quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Encíclica Ecclesia de Eucharistia (2)

“Ecclesia de Eucharistia vivit” - “A Igreja vive da Eucaristia”.

Recordando os 20 anos do início do Ano da Eucaristia (17 de outubro de 2004), convocado por São João Paulo II, repropomos sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, promulgada na Quinta-feira Santa de 2003.

Por sua importância e extensão, dividimos o documento em duas partes. Após a 1ª parte com os nn. 1-33, confira a seguir os Capítulos 4-6 e a Conclusão (nn. 34-62):

Papa João Paulo II
Encíclica Ecclesia de Eucharistia
Sobre a Eucaristia na sua relação com a Igreja

Capítulo IV: A Eucaristia e a comunhão eclesial

34. Em 1985 a Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos reconheceu a «eclesiologia da comunhão» como a ideia central e fundamental dos documentos do Concílio Vaticano II (cf. Relação final, II-C.1). Enquanto durar a sua peregrinação aqui na terra, a Igreja é chamada a conservar e promover tanto a comunhão com a Trindade divina como a comunhão entre os fiéis. Para isso, possui a Palavra e os sacramentos, sobretudo a Eucaristia; desta «vive e cresce» (Constituição Dogmática Lumen gentium, n. 26), e ao mesmo tempo exprime-se nela. Não foi sem razão que o termo Comunhão se tornou um dos nomes específicos deste sacramento excelso.
Daí que a Eucaristia se apresente como o sacramento culminante para levar à perfeição a comunhão com Deus Pai através da identificação com o seu Filho Unigênito por obra do Espírito Santo. Com grande intuição de fé, um insigne escritor de tradição bizantina assim exprimia esta verdade: na Eucaristia, «mais do que em qualquer outro sacramento, o mistério [da comunhão] é tão perfeito que conduz ao apogeu de todos os bens: nela está o termo último de todo o desejo humano, porque nela alcançamos Deus e Deus se une conosco pela união mais perfeita» (Nicolau Cabasilas, A vida em Cristo IV, 10). Por isso mesmo, é conveniente cultivar continuamente na alma o desejo do sacramento da Eucaristia. Daqui nasceu a prática da «Comunhão espiritual» em uso na Igreja há séculos, recomendada por santos mestres de vida espiritual. Escrevia Santa Teresa de Jesus: «Quando não comungais e não participais na Missa, comungai espiritualmente, porque é muito vantajoso... Deste modo, imprime-se em vós muito do amor de nosso Senhor» (Caminho de perfeição, 35).

São João Paulo II celebra a Eucaristia
(Corpus Christi de 2001)

35. Entretanto, a celebração da Eucaristia não pode ser o ponto de partida da comunhão, cuja existência pressupõe, visando a sua consolidação e perfeição. O sacramento exprime esse vínculo de comunhão quer na dimensão invisível que em Cristo, pela ação do Espírito Santo, nos une ao Pai e entre nós, quer na dimensão visível que implica a comunhão com a doutrina dos Apóstolos, os sacramentos e a ordem hierárquica. A relação íntima entre os elementos invisíveis e os elementos visíveis da comunhão eclesial é constitutiva da Igreja enquanto sacramento de salvação (cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Carta Communionis notio sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão, n. 4). Somente neste contexto tem lugar a celebração legítima da Eucaristia e a autêntica participação nela. Por isso, uma exigência intrínseca da Eucaristia é que seja celebrada na comunhão e, concretamente, na integridade dos seus vínculos.

36. A comunhão invisível, embora por natureza esteja sempre em crescimento, supõe a vida da graça, pela qual nos tornamos «participantes da natureza divina» (cf. 2Pd 1,4), e a prática das virtudes da fé, da esperança e da caridade. De fato, só deste modo se pode ter verdadeira comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Não basta a fé; mas é preciso perseverar na graça santificante e na caridade, permanecendo na Igreja com o «corpo» e o «coração» (Lumen gentium, n. 14); ou seja, usando palavras de São Paulo, é necessária «a fé que age pela caridade» (Gl 5,6).
A integridade dos vínculos invisíveis é um dever moral concreto do cristão que queira participar plenamente na Eucaristia, comungando o Corpo e o Sangue de Cristo. Tal dever, recorda-o o referido Apóstolo com a seguinte advertência: «Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice» (1Cor 11,28). Com a sua grande eloquência, São João Crisóstomo assim exortava os fiéis: «Também eu levanto a voz e vos suplico, peço e esconjuro para não vos abeirardes desta Mesa sagrada com uma consciência manchada e corrompida. De fato, tal aproximação nunca poderá chamar-se comunhão, ainda que toquemos mil vezes o corpo do Senhor, mas condenação, tormento e redobrados castigos» (Homilias sobre Isaías 6).
Nesta linha, o Catecismo da Igreja Católica estabelece justamente: «Aquele que tiver consciência de um pecado grave, deve receber o sacramento da Reconciliação antes de se aproximar da Comunhão» (n. 1385; cf. Código de Direito Canônico, cân. 916; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 711). Desejo, por conseguinte, reafirmar que vigora ainda e sempre há de vigorar na Igreja a norma do Concílio de Trento que concretiza a severa advertência do Apóstolo Paulo, ao afirmar que, para uma digna recepção da Eucaristia, «se deve fazer antes a confissão dos pecados, quando alguém está consciente de pecado mortal» [1].

