“Amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14).
Em nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura começamos a analisar as “Cartas do cativeiro” atribuídas ao Apóstolo
Paulo, com importantes reflexões sobre Cristo e a Igreja: Filipenses, Colossenses e
Efésios. Nesta postagem começaremos
um percurso pela Carta aos Colossenses
(Cl), Πρὸς Κολοσσαεῖς.
São Paulo escrevendo suas Cartas (Rembrandt) |
1. Breve introdução à Carta aos Colossenses
Diferentemente de Filipos, a comunidade de Colossas, na Frígia (na atual Turquia), não foi fundada por
Paulo, mas provavelmente por Epafras, um discípulo do Apóstolo (Cl
1,7-8).
Enquanto há consenso acerca da autoria paulina de Filipenses, o mesmo não pode ser dito
desta Carta. Para a maioria dos
autores, dadas as diferenças de linguagem e teologia, Colossenses não foi escrita por Paulo, mas sim por um discípulo,
provavelmente nos anos 80 do século I (antes de Efésios, que se baseará nesta Carta).
Esta é, portanto, uma “Carta dêutero-paulina”, embora também
seja enquadrada no grupo das “Cartas do cativeiro”, uma vez que o autor “veste
o manto” de Paulo na prisão (cf. Cl 4,3.10.18).
A Carta possui uma divisão semelhante a Romanos, com uma seção teológica
(doutrinal) e uma seção parenética (exortativa ou moral), “emolduradas” por uma
introdução e uma conclusão:
a) Cl 1,1-8: Introdução, com a saudação (vv. 1-2) e a
ação de graças (vv. 3-8);
b) Cl 1,9–2,23: Seção teológica, centrada no tema da
soberania de Cristo;
c) Cl 3,1–4,6: Seção parenética;
d) Cl 4,7-18: Conclusão, com as saudações finais.
Assim como em Filipenses,
temos em Cl 1,15-20 um “hino cristológico”, provavelmente tomado da
Liturgia da comunidade primitiva, que sintetiza a reflexão teológica da Carta. Podemos chamá-lo de “hino à
soberania de Cristo”, sob dois aspectos: na ordem da criação (vv. 15-17) e na
ordem da salvação (vv. 18-20).
O hino é marcado por paralelos: Cristo é o “primogênito de toda criatura”
(v. 15) e o “primogênito dentre os
mortos” (v. 18). A composição relaciona-se assim com a “sabedoria criadora”
do Antigo Testamento (cf. Pv
8,22-31), embora Cristo seja não só a origem da criação, mas também seu fim: “Tudo foi criado por Ele e para Ele” (v.
16).
Destaca-se também a relação Cristo-Igreja: “Ele é a
cabeça da Igreja, que é o seu corpo” (v. 18). Embora a metáfora do corpo já
estivesse presente na Primeira Carta aos Coríntios
e na Carta aos Romanos, ela é aqui
ampliada, adquirindo um sentido mais universal.
O hino ajuda ainda a esclarecer os “falsos ensinamentos” (Cl
2,8-23). Trata-se aqui do perigo do sincretismo, isto é, da absorção de elementos
de várias religiões. Por exemplo, se mencionam exageros no “culto dos anjos” (Cl 2,18),
contra o qual o hino ressalta a soberania de Cristo (tema presente também em Hb
1,5–2,18).
Provavelmente esse culto tinha uma característica “dualista”
(fenômeno ampliado pelo gnosticismo no século II): havia anjos bons e maus. A Carta
afirma que Cristo é superior aos anjos bons por tê-los criado (Cl 1,16;
2,10) e que subjugou os anjos maus pelo
seu sacrifício na cruz (Cl 1,20; 2,14-15).
Além do “culto aos anjos” parece que haviam práticas
ascéticas, talvez relacionadas a proibições alimentares (Cl 2,16) e
mortificações corporais (Cl 2,23), além de elementos dos “cultos de
mistérios”, uma vez que o autor afirma que em Cristo o mistério de Deus foi
revelado (Cl 1,25-29).
A seção parenética da Carta,
além de catálogos de vícios e virtudes (Cl 3,5-17), traz um dos “códigos
domésticos” do Novo Testamento (Cl 3,18-25), com exortações a esposos,
pais e filhos, servos...
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
da Carta aos Colossenses: Composição
harmônica
Como fizemos com as Cartas
Paulinas e os demais livros nesta série, analisaremos a leitura litúrgica
de Colossenses a partir dos dois
critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa
(ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].
Iniciamos nosso percurso pelo critério da composição
harmônica: a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa
litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Nos diversos tempos do Ano Litúrgico nosso livro é proclamado em composição harmônica
nas seguintes celebrações:
Primeiramente, na Festa da Sagrada Família (no Domingo após o Natal) temos como 2ª leitura no Ano A
(e à escolha nos Anos B e C) o texto de Cl 3,12-21 [2], um trecho da
seção parenética da Carta, exortando
à prática das virtudes e concluindo com o “código doméstico”, com conselhos às
famílias. O centro da perícope está no versículo que tomamos como epígrafe
desta postagem: “Sobretudo amai-vos uns
aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição” (v. 14).
Dessa leitura é tomada também a antífona de aclamação ao
Evangelho no Ano A (à escolha nos Anos B e C), com o desejo da paz típico
do Natal: “Que a paz de Cristo reine em vossos corações e ricamente habite
em vós sua palavra” (Cl 3,15a.16a) [3].
Passando ao Ciclo da Páscoa, vale destacar a antífona
da Comunhão da quarta-feira da V semana da Quaresma, um trecho do “prelúdio”
ao “hino” que recorda o sacrifício de Cristo: “Deus nos transportou para o
reino do seu Filho amado, no qual temos a redenção pelo seu sangue, o perdão
dos pecados” (Cl 1,13-14) [4].
Ressurreição do Senhor (Nicolas Bertin) |
No Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor a 1ª opção de 2ª leitura é Cl 3,1-4 [5]. Aqui,
ressuscitados com Cristo pelo Batismo, somos exortados a “alcançar as coisas do alto” (v. 1).
O primeiro versículo dessa perícope é indicado também como aclamação
ao Evangelho na segunda-feira da II semana, no sábado da V semana e na
segunda-feira da VII semana do Tempo da Páscoa: “Se
com Cristo ressurgistes, procurai o que é do alto, onde Cristo está sentado à
direita de Deus Pai” (Cl 3,1) [6].
Da mesma perícope é tomada ainda a antífona da Comunhão
da terça-feira da Oitava da Páscoa: “Se ressuscitastes com o Cristo,
buscai as coisas do alto, onde o Cristo está sentado à direita de Deus: tende
gosto pelas coisas do alto, aleluia!” (Cl 3,1-2) [7].
Nos sábados das semanas III e V da Páscoa, por sua
vez, a antífona de entrada é tomada de outro texto da Carta: “Sepultados
com Cristo no Batismo, fostes também ressuscitados com Ele, porque crestes no
poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos, aleluia!” (Cl 2,12)
[8].
Por fim, na Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo, no
último domingo do Ano Litúrgico, a Igreja nos propõe como 2ª leitura no Ano
C o “hino à soberania de Cristo”: Cl 1,12-20 [9]. Aqui este é
acompanhado do seu “prelúdio” (vv. 12-14), no qual somos convidados a “dar
graças” a Deus, que “nos recebeu no reino
de seu Filho amado” (v. 13). O tema do “reino” retorna no Evangelho da
Missa (Lc 23,35-43), com o pedido do ladrão na cruz: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no
teu reinado” (v. 42).
Passando ao Próprio
dos Santos, temos como 2ª opção de leitura para a Memória facultativa de São José Operário (01 de maio) o texto de Cl
3,14-15.17.23-24 [10], com a exortação a consagrar todas as nossas atividades ao
Senhor, exortação reproposta na antífona da Comunhão da Memória: “Tudo o que fizerdes, por palavras ou atos, fazei-o
em nome do Senhor Jesus Cristo, dando graças ao Pai” (Cl 3,17) [11].
Nos Comuns dos Santos, por sua vez, formulários
com várias opções de leituras ad libitum (à
escolha) para cada “categoria” de santos, há dois textos da nossa Carta:
- Comum dos Pastores: Cl
1,24-29 [12], texto no qual o autor recorda seu ministério, destacando o
anúncio da Palavra: “Eu sirvo, exercendo
o cargo que Deus me confiou de vos transmitir a Palavra de Deus em sua
plenitude” (v. 25).
- Comum dos Santos:
Cl 3,12-17 [13], com a exortação à prática das virtudes, pois “vós sois amados por Deus, sois os seus
santos eleitos” (v. 12).
São José Operário (Michael Adams) |
Concluímos assim a primeira parte da nossa pesquisa sobre a
presença da Carta aos Colossenses nas
celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na segunda parte prosseguiremos a
análise da sua leitura em composição harmônica nas Missas para diversas
necessidades e votivas e nos demais Sacramentos.
Breve bibliografia sobre a Carta aos Colossenses:
BOSCH, Jordi Sánchez. Carta
aos Colossenses e Carta aos Efésios. in:
Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo:
Ave Maria, 2008, pp. 351-387. Coleção: Introdução
ao Estudo da Bíblia, vol. 7.
BROWN, Raymond. Carta
aos Colossenses. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed.
São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 787-812.
DETTWILER, Andreas. A epístola
aos Colossenses. in: MARGUERAT,
Daniel [org.]. Novo Testamento: História,
escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 339-355.
FABRIS, Rinaldo. Carta
aos Colossenses. in: As Cartas de Paulo III: Tradução e comentários. São
Paulo: Loyola, 1992, pp. 35-88. Coleção: Bíblica
Loyola, vol. 6.
HORGAN,
Maurya P. Carta aos Colossenses:
Introdução. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph
A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos.
São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 605-609.
RODRÍGUEZ, Gabriel Pérez. Carta aos Colossenses. in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São
Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 547-558.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1994.
[3] ibid.
[4] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 216.
[5] LECIONÁRIO I, op. cit. A outra opção de
2ª leitura é 1Cor 5,6b-8.
[6] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995.
[7] MISSAL ROMANO, p. 298.
[8] ibid., p. 336.
[9] LECIONÁRIO I, op. cit.
[10] LECIONÁRIO
III: Para as Missas dos Santos,
dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1997. A outra opção de leitura é Gn 1,26–2,3.
[11] MISSAL ROMANO, p. 576.
[12] LECIONÁRIO III, op. cit.
[13] ibid.
Imagens: Wikimedia Commons.
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