarenta dias após a Ressurreição (no Brasil, transferida para o domingo
seguinte).
A 2ª leitura própria da Solenidade no Ano A
(que pode ser lida à escolha nos Anos B e C) é Ef 1,17-23 [11]. Aqui,
após invocar a “sabedoria” sobre seus leitores, o autor atesta que Deus “manifestou sua força em Cristo, quando o
ressuscitou dos mortos e o fez sentar-se à sua direita nos céus” (v. 20).
No Ano B pode ser proclamada como 2ª leitura à
escolha a perícope de Ef 4,1-13 [12], dando uma interpretação
eclesiológica ao mistério da Ascensão, com a exortação a alcançar “a estatura de Cristo em sua plenitude”
(v. 13).
No Tempo Comum, por fim, embora como “eco” do Tempo
Pascal, na sexta-feira da III semana após o Pentecostes a Igreja de Rito
Romano celebra a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, que no Ano B tem como 2ª leitura o texto de Ef
3,8-12.14-19 [13], com o desejo de que Deus, em seu infinito amor, “faça habitar Cristo em nossos corações”
(v. 17).
Após o ciclo do Ano Litúrgico, seguimos nosso percurso com o
Próprio dos Santos, com os textos para
as principais celebrações da Virgem Maria e dos Santos. Aqui identificamos três
leituras do nosso livro:
- Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria (08 de dezembro): Ef
1,3-6.11-12 [14], com duas bênçãos do “hino”, ambas dedicadas à “eleição”. Esta
Solenidade, com efeito, celebra a eleição de Maria desde sua concepção para ser
a Mãe do Salvador, enriquecida com a plenitude da graça de Deus “em previsão
dos méritos de Cristo”.
- Festa de São Tomé,
Apóstolo (03 de julho): Ef 2,19-22 [15], sobre a Igreja como “edifício que tem como fundamento os
Apóstolos” (v. 10). A mesma leitura
é indicada para a Festa de São Simão e
São Judas, Apóstolos (28 de outubro) e para a Missa votiva de Todos os
Santos Apóstolos [16].
- Festa de São Mateus,
Apóstolo e Evangelista (21 de setembro): Ef 4,1-7.11-13 [17], sobre
os diversos ministérios na Igreja: Cristo “instituiu
alguns como apóstolos, outros como profetas, outros ainda como evangelistas...”
(v. 11).
Do Próprio passamos aos Comuns dos Santos, formulários com várias opções de leituras ad libitum (à escolha) para cada
“categoria” de santos:
- Comum da dedicação
de uma igreja: Ef 2,19-22 [18], como nas Festas de São Tomé e de São
Simão e São Judas, com a imagem da Igreja enquanto edifício que tem como
fundamento os Apóstolos e “o próprio
Jesus Cristo como pedra principal” (v. 20).
- Comum de Nossa
Senhora: Ef 1,3-6.11-12 [19], como na Solenidade da Imaculada
Conceição, destacando a “eleição” de Maria.
- Comum dos Pastores:
Ef 4,1-7.11-13 [20], como na Festa de São Mateus, sobre os diversos
ministérios na Igreja, destacando-se aqui os “pastores e mestres” (v. 11).
- Comum dos Doutores
da Igreja: Para este Comum são
sugeridas duas leituras de Efésios: Ef
4,1-7.11-13, como no Comum dos Pastores, e Ef 3,8-12 [21], destacando o
anúncio da Palavra, pelo qual conhecemos “a
multiforme sabedoria de Deus” (v. 10).
- Comum dos Santos:
Também aqui são sugeridos dois textos: Ef 3,14-19, com a exortação a
estarmos “enraizados no amor”, e Ef 6,10-13.18, a exortação a “revestir-se da armadura de Deus”, isto
é, das virtudes [22].
Cristo, pedra angular, e os Apóstolos, colunas da Igreja |
Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a
leitura da Carta aos Efésios nas
celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na segunda parte continuaremos
analisando sua leitura em composição harmônica nas Missas para
diversas necessidades e votivas.
Breve bibliografia sobre a Carta aos Efésios:
BOSCH, Jordi Sánchez. Carta
aos Colossenses e Carta aos Efésios. in:
Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo:
Ave Maria, 2008, pp. 351-387. Coleção: Introdução
ao Estudo da Bíblia, vol. 7.
BROWN, Raymond. Epístola
(carta) aos Efésios. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed.
São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 813-834.
DETTWILER, Andreas. A epístola
aos Efésios. in: MARGUERAT,
Daniel [org.]. Novo Testamento: História,
escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 357-375.
FABRIS, Rinaldo. Carta
aos Efésios: Introdução. in: As Cartas de Paulo III: Tradução e comentários.
São Paulo: Loyola, 1992, pp. 129-207. Coleção: Bíblica Loyola, vol. 6.
KOBELSKI,
Paul Joseph. Carta aos Efésios. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph
A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos.
São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 617-631.
RODRÍGUEZ, Gabriel Pérez. Carta aos Efésios. in:
OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao
Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 517-533.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 390.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1994.
[4] ibid.
[5] MISSAL
ROMANO, p. 169.
[6] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 97.
[7] LECIONÁRIO
I, op. cit.
[8] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição
típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 216.
[9] LECIONÁRIO
I, op. cit.
[10] MISSAL ROMANO, p. 210.
[11] LECIONÁRIO
I, op. cit.
[12] ibid.
[13] ibid.
[14] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e
Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[15] ibid.
[16] ibid.
[17] ibid.
[18] ibid.
[19] ibid.
[20] ibid.
[21] ibid.
[22] ibid.
Imagens: Wikimedia Commons.
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