Viagem Apostólica ao Luxemburgo e à Bélgica
Santa Missa e Beatificação da Venerável Ana de Jesus
Homilia do Papa Francisco
Estádio Rei Balduíno (Bruxelas, Bélgica)
Domingo, 29 de setembro de 2024
Observação: Foi celebrada a Missa do XXVI Domingo do Tempo Comum (Ano C).
«Se
alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que fosse
jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço» (Mc 9,42). Com
estas palavras, dirigidas aos discípulos, Jesus alerta para o perigo de
escandalizar, ou seja, de obstruir o caminho e ferir a vida dos “pequeninos”. É
uma advertência forte, severa, sobre a qual devemos parar para refletir.
Gostaria de fazê-lo convosco, também à luz de outros textos sagrados, a partir
de três palavras-chave: abertura, comunhão e testemunho.
Começamos
com a abertura. A 1ª Leitura e o Evangelho falam-nos dela,
mostrando-nos a ação livre do Espírito Santo que, na narrativa do êxodo, enche
com o seu dom de profecia não só os anciãos que tinham ido com Moisés à tenda
da reunião, mas também dois homens que tinham ficado no acampamento.
Isto
faz-nos pensar, porque, se inicialmente era escandaloso que eles estivessem
ausentes do grupo dos eleitos, depois do dom do Espírito é escandaloso
proibi-los de exercer a missão que, apesar disso, receberam. Percebe-o bem
Moisés, homem humilde e sábio, ao dizer com mente e coração abertos: «Quem dera
que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor lhe concedesse o seu
espírito!» (Nm 11,29). Um belo desejo!
São
palavras sábias, que antecipam o que Jesus diz no Evangelho (cf. Mc 9,38-43.45.47-48).
Aqui, a cena se passa em Cafarnaum, onde os discípulos gostariam de impedir um
homem de expulsar demônios em nome do Mestre, porque - afirmam - “não nos
segue” (v. 38), ou seja, “não faz parte do nosso grupo”. É assim que pensam:
“Quem não nos segue, quem não é ‘dos nossos’ não pode fazer milagres, não tem
direito”. Mas como sempre, Jesus os surpreende - Jesus sempre nos surpreende -
e repreende, convidando-os a ultrapassar os seus esquemas, a não se
“escandalizarem” com a liberdade de Deus. E diz-lhes: «Não o proibais... quem
não é contra nós é a nosso favor» (vv. 39-40).
Reparemos
bem nessas duas cenas, a de Moisés e a de Jesus, porque elas também dizem respeito
a nós e à nossa vida cristã. Com efeito, pelo Batismo todos nós recebemos uma
missão na Igreja. Trata-se de um dom, não de um título ostentoso. A comunidade
dos que creem não é um círculo de privilegiados, é uma família de salvos, e não
é pelos nossos próprios méritos que somos enviados a levar o Evangelho ao
mundo, mas pela graça de Deus, pela sua misericórdia e pela confiança que,
apesar de todos os nossos limites e pecados, Ele continua a depositar em nós
com amor de Pai, vendo em cada um o que nós mesmos não conseguimos ver. É por
isso que, com paciência, Ele nos chama, envia e acompanha dia após dia.
Assim,
se quisermos cooperar, com amor aberto e atencioso, com a ação livre do
Espírito, sem sermos um escândalo, um obstáculo para ninguém devido à nossa
presunção e rigidez, temos de cumprir a nossa missão com humildade, gratidão e
alegria. Não devemos ficar ressentidos, mas sim nos alegrarmos com o fato dos
outros poderem também fazer o que nós fazemos, para que o Reino de Deus cresça
e para que, um dia, todos unidos nos encontremos entre os braços do nosso Pai.
E
isso nos leva à segunda palavra: comunhão. São Tiago fala-nos dela
na 2ª Leitura (Tg 5,1-6) com duas imagens fortes: as riquezas que
se corrompem (v. 3) e o clamor dos ceifeiros que chega aos ouvidos do Senhor
(v. 4). Desse modo recorda-nos que o único caminho da vida é o do dom, do amor
que une na partilha. O caminho do egoísmo gera apenas fechamentos, muros e
obstáculos - portanto, “escândalos” - que nos acorrentam às coisas e nos
afastam de Deus e dos irmãos.
O
egoísmo, como tudo o que impede a caridade, é “escandaloso”, porque esmaga os
pequenos, humilhando a dignidade das pessoas e abafando o clamor dos pobres (cf. Sl 9,13).
E isso era tão real no tempo de São Paulo como é para nós hoje. Pensemos, por
exemplo, no que acontece quando, na base da vida das pessoas e das comunidades,
se colocam apenas os princípios do interesse próprio e da lógica do mercado (cf.
Exortação Apostólica Evangelii gaudium, nn. 54-58): cria-se um
mundo onde já não há lugar para quem está em dificuldade, nem misericórdia para
quem erra, nem compaixão para quem sofre e não aguenta mais.