37. A Eucaristia e a Penitência são dois sacramentos intimamente unidos. Se a Eucaristia torna presente o sacrifício redentor da cruz, perpetuando-o sacramentalmente, isso significa que deriva dela uma contínua exigência de conversão, de resposta pessoal à exortação que São Paulo dirigia aos cristãos de Corinto: «Em nome de Cristo nós vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus» (2Cor 5,20). Se, para além disso, o cristão tem na consciência o peso de um pecado grave, então o itinerário da penitência através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho obrigatório para se aproximar e participar plenamente do sacrifício eucarístico.
Tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado; mas, em casos de comportamento externo de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, não pode deixar de sentir-se chamada em causa. A esta situação de manifesta infração moral se refere a norma do Código de Direito Canônico relativa à não admissão à comunhão eucarística de quantos «obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto» (cân. 915; cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 712).

38. A comunhão eclesial, como atrás recordei, é também visível, manifestando-se nos vínculos elencados pelo próprio Concílio Vaticano II quando ensina: «São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos» (Lumen gentium, n. 14).
A Eucaristia, como suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja, exige para ser celebrada um contexto de integridade dos laços, inclusive externos, de comunhão. De modo especial, sendo ela «como que a perfeição da vida espiritual e o fim para que tendem todos os sacramentos» (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 73, a. 3c), requer que sejam reais os laços de comunhão nos sacramentos, particularmente no Batismo e na Ordem sacerdotal. Não é possível dar a Comunhão a uma pessoa que não esteja batizada ou que rejeite a verdade integral de fé sobre o mistério eucarístico. Cristo é a verdade, e dá testemunho da verdade (cf. Jo 14,6; 18,37); o sacramento do seu Corpo e Sangue não consente ficções.

39. Além disso, em virtude do caráter próprio da comunhão eclesial e da relação que o sacramento da Eucaristia tem com a mesma, convém recordar que «o sacrifício eucarístico, embora se celebre sempre em uma comunidade particular, nunca é uma celebração apenas dessa comunidade: de fato esta, ao receber a presença eucarística do Senhor, recebe o dom integral da salvação e manifesta-se assim, apesar da sua configuração particular que continua visível, como imagem e verdadeira presença da Igreja una, santa, católica e apostólica» (Communionis notio, n. 11). Daí que uma comunidade verdadeiramente eucarística não possa fechar-se em si mesma, como se fosse autossuficiente, mas deve permanecer em sintonia com todas as outras comunidades católicas.
A comunhão eclesial da assembleia eucarística é comunhão com o próprio Bispo e com o Romano Pontífice. Com efeito, o Bispo é o princípio visível e o fundamento da unidade na sua Igreja particular (Lumen gentium, n. 23). Seria, por isso, uma grande incongruência celebrar o sacramento por excelência da unidade da Igreja sem uma verdadeira comunhão com o Bispo. Escrevia Santo Inácio de Antioquia: «Seja tida como legítima somente aquela Eucaristia que é presidida pelo Bispo ou por quem ele encarregou» (Carta aos cristãos de Esmirna, 8). De igual modo, visto que «o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, é perpétuo e visível fundamento da unidade não só dos Bispos, mas também da multidão dos fiéis» (Lumen gentium, n. 23), a comunhão com ele é uma exigência intrínseca da celebração do sacrifício eucarístico. Esta grande verdade é expressa de vários modos pela Liturgia: «Cada Celebração Eucarística é feita em união não só com o próprio Bispo, mas também com o Papa, com a Ordem Episcopal, com todo o clero e com todo o povo. Toda a celebração válida da Eucaristia exprime esta comunhão universal com Pedro e com toda a Igreja ou, como no caso das Igrejas cristãs separadas de Roma, assim a reclama objetivamente» (Communionis notio, n. 14).

40. A Eucaristia cria comunhão e educa para a comunhão. Ao escrever aos fiéis de Corinto, São Paulo fazia-lhes ver como as suas divisões, que se davam nas assembleias eucarísticas, estavam em contraste com o que celebravam - a Ceia do Senhor. E convidava-os, por isso, a refletirem sobre a verdadeira realidade da Eucaristia, para fazê-los voltar ao espírito de comunhão fraterna (cf. 1Cor 11,17-34). Encontramos um válido eco desta exigência em Santo Agostinho quando, depois de recordar a afirmação do Apóstolo «vós sois corpo de Cristo e seus membros» (1Cor 12,27), observava: «Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis». E daí concluía: «Cristo Senhor... consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e unidade. Quem recebe o sacramento da unidade, sem conservar o vínculo da paz, não recebe um sacramento para seu benefício, mas antes uma condenação» (Sermão 272).

41. Esta eficácia peculiar que tem a Eucaristia para promover a comunhão é um dos motivos da importância da Missa dominical. Já me detive sobre esta e outras razões que a tornam fundamental para a vida da Igreja e dos fiéis, na Carta Apostólica Dies Domini sobre a santificação do domingo (cf. nn. 31-51), recordando, além disso, que participar na Missa é uma obrigação dos fiéis, a não ser que tenham um impedimento grave, pelo que aos Pastores impõe-se o correlativo dever de oferecerem a todos a possibilidade efetiva de cumprirem o preceito (cf. nn. 48-49). Mais tarde, na Carta Apostólica Novo millennio ineunte, ao traçar o caminho pastoral da Igreja no início do terceiro milênio, quis assinalar de modo particular a Eucaristia dominical, sublinhando a sua eficácia para criar comunhão: «É o lugar privilegiado, onde a comunhão é constantemente anunciada e fomentada. Precisamente através da participação eucarística, o dia do Senhor torna-se também o dia da Igreja, a qual poderá assim desempenhar de modo eficaz a sua missão de sacramento de unidade» (n. 36).

42. A defesa e promoção da comunhão eclesial é tarefa de todo o fiel, que encontra na Eucaristia, enquanto sacramento da unidade da Igreja, um campo de especial solicitude. De forma mais concreta e com particular responsabilidade, a referida tarefa recai sobre os Pastores da Igreja, segundo o grau e o ministério eclesiástico próprio de cada um. Por isso, a Igreja estabeleceu normas que visam promover o acesso frequente e frutuoso dos fiéis à mesa eucarística e simultaneamente determinar as condições objetivas nas quais se deve abster de administrar a comunhão. O cuidado com que se favorece a sua fiel observância torna-se uma expressão efetiva de amor à Eucaristia e à Igreja.

43. Quando se considera a Eucaristia como sacramento da comunhão eclesial, há um tema que, pela sua importância, não pode ser transcurado: refiro-me à sua relação com o empenho ecumênico. Todos devemos dar graças à Santíssima Trindade porque, nestas últimas décadas em todo o mundo, muitos fiéis foram contagiados pelo desejo ardente da unidade entre todos os cristãos. O Concílio Vaticano II, no princípio do seu Decreto sobre o ecumenismo, considera isto como um dom especial de Deus (cf. Unitatis redintegratio, n. 1). Foi uma graça eficaz que fez caminhar pela senda ecumênica tanto nós, filhos da Igreja Católica, como nossos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais.
A aspiração por chegar à meta da unidade impele-nos a voltar o olhar para a Eucaristia, que é o sacramento supremo da unidade do povo de Deus, a sua condigna expressão e fonte insuperável (Lumen gentium, n. 11). Na celebração do sacrifício eucarístico, a Igreja eleva a sua prece a Deus, Pai de misericórdia, para que conceda aos seus filhos a plenitude do Espírito Santo de modo que se tornem em Cristo um só corpo e um só espírito [2]. Quando apresenta esta súplica ao Pai das luzes, do qual provém toda a boa dádiva e todo o dom perfeito (cf. Tg 1,17), a Igreja acredita na eficácia da mesma, porque ora em união com Cristo, Cabeça e Esposo, o qual assume a súplica da Esposa unindo-a à do seu sacrifício redentor.

44. Precisamente porque a unidade da Igreja, que a Eucaristia realiza por meio do sacrifício e da Comunhão do Corpo e Sangue do Senhor, comporta a exigência imprescindível de uma completa comunhão nos laços da profissão de fé, dos sacramentos e do governo eclesiástico, não é possível concelebrar a Liturgia Eucarística enquanto não for restabelecida a integridade de tais laços. A referida concelebração não seria um meio válido, podendo mesmo revelar-se um obstáculo, para se alcançar a plena comunhão, atenuando o sentido da distância da meta e introduzindo ou dando aval a ambiguidades sobre algumas verdades da fé. O caminho para a plena união só pode ser construído na verdade. Neste ponto, a interdição na lei da Igreja não deixa espaço a incertezas [3], atendo-se à norma moral proclamada pelo Concílio Vaticano II [4].
No entanto quero reafirmar as palavras que ajuntei na Encíclica Ut unum sint depois de reconhecer a impossibilidade da partilha eucarística: «E, todavia, nós temos o desejo ardente de celebrar juntos a única Eucaristia do Senhor, e este desejo torna-se já um louvor comum, uma mesma súplica. Juntos dirigimo-nos ao Pai e fazemo-lo cada vez mais com um só coração» (n. 45).

45. Se não é legítima em caso algum a concelebração quando falta a plena comunhão, o mesmo não acontece relativamente à administração da Eucaristia, em circunstâncias especiais, a indivíduos pertencentes a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. De fato, neste caso tem-se como objetivo prover a uma grave necessidade espiritual em ordem à salvação eterna dos fiéis, e não realizar uma intercomunhão, o que é impossível enquanto não forem plenamente reatados os laços visíveis da comunhão eclesial.
Nesta direção se moveu o Concílio Vaticano II ao fixar como comportar-se com os Orientais que de boa-fé se acham separados da Igreja Católica, quando espontaneamente pedem para receber a Eucaristia do ministro católico e estão bem preparados (Decreto Orientalium Ecclesiarum, n. 27). Tal modo de proceder seria depois ratificado por ambos os Códigos canônicos, nos quais é contemplado também, com os devidos ajustamentos, o caso dos outros cristãos não orientais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica (cf. Código de Direito Canônico, cân. 844 §3-4; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671 §3-4).

46. Na Encíclica Ut unum sint manifestei a minha complacência por esta norma que consente prover à salvação das almas, com o devido discernimento: «É motivo de alegria lembrar que os ministros católicos podem, em determinados casos particulares, administrar os sacramentos da Eucaristia, da Penitência e da Unção dos Enfermos a outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, mas que desejam ardentemente recebê-los, pedem-nos livremente e manifestam a fé que a Igreja Católica professa nestes sacramentos. Reciprocamente, em determinados casos e por circunstâncias particulares, os católicos também podem recorrer, para os mesmos sacramentos, aos ministros daquelas Igrejas onde eles são válidos» (n. 46).
É preciso reparar bem nestas condições que são imprescindíveis, mesmo tratando-se de determinados casos particulares, porque a rejeição de uma ou mais verdades de fé relativas a estes sacramentos, contando-se entre elas a necessidade do sacerdócio ministerial para serem válidos, deixa o requerente despreparado para uma legítima recepção dos mesmos. E, vice-versa, também um fiel católico não poderá receber a comunhão em uma comunidade onde falte o sacramento da Ordem (Unitatis redintegratio, n. 22).
A fiel observância do conjunto das normas estabelecidas nesta matéria (cf. Código de Direito Canônico, cân. 844; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671) é prova e simultaneamente garantia de amor por Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, pelos irmãos de outra confissão cristã aos quais é devido o testemunho da verdade, e ainda pela própria causa da promoção da unidade.


Capítulo V: O decoro da Celebração Eucarística

47. Quando alguém lê o relato da instituição da Eucaristia nos Evangelhos Sinóticos fica admirado ao ver a simplicidade e simultaneamente a dignidade com que Jesus, na noite da Última Ceia, institui este grande sacramento. Há um episódio que, de certo modo, lhe serve de prelúdio: a unção de Betânia. Uma mulher, que João identifica como sendo Maria, irmã de Lázaro, derrama sobre a cabeça de Jesus um vaso de perfume precioso, suscitando nos discípulos - particularmente em Judas (Mt 26,8; Mc 14,4; Jo 12,4) - uma reação de protesto contra tal gesto que, em face das necessidades dos pobres, constituía um «desperdício» intolerável. Mas Jesus faz uma avaliação muito diferente: sem nada tirar ao dever da caridade para com os necessitados, aos quais sempre se hão de dedicar os discípulos - «Pobres, sempre os tereis convosco» (Jo 12,8; cf. Mt 26,11; Mc 14,7) -, Ele pensa no momento já próximo da sua morte e sepultura, considerando a unção que lhe foi feita como uma antecipação daquelas honras de que continuará a ser digno o seu corpo mesmo depois da morte, porque indissoluvelmente ligado ao mistério da sua pessoa.
Nos Evangelhos Sinóticos a narração continua com o encargo dado por Jesus aos discípulos para fazerem uma cuidadosa preparação da «grande sala», necessária para comer a ceia pascal (cf. Mc 14,15; Lc 22,12), e com a descrição da instituição da Eucaristia. Deixando entrever, pelo menos em parte, o desenrolar dos ritos hebraicos da ceia pascal até o canto do «Hallel» (cf. Mt 26,30; Mc 14,26), o relato, de maneira tão concisa como solene, embora com variantes nas diversas tradições, refere as palavras pronunciadas por Cristo sobre o pão e sobre o vinho, assumidos por Ele como expressões concretas do seu Corpo entregue e do seu Sangue derramado. Todos estes particulares são recordados pelos evangelistas à luz de uma prática, consolidada já na Igreja primitiva, da «fração do pão». O certo é que, desde o tempo histórico de Jesus, no acontecimento de Quinta-feira Santa são visíveis os traços de uma «sensibilidade» litúrgica, modelada sobre a tradição do Antigo Testamento e pronta a remodelar-se na celebração cristã em sintonia com o novo conteúdo da Páscoa.

48. Tal como a mulher da unção de Betânia, a Igreja não temeu «desperdiçar», investindo o melhor dos seus recursos para exprimir o seu enlevo e adoração diante do dom incomensurável da Eucaristia. À semelhança dos primeiros discípulos encarregados de preparar a «grande sala», ela sentiu-se impelida, ao longo dos séculos e no alternar-se das culturas, a celebrar a Eucaristia em um ambiente digno de tão grande mistério. Foi sob o impulso das palavras e dos gestos de Jesus, desenvolvendo a herança ritual do judaísmo, que nasceu a Liturgia cristã. Porventura haverá algo que seja capaz de exprimir de forma devida o acolhimento do dom que o Esposo divino continuamente faz de si mesmo à Igreja-Esposa, colocando ao alcance das sucessivas gerações de fiéis o sacrifício que ofereceu uma vez por todas na cruz e tornando-se alimento para todos os fiéis? Se a ideia do «banquete» inspira familiaridade, a Igreja nunca cedeu à tentação de banalizar esta «intimidade» com o seu Esposo, recordando-se que Ele é também o seu Senhor e que, embora «banquete», permanece sempre um banquete sacrificial, assinalado com o sangue derramado no Gólgota. O banquete eucarístico é verdadeiramente banquete «sagrado», onde, na simplicidade dos sinais, se esconde o abismo da santidade de Deus: «O Sacrum convivium, in quo Christus sumitur!» - «Ó Sagrado banquete, em que se recebe Cristo!». O pão que é repartido nos nossos altares, oferecido à nossa condição de viandantes pelas estradas do mundo, é «panis angelorum», pão dos anjos, do qual só é possível aproximar-se com a humildade do centurião do Evangelho: «Senhor, eu não sou digno que entres em minha morada» (Mt 8,8; Lc 6,6).

49. Movida por este elevado sentido do mistério, compreende-se como a fé da Igreja no mistério eucarístico se tenha exprimido ao longo da história não só através da exigência de uma atitude interior de devoção, mas também mediante uma série de expressões exteriores, que tendem a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento celebrado. Daqui nasce o percurso que levou progressivamente a delinear um estatuto especial de regulamentação da Liturgia Eucarística, no respeito pelas várias tradições eclesiais legitimamente constituídas. Sobre a mesma base se desenvolveu um rico patrimônio de arte. Deixando-se orientar pelo mistério cristão, a arquitetura, a escultura, a pintura, a música encontraram na Eucaristia, direta ou indiretamente, um motivo de grande inspiração.
Tal é, por exemplo, o caso da arquitetura que viu a passagem, logo que o contexto histórico o permitiu, da sede inicial da Eucaristia colocada na «domus» das famílias cristãs às solenes basílicas dos primeiros séculos, às imponentes catedrais da Idade Média, até às igrejas, grandes ou pequenas, que pouco a pouco foram constelando as terras onde o Cristianismo chegou. Também as formas dos altares e dos sacrários se foram desenvolvendo no interior dos espaços litúrgicos, seguindo não só os motivos da imaginação criadora, mas também os ditames de uma compreensão específica do Mistério. O mesmo se pode dizer da música sacra; basta pensar às inspiradas melodias gregorianas, aos numerosos e, frequentemente, grandes autores que se afirmaram com os textos litúrgicos da Santa Missa. E não sobressai porventura uma enorme quantidade de produções artísticas, desde realizações de um bom artesanato até verdadeiras obras de arte, no âmbito dos objetos e dos paramentos utilizados na Celebração Eucarística?
Deste modo, pode-se afirmar que a Eucaristia, ao mesmo tempo que plasmou a Igreja e a espiritualidade, incidiu intensamente sobre a «cultura», especialmente no setor estético.

