quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Leitura litúrgica do Livro de Daniel (1)

“Sede bendito, Senhor Deus de nossos pais! A vós louvor, honra e glória eternamente!” (Dn 3,52).

Na tradição cristã, os livros proféticos do Antigo Testamento (AT) costumam ser divididos em dois grupos: os quatro “profetas maiores” (Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel) e os doze “profetas menores”, assim chamados conforme a extensão dos seus escritos.

Em nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura já tratamos da obra de Ezequiel. Aqui gostaríamos de dar continuidade à proposta com o Livro de Daniel (Dn).

Profeta Daniel
(Michelangelo, Capela Sistina)

1. Breve introdução ao Livro de Daniel

Diferentemente da tradição cristã, na Bíblia hebraica o Livro de Daniel não consta entre os Profetas (Nebiim), mas sim entre os Escritos (Ketubim ou Ketuvim), uma vez que, quando foi escrito, o “cânon dos profetas” provavelmente já estava formado. Além disso, como veremos, este se aproxima mais da apocalíptica do que do profetismo.

Assim como Ester, Daniel possui alguns acréscimos em grego que não são aceitos pelos judeus e pelos cristãos protestantes. Em hebraico (e aramaico), o livro está dividido em duas grandes partes:
a) Dn 1–6: Série de relatos edificantes sobre o jovem Daniel na Babilônia;
b) Dn 7–12: Série de visões de caráter apocalíptico.

Embora a primeira parte da narrativa aconteça durante o exílio da Babilônia (séc. VI a. C.), esta é fictícia, como as “novelas bíblicas”: o autor usa eventos do passado para falar do presente. Isto fica comprovado pelos “erros históricos” presentes no relato.

A redação da obra situa-se no século II a. C., durante o período helênico, mais especificamente sob o reinado de Antíoco IV Epífanes (175-164 a. C.), que tentou impor a cultura e a religião helênicas a Israel, contra o qual ocorreu a “revolta dos Macabeus”.

A literatura apocalíptica, com efeito, é um gênero literário próprio de épocas de “crise”, que recorre ao passado e ao “futuro escatológico” (messiânico) para exortar à esperança em Deus, senhor da história.

A história de Daniel tem vários paralelos com a de José (Gn 37–50): ambos são levados para um país estrangeiro, interpretam sonhos, assumem uma posição de prestígio...

Os episódios dos três jovens na fornalha (Dn 3) e de Daniel na “cova dos leões” (Dn 6), por sua vez, imagens presentes na arte cristã desde a época das catacumbas, representam os justos perseguidos de todos os tempos, recompensados por Deus por sua fidelidade.

A seção mais apocalíptica da obra traz várias visões simbólicas: os animais, representação das potências estrangeiras, são derrotados, ao passo que o “Ancião de muitos dias” e o “Filho do homem”, simbolizando Deus e o “o povo dos santos do Altíssimo” (Dn 7,27), são vitoriosos. Cumpre recordar que no Novo Testamento o título de “Filho do homem” será atribuído ao Messias.

Destacam-se ainda outras características da apocalíptica, como as intervenções de anjos (sendo nomeados Miguel e Gabriel) e a escatologia bem desenvolvida, inclusive com referências à ressurreição dos mortos (Dn 12,2-3.13).

Por fim, os acréscimos em grego ao Livro de Daniel são:
a) Dn 3,24-90: A oração de Azarias na fornalha (de caráter penitencial) e o cântico de louvor dos três jovens, provavelmente composições mais antigas que foram acrescentadas à narrativa;
b) Dn 13: A história de Susana, salva de uma condenação injusta pela sabedoria do jovem Daniel. Na Bíblia grega este conto serve como prólogo ao livro;
c) Dn 14: Os episódios de Bel e do dragão, duas narrativas contra a idolatria, “debochando” dos deuses pagãos (como na “Epístola de Jeremias” em Br 6).

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

Daniel na cova dos leões (Dn 6)
(Catacumbas de Marcelino e Pedro, Roma - Século III)

2. Leitura litúrgica do Livro de Daniel: Composição harmônica

Como temos feito nessa série, analisaremos a presença do Livro de Daniel nas celebrações litúrgicas seguindo os dois critérios de seleção dos textos propostos no Elenco das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua (n. 66) [1]. Dos quatro “profetas maiores”, como veremos, este é o escrito menos utilizado na Liturgia.

Começaremos nosso percurso pela composição harmônica: a escolha dos textos em sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Na Celebração Eucarística, nosso livro é proclamado em composição harmônica primeiramente nos dias de semana do Tempo da Quaresma. No início desse tempo as leituras do AT, em harmonia com o Evangelho, “tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal”, enquanto a partir da IV semana essas estão em sintonia com a leitura semicontínua do Evangelho de João (cf. ELM, n. 98) [2].

- Segunda-feira da II semana da Quaresma: Dn 9,4b-10 [3], uma oração penitencial de Daniel, recordando os pecados do povo e a misericórdia de Deus: “A ti, