“Exulta, cidade de Sião! Rejubila, cidade de Jerusalém. Eis que teu rei vem ao teu encontro” (Zc 9,9).
Em uma postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura vimos que o Livro
de Zacarias (Zc) é na verdade formado por duas obras
de épocas diferentes: os capítulos 1–8, cuja presença na Liturgia analisamos na
referida postagem, e os capítulos 9–14, que serão o conteúdo deste breve
estudo.
1. Breve introdução ao Livro de Zacarias 9–14
Como vimos, os capítulos 1–8 são a obra do “Proto-Zacarias”
(Primeiro Zacarias), contemporâneo do profeta Ageu, cuja preocupação central é
a reconstrução do Templo de Jerusalém (520-518 a. C.).
Os capítulos 9–14, por sua vez, integram a obra do
“Dêutero-Zacarias” (Segundo Zacarias), um profeta anônimo, cuja datação é
incerta. A maioria dos estudiosos o situa no final do século IV a. C., no
contexto das conquistas de Alexandre Magno da Macedônia. Isto faria do
Dêutero-Zacarias o último dos profetas do Antigo Testamento.
Profeta Zacarias (Michelangelo - Capela Sistina) |
Embora alguns temas do Proto-Zacarias sejam retomados, como a
aliança ou as promessas de abundância, desaparece aqui a preocupação central com
o Templo e nenhum personagem é nomeado (como Zorobabel ou Josué, referidos
diversas vezes nos capítulos 1–8).
No capítulos do Dêutero-Zacarias predominam os oráculos
sobre a vinda do Messias, com frequentes referências a outros textos do Antigo
Testamento (AT), sobretudo aos “profetas maiores” (Isaías, Jeremias e Ezequiel)
e aos Salmos.
Podemos dividir esses capítulos em duas partes bem definidas
(a ponto de alguns estudiosos defenderem que a segunda parte seria obra de um
“terceiro-Zacarias”):
1ª parte: Zc
9–11:
a) Zc 9,1–10,2: o
Messias humilde e pacífico contrapõe-se às nações estrangeiras em guerra;
b) Zc 10,3–11,3: espécie
de “novo êxodo”, com um desfile jubiloso diante do qual caem as nações
inimigas, representadas pelo Egito e pela Assíria;
c) Zc 11,4-17:
acusação contra os maus pastores (Deus “quebra” sua aliança com eles).
2ª parte: Zc
12–14:
a) Zc 12–13: Deus
promete proteger Jerusalém dos seus inimigos e o povo se purifica de seus
pecados;
b) Zc 14: combate
escatológico e vitória definitiva do Senhor.
Na primeira parte predomina a poesia e há várias referências
geográficas, enquanto a segunda parte é em prosa e localizada em Jerusalém.
O tema da escatologia é bastante presente na obra, sobretudo
na segunda parte, onde se repete 17 vezes a fórmula escatológica: “Naquele dia
acontecerá...”. Utilizam-se também muitas imagens simbólicas, próprias da
literatura apocalíptica.
Se no Proto-Zacarias tínhamos o Templo como centro, o Dêutero-Zacarias
gira em torno da cidade de Jerusalém: sua purificação em Zc 13,1-2 pode ser considerada o centro da obra. A partir dela o
Reino de Deus se estende por toda a terra.
As referências ao Messias, apresentado como rei, pastor e
servo, tornaram este escrito um dos mais citados no Novo Testamento.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica de Zacarias 9–14: Composição harmônica
Não obstante sua presença relativamente “modesta” nas celebrações litúrgicas, analisaremos a leitura de Zacarias 9–14 seguindo os dois critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].
Começamos por suas leituras em composição harmônica, isto é, quando a escolha do texto se dá em sintonia com o tempo ou festa litúrgica.
a) Celebração Eucarística
Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, antes ainda de
considerarmos as leituras propriamente ditas, cabe destacar duas antífonas
tomadas do nosso livro e entoadas no Ciclo do Natal, ambas anunciando a vinda
do Senhor:
- Antífona de entrada das terças-feiras do Advento
(até 16 de dezembro): “Eis que o Senhor virá e com Ele todos os seus santos,
e haverá uma grande luz naquele dia” (cf. Zc 14,5.7) [2].
- Antífona de Comunhão da Missa da Aurora na Solenidade
do Natal do Senhor: “Exulta, filha de Sião, canta louvores, filha de
Jerusalém! Eis que teu Rei vem a ti: o Santo, o Salvador do mundo” (cf.
Zc 9,9) [3].
Quanto às leituras, nosso livro consta em dois domingos do Tempo Comum, nos quais as leituras do AT são escolhidas em “relação
às perícopes evangélicas” (ELM, n. 106) [4]:
- XIV Domingo do Tempo
Comum do ano A: Zc 9,9-10 [5], sobre o Messias como rei justo e
humilde. Este tema é retomado no Evangelho (Mt 11,25-30), quando Jesus
proclama-se “manso e humilde de coração”.
- XII Domingo do Tempo
Comum do ano C: Zc 12,10-11 [6], o pranto dos habitantes de
Jerusalém por um personagem misterioso, semelhante ao “servo de Iahweh” do Dêutero-Isaías, ao qual “eles feriram de morte” ou, em outras traduções, “eles transpassaram” (cf. Jo 19,37).
Esta leitura é interpretada como profecia da Paixão, que o
próprio Cristo anuncia no Evangelho (Lc 9,18-24), ao mesmo tempo em que
exorta os discípulos a “renunciar a si mesmo, tomar sua cruz cada dia e segui-lo”
(v. 23).
Nas Missas para
diversas necessidades, formulários com várias opções de leituras ad libitum (à escolha), há uma perícope
do nosso livro proposta para a Missa em
tempo de guerra ou calamidade: Zc 9,9-10 [7]. Desta profecia, como
vimos acima, destaca-se no contexto a proclamação do Messias pacífico, que “anunciará a paz às nações”.
Quanto às Missas votivas, formulários em honra dos mistérios do Senhor, da Virgem Maria e dos santos, também com várias opções de leituras, nosso livro ocorre primeiramente na Missa votiva da Santa Cruz, para a qual se sugere a leitura de Zc 12,10-11; 13,6-7 [8].
A perícope recolhe duas profecias messiânicas tradicionalmente aplicadas à Paixão de Cristo: olharão e chorarão por aquele “que eles feriram de morte” (vv. 10-11) e o pastor ferido pelos amigos. Aqui se acrescenta: “Fere o pastor e as ovelhas serão dispersas”, interpretado em alusão ao abandono dos Apóstolos (cf. Mt 26,31).
A mesma perícope de Zc 12,10-11; 13,6-7 é lida na Memória de São Longinos ou Longinho (16 de outubro), celebração própria do Patriarcado de Jerusalém [9]. Este santo é identificado como o soldado que atravessou o lado de Cristo com a lança (cf. Jo 19,34). Para saber mais, confira nossa postagem sobre o culto aos santos do Novo Testamento.
Uma versão mais breve dessa perícope (Zc 12,10; 13,1) consta ainda como 1ª opção de leitura para a Missa votiva de Jesus transpassado pela lança, uma das Missas votivas próprias da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas) [10].
Para a Missa votiva da entrada de Jesus em Jerusalém, por sua vez, uma das “Missas votivas do lugar” da Terra Santa, que pode ser celebrada pelos peregrinos que visitam o Santuário das Palmas em Betfagé, a leitura indicada é Zc 9,9-10, a célebre profecia associada à entrada messiânica de Jesus na Cidade Santa [11]. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
A mesma profecia de Zc 9,9-10 consta, por fim, entre as leituras à escolha da Coletânea de Missas de Nossa Senhora [12]. Aqui é Maria que é interpretada como a “cidade de Sião” ou “filha de Sião” à qual o Senhor vem ao encontro.