50. Neste esforço de adoração do mistério, visto na sua perspectiva ritual e estética, empenharam-se, como se fosse uma «competição», os cristãos do Ocidente e do Oriente. Como não dar graças ao Senhor especialmente pelo contributo prestado à arte cristã pelas grandes obras arquitetônicas e pictóricas da tradição greco-bizantina e de toda a área geográfica e cultural eslava? No Oriente, a arte sacra conservou um sentido singularmente intenso do mistério, levando os artistas a conceberem o seu empenho na produção do belo não apenas como expressão do seu gênio, mas também como autêntico serviço à fé. Não se contentando apenas com sua perícia técnica, souberam abrir-se com docilidade ao sopro do Espírito de Deus.
Os esplendores das arquiteturas e dos mosaicos no Oriente e no Ocidente cristão são um patrimônio universal dos fiéis, contendo em si mesmos um voto e - diria - um penhor da desejada plenitude de comunhão na fé e na celebração. Isto supõe e exige, como na famosa pintura da Trindade de Rublev, uma Igreja profundamente «eucarística», na qual a partilha do mistério de Cristo no pão repartido esteja de certo modo imersa na unidade inefável das três Pessoas divinas, fazendo da própria Igreja um «ícone» da Santíssima Trindade.
Nesta perspectiva de uma arte que em todos os seus elementos visa exprimir o sentido da Eucaristia segundo a doutrina da Igreja, é preciso prestar toda a atenção às normas que regulamentam a construção e o ornamento dos edifícios sacros. A Igreja sempre deixou largo espaço criativo aos artistas, como a história o demonstra e como eu mesmo sublinhei na Carta aos Artistas; mas a arte sacra deve caracterizar-se pela sua capacidade de exprimir adequadamente o mistério lido na plenitude de fé da Igreja e segundo as indicações pastorais oportunamente dadas pela competente autoridade. Isto vale tanto para as artes figurativas como para a música sacra.

51. O que aconteceu em terras de antiga cristianização no âmbito da arte sacra e da disciplina litúrgica, está verificando-se também nos continentes onde o Cristianismo é mais jovem. Tal é a orientação assumida pelo Concílio Vaticano II a respeito da exigência de uma sã e necessária «inculturação». Nas minhas numerosas viagens pastorais pude observar por todo o lado a grande vitalidade de que é capaz a Celebração Eucarística em contato com as formas, os estilos e as sensibilidades das diversas culturas. Adaptando-se a condições variáveis de tempo e espaço, a Eucaristia oferece alimento não só aos indivíduos, mas ainda aos próprios povos, e plasma culturas de inspiração cristã.
Mas é necessário que tão importante trabalho de adaptação seja realizado na consciência constante deste mistério inefável, com que cada geração é chamada a encontrar-se. O «tesouro» é demasiado grande e precioso para se correr o risco de empobrecê-lo ou prejudicar com experimentações ou práticas introduzidas sem uma cuidadosa verificação pelas competentes autoridades eclesiásticas. Além disso, a centralidade do mistério eucarístico requer que tal verificação seja feita em estreita relação com a Santa Sé. Como escrevi na Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in Asia, «tal colaboração é essencial porque a Liturgia Sagrada exprime e celebra a única fé professada por todos e, sendo herança de toda a Igreja, não pode ser determinada pelas Igreja locais isoladamente da Igreja universal» (n. 22).

52. De quanto foi dito compreende-se a grande responsabilidade que têm sobretudo os sacerdotes na Celebração Eucarística, à qual presidem in persona Christi, assegurando um testemunho e um serviço de comunhão não só à comunidade que participa diretamente na celebração, mas também à Igreja universal, sempre mencionada na Eucaristia. Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reação contra o «formalismo» levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não obrigatórias as «formas» escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu Magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente impróprias.
Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na Celebração Eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A Liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os santos mistérios. O Apóstolo Paulo teve de dirigir palavras ásperas à comunidade de Corinto pelas falhas graves na sua Celebração Eucarística, que tinham dado origem a divisões (skísmata) e à formação de facções (airéseis) (cf. 1Cor 11,17-34). Atualmente também deveria ser redescoberta e valorizada a obediência às normas litúrgicas como reflexo e testemunho da Igreja, una e universal, que se torna presente em cada celebração da Eucaristia. O sacerdote, que celebra fielmente a Missa segundo as normas litúrgicas, e a comunidade, que adere às mesmas, demonstram de modo silencioso, mas expressivo, o seu amor à Igreja. Precisamente para reforçar este sentido profundo das normas litúrgicas, pedi aos Dicastérios competentes da Cúria Romana que preparem, sobre este tema de grande importância, um documento específico, incluindo também referências de caráter jurídico. A ninguém é permitido aviltar este mistério que está confiado às nossas mãos: é demasiado grande para que alguém possa permitir-se tratá-lo a seu livre arbítrio, não respeitando o seu caráter sagrado e a sua dimensão universal.


