quarta-feira, 17 de abril de 2024

Leitura litúrgica dos Livros de Ageu e Zacarias 1–8

“Voltai-vos para mim, diz o Senhor dos exércitos, e Eu me voltarei para vós” (Zc 1,3).

Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura já analisamos os escritos dos “profetas menores” do século VIII a. C. (Amós, Oseias e Miqueias) e do século VII a. C. (Sofonias, Naum e Habacuc).

Nesta postagem gostaríamos de dar continuidade a esta proposta com dois livros proféticos que remontam ao século VI a. C.: o Livro de Ageu (Ag) e os capítulos 1–8 do Livro de Zacarias (Zc).

1. Breve introdução aos Livros de Ageu e Zacarias 1–8

Como vimos em nossa postagem sobre os Livros de Esdras e Neemias, em 539 a. C. o rei persa Ciro II derrotou o Império Babilônico, decretando o fim do exílio do povo de Israel e autorizando a reconstrução do Templo de Jerusalém, que havia sido destruído em 587 a. C.

Profeta Ageu (James Tissot)

O início dos Livros de Ageu e Zacarias no situa “no segundo ano do rei Dario” (cerca de 520 a. C.). Dario I, com efeito, deu continuidade à política de Ciro II, incentivando o retorno dos exilados.

A reconstrução do Templo, porém, enfrentou várias dificuldades. Assim, os profetas Ageu e Zacarias - citados duas vezes no Livro de Esdras (Esd 5,1; 6,14) - motivaram o povo a prosseguir os trabalhos (que só seriam concluídos em 515 a. C.), exortando o governador Zorobabel e o sumo-sacerdote Josué.

O Livro de Ageu, com apenas dois capítulos, pode ser subdividido em quatro seções que se intercalam:
- Seções A (Ag 1,1-15) e C (Ag 2,10-19): o povo se preocupa apenas em construir belas casas para si, por isso “os céus se fecharam”; se retomarem os trabalhos do Templo, Deus os abençoará;
- Seções B (Ag 2,1-9) e D (Ag 2,20-23): promessas escatológicas - a glória do novo Templo superará o antigo e Deus protegerá seu povo das nações inimigas.

Quanto ao Livro de Zacarias, suas grandes diferenças permitem identificar a existência de dois livros, de autores e épocas diferentes:
- Zc 1–8: “Proto-Zacarias” (Primeiro Zacarias), contemporâneo de Ageu, preocupado com o Templo;
- Zc 9–14: “Dêutero-Zacarias” (Segundo Zacarias), provavelmente do século IV a. C., com uma série de profecias messiânicas.

Embora alguns temas apareçam nas duas partes, nos deteremos aqui no Proto-Zacarias (a segunda parte do livro receberá uma postagem própria). Seus oito capítulos podem ser subdivididos em duas seções:
a) Zc 1–6: após um breve prólogo exortando à conversão (Zc 1,1-6), são descritas oito visões (Zc 1,7–6,8), concluindo com uma “coroação” (Zc 6,9-15);
b) Zc 7–8: oráculos sobre o jejum e a salvação messiânica.

As visões da primeira parte, marcadas pela linguagem simbólica própria da literatura apocalíptica, provavelmente eram na sua origem sete, em círculos concêntricos. O núcleo está na visão do candelabro, símbolo do Templo reconstruído, e das duas oliveiras, aqueles que são ungidos para protegê-lo, isto é, os reis e sacerdotes.

O Templo ocupa efetivamente o centro da narrativa: a partir dele tudo o mais será restaurado, “o Senhor voltará” e a iniquidade será desterrada.

A quarta visão (cap. 3) é provavelmente um acréscimo posterior, para destacar a atuação dos sacerdotes. Da mesma forma, Zc 6,9-15 provavelmente seria a princípio um relato de coroação de Zorobabel, como uma espécie de restauração da monarquia, que teria sido alterado para dar ênfase a Josué, ou seja, ao sacerdócio.

Na segunda parte do Proto-Zacarias (cap. 7–8) a grande questão é o jejum: este deve ser acompanhado pela prática da justiça (Zc 7,9-10), sendo ocasião também para a alegria (Zc 8,18-19). A referência aos quatro jejuns ao longo do ano (Zc 8,19) inspiraria a tradição cristã das “Quatro Têmporas”.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

Profeta Zacarias (James Tissot)

2. Leitura litúrgica de Ageu e Zacarias 1–8: Composição harmônica

Como fizemos com os demais livros estudados nesta série, analisaremos a presença de Ageu e Zacarias 1–8 nas celebrações litúrgicas do Rito Romano seguindo os dois critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].

Começamos pela leitura em composição harmônica: a escolha do texto em sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, antes ainda de entrarmos nas leituras, cabe destacar duas antífonas do Livro de Ageu indicadas para o Tempo do Advento:

- Antífona da Comunhão do dia 17 de dezembro: “Eis que vem o desejado de todas as nações: Ele encherá de glória a casa do Senhor” (cf. Ag 2,8) [2]. A expressão “desejado das nações” será retomada nas Antífonas do Ó, recitadas nestes dias de preparação próxima para o Natal do Senhor.

- Antífona da Comunhão da Missa de Maria, filha de Israel, formulário n. 1 da Coletânea de Missas de Nossa Senhora, para o Tempo do Advento: “Exulta e alegra-te de todo coração, filha de Jerusalém. Eis que vem o desejado de todos os povos: e encherá de glória a casa do Senhor” (Sf 3,14; Ag 2,8) [3]. Trata-se da mesma antífona acima, unida a uma frase da profecia de Sofonias.

Passando às leituras em composição harmônica, identificamos primeiramente três perícopes do Proto-Zacarias:

No Comum de Nossa Senhora, formulário com várias opções de textos para as Missas em honra da Virgem Maria, é indicada como leitura ad libitum (à escolha) Zc 2,14-17 [4]. Trata-se de um convite à alegria, semelhante a Sf 3,14-18a, com a promessa de que o Senhor vai habitar no meio do seu povo.

Por sua relação com o Templo, a mesma perícope de Zc 2,14-17 é lida na Memória da Apresentação de Maria (21 de novembro) [5], e, por sua exortação à alegria, consta como 1ª opção de leitura na Missa de Maria, causa da nossa alegria, formulário n. 34 da Coletânea de Missas de Nossa Senhora, para o Tempo Comum [6].

Maquete do Segundo Templo de Jerusalém

Na Missa pela evangelização dos povos, uma das Missas para diversas necessidades, temos como leitura ad libitum o texto de Zc 8,20-23 [7], anunciando a reunião de todos os povos em Jerusalém.

Alguns dos textos da Missa pela evangelização dos povos, incluindo a leitura de Zc 8,20-23, são lidos na Missa de São Pedro em Jope, “Missa votiva do lugar” própria do Santuário de São Pedro em Jaffa [8]. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.

b) Demais sacramentos

Além da Celebração Eucarística, propõe-se uma leitura à escolha do Proto-Zacarias na celebração do sacramento da Reconciliação: Zc 1,1-6 [9], o prólogo do livro, exortando à conversão: “Voltai-vos para mim, diz o Senhor dos exércitos, e Eu me voltarei para vós” (v. 3).

c) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas, por sua vez, identificamos cinco leituras breves de Ageu e de Zacarias 1–8, sempre na Hora Média:

- Hora Média (12h) das quintas-feiras do Advento até a III semana e do dia 22 de dezembro: Ag 2,6b.9 [10], sobre a glória do novo Templo que supera o antigo. Aqui a afirmação interpreta-se em relação à nova aliança inaugurada por Cristo, ideia reforçada pelo anúncio da paz messiânica: “Estabelecerei a paz”.

- Hora Média (15h) do dia 04 de janeiro e da sexta-feira após a Epifania: Zc 8,7-8 [11], a promessa da reunião dos “dispersos de Israel” em Jerusalém: “Serão o meu povo e Eu serei seu Deus, em verdade e com justiça”.

- Hora Média (15h) da Solenidade da Epifania do Senhor (06 de janeiro): Zc 2,15 [12], o anúncio de que “muitas nações se aproximarão do Senhor”, representadas nesta Solenidade pelos “magos do Oriente” (cf. Mt 2,1-12).

- Hora Média (12h) das quartas-feiras da Quaresma até a IV semana: Zc 1,3b-4b [13], a exortação à conversão: “Abandonai vossos maus caminhos e vossos maus pensamentos”.

- Hora Média (15h) do Comum da dedicação de igreja, no Tempo Comum (2ª opção): Ag 6a.7.9 [14]. A glória de Deus e a paz presentes no Templo da primeira aliança prefiguram o templo cristão, celebrado neste Comum.

3. Leitura litúrgica de Ageu e Zacarias 1–8: Leitura semicontínua

a) Celebração Eucarística

Sob o critério da leitura semicontínua, isto é, da proclamação dos principais textos de um livro na sequência, nossos dois profetas são lidos na Celebração Eucarística nos dias de semana do Tempo Comum, nos quais se leem alternadamente livros do Antigo e do Novo Testamento, segundo sua extensão (cf. ELM, n. 110) [15].

