quarta-feira, 8 de maio de 2024

Leitura litúrgica dos Livros de Jonas e Abdias

“Cada um deve afastar-se do mau caminho e de suas práticas perversas” (Jn 3,8).

Embora tradicionalmente seja contado dentro do grupo dos “doze profetas menores”, o Livro de Jonas (Jn) não é um escrito profético, e sim uma narrativa ou “novela bíblica”, semelhante aos Livros de Rute, EsterJudite e Tobias.

Nesta postagem da nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura contemplaremos, pois, esta obra ímpar do Antigo Testamento (AT), mencionada inclusive por Jesus no Evangelho.

No final da postagem, por sua vez, falaremos brevemente da leitura litúrgica do Livro de Abdias (Ab), completando assim o grupo dos “profetas menores”.

1. Breve introdução ao Livro de Jonas

“Jonas, filho de Amitai” (ou Amati) é citado como profeta em 2Rs 14,25, tendo vivido no tempo em que Jeroboão II era rei de Israel (782-753 a. C.). O autor anônimo do Livro de Jonas faz uma “homenagem” a este profeta, emprestando seu nome para o personagem principal da sua narrativa, uma “parábola” de caráter didático.

Profeta Jonas
(Michelangelo - Capela Sistina)

A linguagem de Jonas, com efeito, nos remete ao período pós-exílico, sendo datado entre o final do período persa e o início da época helenista, ou seja, entre os séculos V e IV a. C., próximo a Joel e ao Dêutero-Zacarias (Zc 9–14).

Nesse sentido, a referência à cidade de Nínive é simbólica, dado que esta cidade, antiga capital do Império Assírio, havia sido destruída em 612 a. C., como anunciado pelo profeta Naum. Nínive aqui representa os povos estrangeiros, que Deus também chama a conversão.

Cada um dos quatro capítulos da narrativa compõe uma cena:
a) Jn 1: Jonas no mar;
b) Jn 2: Jonas no ventre do monstro marinho;
c) Jn 3: Jonas dentro de Nínive;
d) Jn 4: Jonas fora de Nínive.

Na primeira cena, após Deus enviá-lo a Nínive para pregar (Jn 1,1-2), Jonas foge, atraindo a ira divina sobre o barco. Note-se que o profeta é a causa do infortúnio, mas permanece dormindo, enquanto os marinheiros estrangeiros tratam-no bem e são piedosos, rezando a Deus e até oferecendo-lhe um sacrifício (Jn 1,16).

Jonas, lançado ao mar, é engolido por uma espécie de “monstro marinho”, dentro do qual permanece por três dias (Jn 2,1), linguagem simbólica que será interpretada como profecia da Ressurreição de Cristo (cf. Mt 12,40). No ventre do monstro Jonas entoa uma súplica, inspirada nos salmos.

O início da terceira cena retoma o início do livro, repetindo a ordem de Deus (Jn 3,1-2). Desta vez o profeta obedece e anuncia a mensagem à cidade: “Ainda quarenta dias e Nínive será destruída” (Jn 3,4). Mais uma vez o autor insiste na retidão dos estrangeiros: precisariam “três dias para percorrer a cidade”, mas bastou um dia para que o povo se arrependesse de seus pecados, fazendo jejum e penitência. Assim, a terceira cena termina com o perdão de Deus (Jn 3,10).

Por fim, Jonas senta-se fora da cidade, esperando sua destruição. Como esta não acontece, tem “um grande desgosto” e “fica irado”, a ponto de lamentar-se com Deus. Este conclui a obra proclamando seu amor por todas as criaturas, como ironicamente o próprio Jonas admite, citando Ex 34,6-7: “És um Senhor benigno e misericordioso, paciente e cheio de bondade, e que facilmente perdoas a punição” (Jn 4,2).

A maioria dos estudiosos entende o Livro de Jonas como uma crítica às reformas de Esdras e Neemias, que “fecharam” o Judaísmo às influências externas, proibindo casamentos com estrangeiros e realizando a construção do “muro” de Jerusalém, literal e figurativamente. Jonas é imagem do povo de Israel que precisa converter-se, abrindo-se à salvação universal desejada por Deus.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

Jonas escapa do monstro marinho
(Pieter Lastman) 

2. Leitura litúrgica de Jonas: Composição harmônica

A narrativa de Jonas tem uma presença bastante “modesta” na Liturgia do Rito Romano, como veremos ao analisar sua leitura seguindo os dois critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].

Começamos, naturalmente, pela composição harmônica: a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou festa litúrgica.