Capítulo VI: Na escola de Maria, mulher «eucarística»

53. Se quisermos redescobrir em toda a sua riqueza a relação íntima entre a Igreja e a Eucaristia, não podemos esquecer Maria, Mãe e modelo da Igreja. Na Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, depois de indicar a Virgem Santíssima como Mestra na contemplação do rosto de Cristo, inseri também entre os mistérios da luz a instituição da Eucaristia (n. 21). Com efeito, Maria pode guiar-nos para o Santíssimo Sacramento porque tem uma profunda ligação com ele.
À primeira vista, o Evangelho nada diz a tal respeito. A narração da instituição, na noite da Quinta-feira Santa, não fala de Maria. Mas sabe-se que ela estava presente no meio dos Apóstolos, quando, «unidos pelo mesmo sentimento, se entregavam assiduamente à oração» (At 1,14), na primeira comunidade que se reuniu depois da Ascensão à espera do Pentecostes. E certamente não podia deixar de estar presente nas Celebrações Eucarísticas no meio dos fiéis da primeira geração cristã, que eram assíduos à «fração do pão» (At 2,42).
Para além da sua participação no banquete eucarístico, pode-se delinear a relação de Maria com a Eucaristia indiretamente a partir da sua atitude interior. Maria é mulher «eucarística» na totalidade da sua vida. A Igreja, vendo em Maria o seu modelo, é chamada a imitá-la também na sua relação com este mistério santíssimo.

54. Mysterium fidei! Se a Eucaristia é um mistério de fé que excede tanto a nossa inteligência que nos obriga ao mais puro abandono à palavra de Deus, ninguém melhor do que Maria pode servir-nos de apoio e guia nesta atitude de abandono. Todas as vezes que repetimos o gesto de Cristo na Última Ceia dando cumprimento ao seu mandato: «Fazei isto em memória de mim», ao mesmo tempo acolhemos o convite que Maria nos faz para obedecermos a seu Filho sem hesitação: «Fazei o que Ele vos disser» (Jo 2,5). Com a solicitude materna manifestada nas bodas de Caná, ela parece dizer-nos: «Não hesiteis, confiai na palavra do meu Filho. Se Ele pôde mudar a água em vinho, também é capaz de fazer do pão e do vinho o seu Corpo e Sangue, entregando aos fiéis, neste mistério, o memorial vivo da sua Páscoa e tornando-se assim “pão de vida”».

55. De certo modo, Maria praticou a sua fé eucarística antes ainda de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a Encarnação do Verbo de Deus. A Eucaristia, ao mesmo tempo que evoca a Paixão e a Ressurreição, coloca-se no prolongamento da Encarnação. E Maria, na Anunciação, concebeu o Filho divino também na realidade física do corpo e do sangue, em certa medida antecipando nela o que se realiza sacramentalmente em cada fiel quando recebe, no sinal do pão e do vinho, o Corpo e o Sangue do Senhor.
Existe, pois, uma profunda analogia entre o «fiat» pronunciado por Maria, em resposta às palavras do Anjo, e o «amém» que cada fiel pronuncia quando recebe o Corpo do Senhor. A Maria foi pedido para acreditar que Aquele que ela concebia «por obra do Espírito Santo» era o «Filho de Deus» (cf. Lc 1,30-35). Dando continuidade à fé da Virgem Santa, no mistério eucarístico nos é pedido para crer que Aquele mesmo Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria, torna-se presente nos sinais do pão e do vinho com todo o seu ser humano-divino.
«Bem-aventurada aquela que acreditou» (Lc 1,45): Maria antecipou também, no mistério da Encarnação, a fé eucarística da Igreja. E, na Visitação, quando leva no seu ventre o Verbo encarnado, de certo modo ela serve de «sacrário» - o primeiro «sacrário» da história -, para o Filho de Deus, que, ainda invisível aos olhos dos homens, presta-se à adoração de Isabel, como que «irradiando» a sua luz através dos olhos e da voz de Maria. E o olhar extasiado de Maria, quando contemplava o rosto de Cristo recém-nascido e o estreitava nos seus braços, não é porventura o modelo inatingível de amor a que se devem inspirar todas as nossas Comunhões eucarísticas?

56. Ao longo de toda a sua existência ao lado de Cristo, e não apenas no Calvário, Maria viveu a dimensão sacrificial da Eucaristia. Quando levou o Menino Jesus ao templo de Jerusalém, «para apresentá-lo ao Senhor» (Lc 2,22), ouviu o velho Simeão anunciar que aquele Menino seria «sinal de contradição» e que uma «espada» havia de transpassar também a sua alma (vv. 34-35). Assim foi vaticinado o drama do Filho crucificado e de algum modo prefigurado o «stabat Mater» aos pés da Cruz. Preparando-se dia a dia para o Calvário, Maria vive uma espécie de «Eucaristia antecipada», poderíamos dizer uma «Comunhão espiritual» de desejo e oferta, que terá o seu cumprimento na união com o Filho durante a Paixão, e se manifestará depois, no período pós-pascal, na sua participação na Celebração Eucarística, presidida pelos Apóstolos, como «memorial» da Paixão.
Impossível imaginar os sentimentos de Maria ao ouvir dos lábios de Pedro, João, Tiago e dos demais Apóstolos as palavras da Última Ceia: «Isto é o meu Corpo que vai ser entregue por vós» (Lc 22,19). Aquele Corpo, entregue em sacrifício e presente agora nas espécies sacramentais, era o mesmo corpo concebido no seu ventre! Receber a Eucaristia devia significar para Maria quase acolher de novo no seu ventre aquele coração que batera em uníssono com o dela e reviver o que tinha pessoalmente experimentado junto da Cruz.