Ambos os profetas da reconstrução do Templo são lidos entre a XXV e a XXVI semanas do Tempo Comum no ano ímpar, tendo como “moldura” outros dois livros do mesmo período: Esdras (segunda a quarta-feira da XXV semana) e Neemias (quarta e quinta-feira da XXVI semana).

Zorobabel e Josué, promotores da reconstrução do Templo
(Catedral de Liverpool, Inglaterra)

As duas perícopes de Ageu e as três perícopes de Zacarias 1–8 selecionadas aqui são:

XXV semana do Tempo Comum (Ano ímpar)
Quinta-feira: Ag 1,1-8;
Sexta-feira: Ag 1,15b–2,9;
Sábado: Zc 2,5-9.14-15a.
XXVI semana do Tempo Comum (Ano ímpar)
Segunda-feira: Zc 8,1-8;
Terça-feira: Zc 8,20-23 [16].

b) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas, por sua vez, os dois livros são lidos no Ofício das Leituras da XXVIII semana do Tempo Comum, de domingo a quinta-feira, sucedidos por outro profeta pós-exílico, Malaquias (sexta-feira e sábado).

Aqui o Livro de Ageu é lido na íntegra, dada sua brevidade, enquanto que dos primeiros oito capítulos de Zacarias são selecionados três textos:

Ofício das Leituras: XXVIII semana do Tempo Comum
Domingo: Ag 1,1–2,9 - “Incentivo à reconstrução do templo e a glória futura do mesmo”;
Segunda-feira: Ag 2,10-23 - “Bênçãos futuras. Promessa feita a Zorobabel”;
Terça-feira: Zc 1,1–2,4 - “Visão sobre Jerusalém a ser reedificada”;
Quarta-feira: Zc 3,1–4,14 - “Promessas feitas ao príncipe Zorobabel e ao sumo-sacerdote Josué”;
Quinta-feira: Zc 8,1-17.20-23 - “Promessas de salvação em Sião” [17].

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que infelizmente ainda não foi traduzido para o Brasil, os dois livros são lidos por seis dias, da quarta-feira da XI semana à segunda-feira da XII semana do Tempo Comum no ano par, servindo de “interlúdio” durante a leitura do Livro de Esdras.

A única leitura “inédita” em relação ao ciclo anual é a do sábado: Zc 2,5-17 (“Visões do profeta. Exortação aos desterrados”) [18].

Concluímos assim nossa análise da leitura litúrgica de Ageu e do Proto-Zacarias. Na próxima postagem daremos continuidade à proposta com a profecia de Malaquias.

Para acessar a postagem sobre a leitura dos capítulos 9 a 14 de Zacarias, clique aqui.

Visão de Zacarias: o candelabro e as duas oliveiras
(Biblia de Cervera, final do séc. XIII)

Breve bibliografia sobre os Livros de Ageu e Zacarias 1–8:

ABREGO DE LACY, José Maria. O profeta Ageu; O profeta Zacarias e o seu livro profético. in: Os livros proféticos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 231-239. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, vol. 4.

CODY, Aelred. Ageu; Zacarias. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 701-715.

MACCHI, Jean-Daniel. Ageu. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 546-551.

RIVAS, Pedro Jaramillo Dias. Ageu; Zacarias. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004, pp. 371-383.

SÉRANDOUR, Arnaud. Zacarias. in: RÖMER; MACCHI; NIHAN, op. cit., pp. 551-567.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 141.
[3] MISSAS de Nossa Senhora. Edições CNBB: Brasília, 2016, p. 34.
[4] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[5] ibid.
[6] LECIONÁRIO para Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 139. A 2ª opção de leitura aqui é Is 61,9-11.
[7] LECIONÁRIO III, op. cit.
[8] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
[9] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, p. 118.
[10] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. I, pp. 148.203.258.329.
[11] ibid., vol. I, pp. 470.557. A sexta-feira após a Epifania equivale ao dia 11 de janeiro onde a Epifania é celebrada no dia 06.
[12] ibid., vol. I, p. 516. No Brasil esta Solenidade é transferida para o domingo entre 02 e 08 de janeiro.
[13] ibid., vol. II, pp. 46.103.160.216.275.
[14] ibid., vol. III, p. 1494; vol. IV, p. 1506. A 1ª opção de leitura no Tempo Comum é Jr 7,2b.4-5a.7a, que serve também como leitura nos tempos do Advento, Natal, Quaresma e Páscoa.
[15] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 105.
[16] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Basil. São Paulo: Paulus, 1995.
[17] OFÍCIO DIVINO, vol. IV, pp. 320.325.328.332.336.
[18] Fonte: Dei Verbum.

Imagens: Wikimedia Commons.

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