Nesta Solenidade de Corpus Christi resgatamos a Homilia do Papa Bento XVI (†2022) na Missa dessa Solenidade em 2009 e sua reflexão durante a oração do Ângelus no domingo seguinte, a partir das leituras do Ano B: Ex 24,3-8; Sl 115; Hb 9,11-15; Mc 14,12-16.22-26.
Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
Santa Missa e Procissão Eucarística
Homilia do Papa Bento XVI
Átrio da Basílica de São João do Latrão
Quinta-feira, 11 de junho de 2009
“Isto é o meu Corpo... Isto é o meu Sangue”.
Queridos irmãos e irmãs!
Estas palavras que Jesus
pronunciou na Última Ceia são repetidas todas as vezes que se renova o
Sacrifício eucarístico. Ouvimo-las há pouco no Evangelho de Marcos (Mc
14,22.24) e ressoam com singular poder evocativo hoje, Solenidade do Corpus Christi. Elas conduzem-nos idealmente ao Cenáculo,
fazem-nos reviver o clima espiritual daquela noite quando, celebrando a Páscoa
com os seus, o Senhor antecipou no mistério o sacrifício que se consumaria no
dia seguinte na cruz. A instituição da Eucaristia parece-nos assim como que a
antecipação e a aceitação por parte de Jesus da sua morte. Escreve a respeito
Santo Efrém, o Sírio: durante a ceia Jesus imolou-se a si mesmo; na cruz Ele
foi imolado pelos outros (cf. Hino
sobre a crucificação, 3, 1).
“Isto é o meu Sangue”. É evidente aqui a referência à
linguagem sacrifical de Israel. Jesus apresenta-se como o sacrifício verdadeiro
e definitivo, no qual se realiza a expiação dos pecados que, nos ritos do
Antigo Testamento, nunca tinha sido totalmente cumprido. A esta expressão
seguem-se outras duas muito significativas. Antes de tudo, Jesus Cristo diz que
o seu sangue é “derramado em favor de muitos”, com uma referência
compreensível aos cânticos do Servo de Deus, que se encontram no Livro de
Isaías (cf. Is 53). Com o acréscimo “sangue da aliança” Jesus faz ainda sobressair que, graças
à sua morte, se realiza a profecia da nova aliança fundada na fidelidade e no
amor infinito do Filho que se fez homem, por isso uma aliança mais forte que
todos os pecados da humanidade. A antiga aliança tinha sido sancionada no Sinai
com um rito sacrifical de animais, como ouvimos na 1ª leitura, e o povo eleito,
libertado da escravidão do Egito, tinha prometido cumprir todos os mandamentos
dados pelo Senhor (cf. Ex 24,3).
Israel, na verdade, com a
construção do bezerro de ouro, imediatamente mostrou-se incapaz de se manter
fiel a esta promessa e assim, ao pacto estabelecido, que aliás em seguida
transgrediu com muita frequência, adaptando ao seu coração de pedra a Lei que
lhe deveria ter ensinado o caminho da vida. Mas o Senhor não faltou à sua
promessa e, através dos profetas, preocupou-se por recordar a dimensão interior
da aliança, e anunciou que escreveria uma nova nos corações dos seus fiéis (cf. Jr 31,33), transformando-os com o dom do
Espírito (cf. Ez 36,25-27). E foi durante a Última Ceia
que estabeleceu com os discípulos e com a humanidade esta nova aliança,
confirmando-a não com sacrifícios de animais como acontecia no passado, mas com
o seu Sangue, que se tornou “sangue
da nova aliança”. Portanto,
fundou-a na própria obediência que, como eu disse, é mais forte que todos os
nossos pecados.
Isto é bem evidenciado na 2ª
leitura, tirada da Carta aos
Hebreus, na qual o autor sagrado declara que Jesus é “mediador de uma nova aliança”
(Hb 9,15). Tornou-se mediador graças ao seu sangue ou, mais exatamente,
graças ao dom de si mesmo, que dá pleno valor ao derramamento do seu sangue. Na
cruz, Jesus é ao mesmo tempo vítima e sacerdote: vítima digna de Deus porque é
sem mancha, e sumo sacerdote que se oferece a si mesmo, sob o impulso do
Espírito Santo, e intercede pela humanidade inteira. A Cruz é por conseguinte
mistério de amor e de salvação, que nos purifica - como
diz a Carta aos Hebreus - das “obras mortas”, isto é, dos
pecados, e nos santifica esculpindo a aliança nova no nosso coração; a
Eucaristia, renovando o sacrifício da Cruz, torna-nos capazes de viver
fielmente a comunhão com Deus.
Queridos irmãos e irmãs que saúdo
todos com afeto, começando pelo Cardeal Vigário e pelos outros Cardeais e
Bispos presentes como o povo eleito reunido na assembleia do Sinai, também nós
esta tarde queremos reafirmar a nossa fidelidade ao Senhor. Há alguns dias, na abertura do Congresso Diocesano anual,
ressaltei a importância de permanecer, como Igreja, à escuta da Palavra de Deus
na oração e perscrutar as Escrituras, sobretudo com a prática da lectio divina, da leitura
meditada e adorante da Bíblia. Sei que muitas iniciativas foram promovidas a
este respeito nas paróquias, nos seminários, nas comunidades religiosas, no
âmbito das confrarias, das associações e dos movimentos apostólicos, que
enriquecem a nossa comunidade diocesana. Aos membros destes numerosos
organismos eclesiais dirijo a minha saudação fraterna. A vossa numerosa
presença nesta celebração, queridos amigos, ressalta que a nossa comunidade,
caracterizada por uma pluralidade de culturas e de experiências diversas, é
plasmada por Deus como “seu” povo, como o único Corpo de Cristo, graças à nossa
sincera participação na dupla mesa da Palavra e da Eucaristia. Alimentados de
Cristo, nós, seus discípulos, recebemos a missão de ser “a alma” desta nossa
cidade (cf. Carta a
Diogneto, 6; cf. também Lumen gentium, n. 38) fermento de renovação, pão “partido”
para todos, sobretudo para quantos se encontram em situações de mal-estar, de
pobreza e de sofrimento físico e espiritual. Tornemo-nos testemunhas do seu
amor.
Dirijo-me particularmente a vós,
queridos sacerdotes, que Cristo escolheu para que juntamente com Ele possais
viver a vossa vida como sacrifício de louvor para a salvação do mundo. Só da
união com Jesus podeis tirar aquela fecundidade espiritual que é geradora de
esperança no vosso ministério pastoral. São Leão Magno recorda que “a nossa
participação no Corpo e no Sangue de Cristo não tende para se tornar senão o
que recebemos” (Sermo 12, De
Passione 3, 7, PL 54).
Se isto é verdadeiro para cada cristão, com mais razão o é para nós sacerdotes.
Tornar-se Eucaristia! Seja precisamente este o nosso constante desejo e
compromisso, para que a oferta do Corpo e do Sangue do Senhor que fazemos no
altar seja acompanhada pelo sacrifício da nossa existência. Todos os dias,
haurimos do Corpo e Sangue do Senhor aquele amor livre e puro que nos torna
ministros dignos de Cristo e testemunhas da sua alegria. É quanto os fiéis
esperam do sacerdote: isto é, o exemplo de uma autêntica devoção à Eucaristia;
gostam de vê-lo transcorrer longas pausas de silêncio e de adoração diante de
Jesus, como fazia o santo Cura d’Ars, que recordaremos de modo particular
durante o já iminente Ano Sacerdotal.
São João Maria Vianney gostava de
dizer aos seus paroquianos: “Vinde à Comunhão... É verdade que não sois dignos
dela, mas dela tendes necessidade” (Bernard Nodet, Le curé d'Ars: Sa pensée - Son
coeur, ed. Xavier Mappus,
Paris, 1995, p. 119). Conscientes de sermos inadequados por causa dos pecados,
mas com a necessidade de nos alimentarmos do amor que o Senhor nos oferece no
sacramento eucarístico, renovemos esta tarde a nossa fé na presença real de
Cristo na Eucaristia. Não se deve dar por certa esta fé! Hoje corre-se o risco
de uma secularização rastejante também no interior da Igreja, que se pode
traduzir em um culto eucarístico formal e vazio, em celebrações sem aquela
participação do coração que se expressa em veneração e respeito pela Liturgia.
É sempre forte a tentação de reduzir a oração a momentos superficiais e
apressados, deixando-se subjugar pelas atividades e preocupações terrenas.
Quando daqui a pouco repetirmos o Pai-nosso, a oração por excelência, diremos: “O
pão nosso de cada dia nos dai hoje”, pensando naturalmente no pão de todos os
dias. Mas este pedido contém algo mais profundo. A palavra grega epioúsios, que traduzimos com “quotidiano”,
poderia aludir também ao pão “supra-substancial”, ao pão “do mundo futuro”.