Pensemos
no que acontece quando os pequenos são vítimas de escândalo, golpeados,
abusados por aqueles que deveriam cuidá-los, nas feridas de dor e de
impotência, principalmente nas vítimas, mas também nos familiares e em toda a
comunidade. Com a mente e com o coração volto à história desses pequenos a quem
encontrei anteontem. Eu os escutei, senti o seu sofrimento enquanto abusados, e
o repito aqui: na Igreja há lugar para todos, mas todos seremos julgados e não
há lugar para o abuso, não há lugar para o encobrimento dos abusos. Peço a
todos: não encobri os abusos! Peço aos Bispos: não encobri os abusos! Condenai
os abusadores e ajudai-lhes a curar-se dessa enfermidade que são os abusos. O
mal não se esconde, mas deve ser posto a descoberto: que se saiba! Como o
fizeram com coragem alguns dos abusados. Que se saiba! E que se julgue o
abusador, seja leigo, leiga, padre ou Bispo.
A
Palavra de Deus é clara: diz que os “gritos dos ceifeiros” e o “clamor dos
pobres” não podem ser ignorados, não podem ser eliminados, como se fossem uma
nota dissonante no concerto perfeito do mundo da riqueza, nem podem ser
silenciados através de uma forma de assistencialismo de fachada. Pelo contrário,
são a voz viva do Espírito, que nos recorda quem somos - todos somos pobres
pecadores... todos... eu, o primeiro -; e as pessoas abusadas são um lamento
que sobe aos céus, que toca a alma, faz-nos envergonhar e nos chama à
conversão. Não lhes impeçamos ser voz profética, silenciando-a com a nossa
indiferença. Escutemos o que Jesus diz no Evangelho: longe de nós o olho escandaloso,
que vê o indigente e olha para o lado! Longe de nós a mão escandalosa, que
cerra o punho para esconder os seus tesouros e se esconde avidamente nos
bolsos! A minha avó dizia: “O diabo entra pelos bolsos”. Aquela mão que golpeia
ao realizar um abuso sexual, um abuso de poder, um abuso de consciência contra
quem é mais fraco. E quantos casos de abuso temos em nossa história e em nossa
sociedade! Longe de nós o pé escandaloso, que corre depressa,
não para se aproximar dos que sofrem, mas para “passar adiante” e ficar à
distância! Longe de nós! Desse modo, nada se constrói de bom e de sólido! Gosto
de fazer uma pergunta às pessoas: “Dás esmolas?” - “Sim, padre!” - “Mas, quando
dás a esmola, tocas na mão da pessoa indigente ou lanças a esmola e olhas para
outro lado? Olhas nos olhos das pessoas que sofrem?”. Pensemos nisto.
Se
quisermos semear com vistas ao futuro, também a nível social e econômico, nos fará
bem voltar a colocar o Evangelho da misericórdia na base das nossas escolhas.
Jesus é a misericórdia e todos nós somos objeto dessa misericórdia. Caso
contrário, por mais imponentes que pareçam, os monumentos da nossa opulência
serão sempre gigantes com pés de barro (cf. Dn 2,31-45).
Não tenhamos ilusões: sem amor não há nada que dure, tudo se desvanece,
desmorona e nos deixa prisioneiros de uma vida fugaz, vazia e sem sentido, de
um mundo inconsistente que, para além das fachadas, perdeu toda a
credibilidade, porque escandalizou os mais pequenos.
E
assim chegamos à terceira palavra: testemunho. Podemos, a este respeeito,
tomar o exemplo da vida e das obras de Ana de Jesus (Ana de Lobera), no dia da
sua Beatificação. Essa mulher foi uma das protagonistas de um grande movimento
de reforma na Igreja do seu tempo, seguindo os passos de uma “gigante do
espírito” - Santa Teresa de Ávila - cujos ideais difundiu na Espanha, na França
e também aqui, em Bruxelas, nos então chamados Países Baixos espanhóis.
Em uma
época marcada por dolorosos escândalos, tanto dentro como fora da comunidade
cristã, ela e suas companheiras, com uma vida simples e pobre feita de oração, trabalho
e caridade, conseguiram trazer de novo tantas pessoas à fé a ponto de alguém
descrever a sua fundação nesta cidade como um “íman espiritual”.
Por
opção, não deixou escritos. Em vez disso, empenhou-se em pôr em prática o que
tinha aprendido (cf. 1Cor 15,3) e, com o seu estilo de
vida, contribuiu para reerguer a Igreja em um momento de grande dificuldade.
Acolhamos,
pois, com gratidão o modelo, simultaneamente delicado e forte, de “santidade feminina”
que ela nos deixou (cf. Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate,
n. 12), feito de abertura, de comunhão e de testemunho.
Confiemo-nos à sua intercessão, imitemos as suas virtudes e renovemos com ela o
nosso compromisso de caminharmos juntos seguindo as pegadas do Senhor.
Fonte: Santa Sé.
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