“Olharão para quem transpassaram” (cf. Zc 12,10-11) (Crucificação - Simon de Vos) |
b) Liturgia das Horas
Seguindo nosso percurso com a Liturgia das Horas, identificamos
quatro leituras breves de Zacarias
9–14 sob o critério da composição harmônica:
- Hora Média (12h) da
Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (01 de janeiro): Zc 9,9 [13],
Maria como a cidade ou filha de Sião a quem o Senhor vem ao encontro, como
vimos acima;
- Laudes das terças-feiras
da V semana da Quaresma e da Semana Santa: Zc 12,10-11a [14], a
profecia sobre o “servo” ferido de morte, contemplado e pranteado, como vimos
anteriormente;
- Laudes do Domingo
de Ramos e da Paixão do Senhor: Zc 9,9 [15], a profecia sobre o
Messias como rei justo e humilde que “vem
montado num jumento”;
- Hora Média (12h) do
Comum de Nossa Senhora: Zc 9,9 [16], como na Solenidade da Santa Mãe
de Deus.
3. Leitura litúrgica
de Zacarias 9–14: Leitura
semicontínua
Sob o critério da leitura semicontínua - a proclamação dos
principais textos de um livro na sequência -, nosso profeta não é lido na Celebração Eucarística.
Na Liturgia das Horas,
por sua vez, consta no Ofício das Leituras
da terça-feira ao sábado da XXXIII
semana do Tempo Comum, penúltima semana do Ano Litúrgico, onde se destaca a
temática escatológica, muito presente na obra do Dêutero-Zacarias.
O Ofício desta semana é completado pela leitura de outro
profeta pós-exílico, Joel (domingo e
segunda-feira), no qual também se destaca a escatologia.
Os capítulos 9 a 14 de Zacarias são lidos aqui praticamente na íntegra, sendo omitidos apenas os vv. 12b-14 do cap. 12, que são uma repetição sobre o lamento do povo. Os capítulos estão distribuídos em cinco perícopes:
Ofício das Leituras: XXXIII semana do Tempo Comum
Terça-feira: Zc 9,1–10,2 - “Promessa de salvação a Jerusalém”;
Quarta-feira: Zc 10,3–11,3 - “Libertação e retorno de Israel”;
Quinta-feira: Zc 11,4–12,8 - “Parábola sobre os pastores”;
Sexta-feira: Zc 12,9-12a; 13,1-9 - “A salvação estará em Jerusalém”;
Sábado: Zc 14,1-21 - “Tribulação e glória de Jerusalém nos últimos tempos” [17].
No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que infelizmente ainda não foi traduzido para o Brasil, as mesmas cinco perícopes são lidas da terça-feira ao sábado da XIX semana do Tempo Comum no ano par, porém após a profecia de Jonas no domingo e na segunda-feira [18]. Sobre este livro, com efeito, falaremos na próxima postagem desta série.
Profeta Zacarias com o texto de Zc 9,9-10 (Melozzo da Forlì) |
Breve bibliografia sobre Zacarias
9–14:
ABREGO DE LACY, José Maria. O segundo Zacarias (Zc 9–14) e sua obra. in: Os livros proféticos.
2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 247-250. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, vol. 4.
CODY,
Aelred. Zacarias. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.;
MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 706-719.
RIVAS, Pedro Jaramillo Dias. Zacarias. in: OPORTO,
Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo
Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004, pp. 375-387.
SÉRANDOUR,
Arnaud. Zacarias. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel;
NIHAN, Christophe. Antigo Testamento:
História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 546-551.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 134.
[3] ibid., p. 153.
[4] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 103.
[5] LECIONÁRIO
I: Dominical A-B-C. Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[6] ibid.
[7] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[8] ibid.
[9] Fonte: Ofício Litúrgico do Patriarcado Latino de
Jerusalém.
[10] Fonte: Missal Próprio da Congregação da Paixão de
Jesus Cristo. A outra opção de leitura para essa Missa é Ap 5,6-12.
[11] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
[12] LECIONÁRIO para Missas
de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 205.
[13] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da
segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. I, p. 440.
[14] ibid., vol. II, pp. 323.386.
[15] ibid., vol. II, p. 368.
[16] ibid., vol. I, p. 1162; vol. II, p.
1686; vol. III, p. 1523; vol. IV, p. 1535.
[17] ibid., vol. IV, pp. 470.475.479.483.486.
[18] Fonte:
Dei Verbum.
Imagens: Wikimedia Commons.
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