57. «Fazei isto em memória de mim» (Lc 22,19). No «memorial» do Calvário está presente tudo o que Cristo realizou na sua Paixão e Morte. Por isso não pode faltar o que Cristo fez para com sua Mãe em nosso favor. De fato, entrega-lhe o discípulo amado e, nele, entrega cada um de nós: «Eis o teu filho». E de igual modo diz a cada um de nós: «Eis a tua mãe» (Jo 19,26-27).
Viver o memorial da Morte de Cristo na Eucaristia implica também receber continuamente este dom. Significa levar conosco - a exemplo de João - aquela que sempre de novo nos é dada como Mãe. Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso de nos conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a sua companhia. Maria está presente, com a Igreja e como Mãe da Igreja, em cada uma das Celebrações Eucarísticas. Se Igreja e Eucaristia são um binômio indivisível, o mesmo é preciso afirmar do binômio Maria e Eucaristia. Por isso mesmo, desde a antiguidade é unânime nas Igrejas do Oriente e do Ocidente a recordação de Maria na Celebração Eucarística.

58. Na Eucaristia a Igreja une-se plenamente a Cristo e ao seu sacrifício, com o mesmo espírito de Maria. Tal verdade pode ser aprofundada relendo o Magnificat em perspectiva eucarística. De fato, como o cântico de Maria, também a Eucaristia é primariamente louvor e ação de graças. Quando exclama: «A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador» (Lc 1,46-47), Maria traz no seu ventre Jesus. Louva o Pai «por» Jesus, mas louva-o também «em» Jesus e «com» Jesus. É nisto precisamente que consiste a verdadeira «atitude eucarística».
Ao mesmo tempo Maria recorda as maravilhas operadas por Deus ao longo da história da salvação, segundo a promessa feita aos nossos pais (cf. Lc 1,55), anunciando a maravilha mais sublime de todas: a Encarnação redentora. Enfim, no Magnificat está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de Deus se torna presente entre nós na «pobreza» dos sinais sacramentais, pão e vinho, é lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os poderosos «derrubados dos seus tronos» e os humildes «exaltados» (cf. Lc 1,52). Maria canta aquele «novo céu» e aquela «nova terra» cuja antecipação e em certa medida a «síntese» programática se encontram na Eucaristia. Se o Magnificat exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade nos pode ajudar a viver o mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia para que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um magnificat!

Maria, mulher eucarística
(Raúl Berzosa Fernández)

Conclusão

59. «Ave, verum corpus natum de Maria Virgine». Celebrei há poucos anos as bodas de ouro do meu sacerdócio. Hoje tenho a graça de oferecer à Igreja esta Encíclica sobre a Eucaristia, na Quinta-feira Santa do meu 25º ano de ministério petrino. Faço-o com o coração cheio de gratidão. Há mais de meio século todos os dias, a começar daquele 02 de novembro de 1946, quando celebrei a minha «Missa Nova» na cripta de São Leonardo na Catedral de Wawel, em Cracóvia, os meus olhos concentram-se sobre a hóstia e sobre o cálice onde o tempo e o espaço de certo modo estão «contraídos» e o drama do Gólgota é representado ao vivo, desvendando a sua misteriosa «contemporaneidade». Cada dia pôde a minha fé reconhecer no pão e no vinho consagrados aquele Viandante divino que um dia se pôs a caminho com os dois discípulos de Emaús para abrir-lhes os olhos à luz e o coração à esperança (cf. Lc 24,13-35).
Deixai, meus queridos irmãos e irmãs, que dê com íntima emoção, em companhia e para conforto da vossa fé, o meu testemunho de fé na Eucaristia: «Ave, verum corpus natum de Maria Virgine, vere passum, immolatum, in cruce pro homine!». Eis aqui o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor da meta pela qual, mesmo inconscientemente, suspira todo o homem. Mistério grande, que nos excede - é certo - e põe a dura prova a capacidade da nossa mente em avançar para além das aparências. Aqui os nossos sentidos falham - «visus, tactus, gustus in te fallitur», diz o hino Adoro te devote -, mas basta-nos simplesmente a fé, radicada na palavra de Cristo que nos foi deixada pelos Apóstolos. Como Pedro no fim do discurso eucarístico segundo o Evangelho de João, deixai que eu repita a Cristo, em nome da Igreja inteira, em nome de cada um de vós: «A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna» (Jo 6,68).

60. Na aurora deste terceiro milênio, todos nós, filhos da Igreja, somos convidados a progredir com renovado impulso na vida cristã. Como escrevi na Carta Apostólica Novo millennio ineunte, «não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se em última análise no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n’Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste» (n. 29). A concretização deste programa de um renovado impulso na vida cristã passa pela Eucaristia.
Cada esforço de santidade, cada iniciativa para realizar a missão da Igreja, cada aplicação dos planos pastorais deve extrair a força de que necessita do mistério eucarístico e orientar-se para ele como o seu ponto culminante. Na Eucaristia temos Jesus, o seu sacrifício redentor, a sua Ressurreição, temos o dom do Espírito Santo, temos a adoração, a obediência e o amor ao Pai. Se transcurássemos a Eucaristia, como poderíamos dar remédio à nossa indigência?