Sob esse critério há quatro leituras de Jonas na Celebração Eucarística. Consideremos primeiramente suas duas leituras próprias (que devem necessariamente ser proclamadas) no ciclo do Ano Litúrgico:

- Quarta-feira da I semana da Quaresma: Jn 3,1-10 [2]. Nos dias de semana desse tempo “as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua; elas tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal” (ELM, n. 98) [3].

Assim, o relato da conversão dos ninivitas após a pregação de Jonas está em composição harmônica com o Evangelho do dia (Lc 11,29-32), no qual Jesus critica os seus contemporâneos, que buscam sinais, mas não querem converter-se, comparando-os aos ninivitas: “Nenhum sinal lhes será dado, a não ser o sinal de Jonas”.

- III Domingo do Tempo Comum do ano B: Jn 3,1-5.10 [4]. Aqui também as leituras do AT foram escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” (ELM, n. 106) [5]. Assim, a pregação de Jonas em Nínive está em sintonia com o início da pregação de Jesus no Evangelho de Marcos (Mc 1,14-20): “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (v. 15).

Na sequência temos duas leituras ad libitum (à escolha dentre várias opções de textos) do nosso livro nas Missas para diversas necessidades:

- Missa pela evangelização dos povos: Jn 3,10–4,11 [6], a cena final da narrativa, quando Deus proclama seu amor por todos os povos;

- Missa pelo perdão dos pecados: Jn 3,1-10 [7], o relato da conversão dos ninivitas, como na quarta-feira da I semana da Quaresma.

Pregação de Jonas aos ninivitas (Andrea Vaccaro)

Além dessas quatro leituras, cabe destacar a antífona de entrada da Missa de Maria, Saúde dos enfermos, formulário n. 44 da Coletânea de Missas de Nossa Senhora, para o Tempo Comum, que une um verso da profecia de Jonas ao de um salmo: “Eu sou a salvação do meu povo, diz o Senhor. Quando chamar por mim nas suas tribulações, Eu ouvirei a sua voz” (Sl 34,3; Jn 2,3) [8].

3. Leitura litúrgica de Jonas: Leitura semicontínua

Sob o critério da leitura semicontínua - proclamação dos principais textos de um livro na sequência -, nosso “profeta” é lido na Celebração Eucarística em três dias: de segunda a quarta-feira da XXVII semana do Tempo Comum do ano ímpar.

Como vimos em postagens anteriores, nesta semana leem-se três dos últimos profetas do AT: além de Jonas, Malaquias (quinta-feira) e Joel (sexta-feira e sábado).

A narrativa de Jonas é proclamada na íntegra, sendo omitida apenas a “súplica” que o personagem entoa no capítulo 2, entoada como “salmo” na segunda-feira, como veremos adiante. As três perícopes nas quais se divide a leitura semicontínua são:

XXVII semana do Tempo Comum (Ano ímpar)
Segunda-feira: Jn 1,1–2,1.11;
Terça-feira: Jn 3,1-10;
Quarta-feira: Jn 4,1-11 [9].

Na Liturgia das Horas não há leituras de Jonas, ao menos não no ciclo anual. No ciclo bienal do Ofício das Leituras, por sua vez (o qual infelizmente ainda não foi traduzido para o Brasil), as mesmas perícopes da Missa são lidas por dois dias, no domingo e na segunda-feira da XIX semana do Tempo Comum no ano par, precedendo os capítulos 9 a 14 de Zacarias, lidos de terça a sábado.

Ofício das Leituras: XIX semana do Tempo Comum (Ano par)
Domingo: Jn 1,1–2,1.11 - Vocação, fuga e naufrágio de Jonas;
Segunda-feira: Jn 3,1–4,11 - Conversão dos ninivitas e queixas de Jonas [10].

4. Leitura litúrgica de Jonas: Cântico

Como afirmamos anteriormente, o cântico de Jonas no ventre do “monstro marinho” é entoado como “salmo” acompanhando a leitura semicontínua do livro na Celebração Eucarística, mais especificamente na segunda-feira da XXVII semana do Tempo Comum no ano ímpar.

Os versos selecionados do cântico são: Jn 2,2-5.8 [11]. Aqui se inclui o v. 2, que tecnicamente não faz parte do cântico, sendo sua introdução. Os vv. 6-7 e 9-10 são omitidos para não prolongar demais o cântico, embora do v. 7 seja tomado o refrão, como vemos a seguir:

Do fundo do abismo, do ventre do peixe,
Jonas rezou ao Senhor, o seu Deus,
a seguinte oração:
R. Retirastes minha vida do sepulcro, ó Senhor!