Alguns Padres da Igreja viram aqui uma referência à Eucaristia, o pão da vida
eterna do mundo novo, que nos é dado já hoje na Santa Missa, para que desde
agora o mundo futuro tenha início em nós. Portanto, com a Eucaristia o céu vem
à terra, o amanhã de Deus desce ao presente e o tempo é como que abraçado pela
eternidade divina.
Amados irmãos e irmãs, como todos
os anos, no final da Santa Missa, terá lugar a tradicional procissão
eucarística e elevaremos, com as orações e os cânticos, uma súplica coral ao
Senhor presente na hóstia consagrada. Nós lhe diremos em nome de toda a Cidade:
permanece conosco, Jesus, doa-te a nós e dá-nos o pão que nos alimenta para a
vida eterna! Liberta este mundo do veneno do mal, da violência e do ódio que
polui as consciências, purifica-o com o poder do teu amor misericordioso. E tu,
Maria, que foste mulher “eucarística” durante toda a tua vida, ajuda-nos a
caminhar unidos rumo à meta celeste, alimentados pelo Corpo e Sangue de Cristo,
pão de vida eterna e medicina da imortalidade divina. Amém!
Papa Bento XVI
Ângelus
Domingo, 14 de junho de 2009
Queridos irmãos e irmãs!
Celebra-se hoje em diversos
países, entre os quais a Itália, o Corpus
Christi, a festa da
Eucaristia, na qual o Sacramento do Corpo do Senhor é levado solenemente em
procissão. Que significa para nós esta festa? Ela não faz pensar só no aspecto
litúrgico; na realidade, o Corpus
Christi é um dia que inclui a
dimensão cósmica, o céu e a terra. Evoca antes de tudo - pelo
menos no nosso hemisfério - esta estação tão bonita e perfumada na
qual a primavera começa a deixar lugar ao verão, o sol é forte no céu e nos
campos amadurece o trigo. As festas da Igreja,
assim como as festas judaicas, estão
relacionadas com o ritmo do ano solar, da sementeira e das colheitas. Em particular,
isto sobressai na Solenidade de hoje, em cujo centro está o sinal do pão, fruto
da terra e do céu. Por isso o pão eucarístico é o sinal visível d’Aquele no
qual céu e terra, Deus e homem se tornaram um só. E isto mostra que a relação
com as estações não é para o Ano Litúrgico só um aspecto exterior.
A Solenidade do Corpus Christi está intimamente ligada à Páscoa e ao
Pentecostes: a Morte e Ressurreição de Jesus e a efusão do Espírito Santo são
os seus pressupostos. Além disso, está imediatamente relacionada com a festa da
Trindade, celebrada no domingo passado. Unicamente porque o próprio Deus é
relação, pode haver relacionamento com Ele; e só porque é amor, pode amar e ser
amado. Assim o Corpus Christi é uma manifestação de Deus, uma
confirmação de que Deus é amor. De uma forma única e peculiar, esta festa
fala-nos do amor divino, daquilo que é e do que faz. Diz-nos, por exemplo, que Ele
se regenera ao doar-se, se recebe ao entregar-se, nunca falta e não se consuma - como
canta um hino de Santo Tomás de Aquino: “nec sumptus consumitur” (Sequência
Lauda Sion). O amor
transforma todas as coisas e, portanto, compreende-se que no centro da hodierna
festa do Corpus Christi esteja o mistério da
transubstanciação, sinal de Jesus Cristo que transforma o mundo. Olhando para
Ele e adorando-o, nós dizemos: sim, o amor existe, e dado que existe, as
coisas podem melhorar e nós podemos ter esperança. É a esperança que provém do
amor de Cristo que nos dá a força para viver e enfrentar as dificuldades. Por
isso cantamos, enquanto levamos em procissão o Santíssimo Sacramento; cantamos
e louvamos a Deus que se revelou ao esconder-se no sinal do pão repartido.
Todos precisamos deste Pão, porque o caminho rumo à liberdade, à justiça e à
paz é longo e cansativo.
Podemos imaginar com quanta fé e
amor a Virgem Maria recebeu e adorou no seu coração a sagrada Eucaristia! Cada
vez era para ela como reviver todo o mistério do seu Filho Jesus: desde a Concepção
até à Ressurreição. O meu venerado e amado predecessor João Paulo II chamou-lhe
“mulher eucarística”. Aprendamos dela a renovar continuamente a nossa comunhão
com o Corpo de Cristo, para nos amarmos uns aos outros como Ele nos amou.
Confira também a homilia do Papa Bento XVI no Corpus Christi de 2012 clicando aqui.
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