61. O mistério eucarístico - sacrifício, presença, banquete - não permite reduções nem instrumentalizações; há de ser vivido na sua integridade, quer na celebração, quer no colóquio íntimo com Jesus acabado de receber na Comunhão, quer no período da adoração eucarística fora da Missa. Então a Igreja fica solidamente edificada, e exprime-se o que ela é verdadeiramente: una, santa, católica e apostólica; povo, templo e família de Deus; corpo e esposa de Cristo, animada pelo Espírito Santo; sacramento universal de salvação e comunhão hierarquicamente organizada.
O caminho que a Igreja percorre nestes primeiros anos do terceiro milênio é também caminho de renovado empenho ecumênico. As últimas décadas do segundo milênio, com o seu apogeu no Grande Jubileu do Ano 2000, impeliram-nos nesta direção, convidando todos os batizados a corresponder à oração de Jesus: «Ut unum sint» (Jo 17,11). É um caminho longo, cheio de obstáculos que superam a capacidade humana; mas temos a Eucaristia e, na sua presença, podemos ouvir no fundo do coração, como que dirigidas a nós, as mesmas palavras que ouviu o profeta Elias: «Levanta-te e come, porque ainda tens um caminho longo a percorrer» (1Rs 19,7). O tesouro eucarístico, que o Senhor pôs à nossa disposição, incita-nos para a meta que é a sua plena partilha com todos os irmãos, aos quais estamos unidos pelo mesmo Batismo. Mas, para não desperdiçar esse tesouro, é preciso respeitar as exigências que derivam do fato de ele ser sacramento da comunhão na fé e na sucessão apostólica.
Dando à Eucaristia todo o realce que merece e procurando com todo o cuidado não atenuar nenhuma das suas dimensões ou exigências, damos provas de estar verdadeiramente conscientes da grandeza deste dom. A isto nos convida uma tradição ininterrupta desde os primeiros séculos, que mostra a comunidade cristã vigilante na defesa deste «tesouro». Movida pelo amor, a Igreja preocupa-se em transmitir às sucessivas gerações cristãs a fé e a doutrina sobre o mistério eucarístico, sem perder qualquer fragmento. E não há perigo de exagerar no cuidado que lhe dedicamos, porque, «neste sacramento, se condensa todo o mistério da nossa salvação» (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 83, a. 4c).

62. Meus queridos irmãos e irmãs, vamos à escola dos Santos, grandes intérpretes da verdadeira piedade eucarística. Neles a teologia da Eucaristia adquire todo o brilho de uma vivência, «contagia-nos» e, por assim dizer, «abrasa-nos». Ponhamo-nos sobretudo à escuta de Maria Santíssima, porque nela, como em mais ninguém, o mistério eucarístico aparece como o mistério da luz. Contemplando-a conhecemos a força transformadora que possui a Eucaristia. Nela vemos o mundo renovado no amor. Contemplando-a elevada ao Céu em corpo e alma, vemos um pedaço do «novo céu» e da «nova terra» que se hão de abrir diante dos nossos olhos na segunda vinda de Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e, de algum modo, antecipação: «Veni, Domine Iesu!» (Ap 22,20).
Nos humildes sinais do pão e do vinho transubstanciados no seu Corpo e Sangue, Cristo caminha conosco, como nossa força e nosso viático, e torna-nos testemunhas de esperança para todos. Se a razão experimenta os seus limites diante deste mistério, o coração iluminado pela graça do Espírito Santo intui bem como comportar-se, entranhando-se na adoração e em um amor sem limites.
Façamos nossos os sentimentos de Santo Tomás de Aquino, máximo teólogo e ao mesmo tempo cantor apaixonado de Jesus eucarístico, e deixemos que o nosso espírito se abra também na esperança à contemplação da meta pela qual suspira o coração, sedento como é de alegria e de paz: «Bone Pastor, panis vere, Iesu, nostri miserere...».

«Bom Pastor, pão de verdade, piedade, ó Jesus, piedade, conservai-nos na unidade, extingui nossa orfandade, transportai-nos para o Pai.
Aos mortais dando comida, dais também o pão da vida; que a família assim nutrida seja um dia reunida aos convivas lá do céu» [Sequência Lauda Sion].

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 17 de abril, Quinta-feira Santa, do ano de 2003, 25º do meu Pontificado e Ano do Rosário.

João Paulo II


Notas
[1] Discurso aos membros da Penitenciaria Apostólica e aos penitenciários das Basílicas Patriarcais de Roma (30 de janeiro de 1981); cf. Concílio de Trento, Sessão XIII, Decreto sobre o sacramento da Eucaristia, cap. 7; cân. 11 (Denzinger, nn. 1647.1661).
[2] «Fazei que, participando do único pão e do único cálice, permaneçamos unidos uns aos outros na comunhão do único Espírito Santo» (Anáfora da Liturgia de São Basílio).
[3] cf. Código de Direito Canônico, cân. 908; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 702; Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Diretório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo (25 de março de 1993), nn. 122-125.129-131; Congregação para a Doutrina da Fé, Carta Ad exsequendam (18 de maio de 2001).
[4] «A comunicação nas coisas sagradas que ofende a unidade da Igreja ou inclui adesão formal ao erro ou perigo de aberração na fé, de escândalo e de indiferentismo, é proibida por lei divina» (Decreto Orientalium Ecclesiarum, n. 26).

Observação: Para facilitar a leitura neste formato do blog, unimos a maior parte das notas de rodapé mais breves ao corpo do texto.

Fonte: Santa Sé.

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