Na minha angústia clamei por socorro,
pedi vossa ajuda do mundo dos mortos
e vós me atendeste. R.

Senhor, me lançastes no seio dos mares,
cercou-me a torrente, vossas ondas passaram
com furor sobre mim. R.

Então, eu pensei: eu fui afastado
para longe de vós; nunca mais hei de ver
vosso Templo sagrado. R.

E quando minhas forças em mim acabavam,
do Senhor me lembrei, chegando até vós
a minha oração. R.

Jonas é lançado ao mar
(Afresco das Catacumbas de Marcelino e Pedro, Roma)

Apêndice: Leitura litúrgica do Livro de Abdias

Uma vez concluída a análise da leitura litúrgica dos demais “profetas menores”, cabe dizer uma palavra a respeito do Livro de Abdias (Ab), o mais breve dos escritos do AT, com apenas 21 versículos.

A obra compõe-se de uma série de breves oráculos contra o reino de Edom, o qual não teria socorrido Judá em um momento de necessidade. Edom e Judá, associados aos irmãos Esaú e Jacó, tinham uma relação complexa desde o tempo do rei Davi.

O “momento de necessidade” parece ser a destruição de Judá pelo Império Babilônico (587 a. C.). Não obstante, alguns dos breves oráculos da obra podem ser de épocas posteriores, após o exílio, dadas as semelhanças com outros escritos bíblicos.

O próprio nome do profeta, Abdias (às vezes transliterado como Obadias) é simbólico, significando “servo de Iahweh”. O mesmo vale para Edom, que poderia representar as “nações inimigas” em geral.

A primeira parte (vv. 1-7) é mais centrada na condenação de Edom, sendo relacionada com o capítulo 49 de Jeremias, enquanto a segunda parte (vv. 8-21) é mais ampla, com oráculos contra as nações e o anúncio do “dia do Senhor”. Os vv. 19-21, que anunciam a “restauração de Judá”, poderiam ser um acréscimo posterior, da época do Dêutero-Zacarias (Zc 9–14).

Leitura litúrgica de Abdias: Leitura semicontínua

No ciclo ordinário da Liturgia não há leituras de Abdias: “No Elenco das Leituras da Missa para os dias de semana do Próprio do Tempo entram quase todos os livros do Antigo Testamento. Omitiram-se unicamente alguns livros proféticos muito breves (Abdias, Sofonias)...” (ELM, n. 110) [12].

A única ocorrência do nosso livro no Rito Romano encontra-se na Liturgia das Horas, mais especificamente no ciclo bienal do Ofício das Leituras, que já mencionamos acima.

Aqui lê-se a profecia de Abdias na íntegra no XVIII Domingo do Tempo Comum do ano par. A leitura prossegue ao longo da semana com outros dois profetas menores: Joel (segunda a quinta) e Malaquias (sexta e sábado).

Ofício das Leituras: XVIII semana do Tempo Comum (Ano par)
Domingo: Ab 1-21 - “Julgamento contra Edom” [13].

Profeta Abdias (James Tissot)

Breve bibliografia sobre o Livro de Jonas:

ABREGO DE LACY, José Maria. O livro do profeta Jonas. in: Os livros proféticos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 243-247. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, vol. 4.

CERESKO, Anthony R. Jonas. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 1139-1146.

NKAUF, Ernst Axel. Jonas. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 510-518.

RIVAS, Pedro Jaramillo Dias. Jonas. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004, pp. 339-342.

Breve bibliografia sobre o Livro de Abdias:

ABREGO DE LACY, José Maria. O profeta Abdias e a sua obra. in: op. cit., pp. 182-187.

MACCHI, Jean-Daniel. Abdias. in: RÖMER; MACCHI; NIHAN, op. cit., pp. 504-509.

MALLON, Elias D. Abdias. in: BROWN, op. cit., pp. 803-806.

RIVAS, Pedro Jaramillo Dias. Abdias. in: OPORTO; GARCÍA, op. cit., pp. 335-338.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995.
[3] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[5] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 103.
[6] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[7] ibid.
[8] MISSAS de Nossa Senhora. Edições CNBB: Brasília, 2016, p. 224.
[9] LECIONÁRIO II, op. cit.
[10] Fonte: Dei Verbum.
[11] LECIONÁRIO II, op. cit.
[12] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 106.
[13] Fonte: Dei Verbum.

Imagens: Wikimedia Commons.

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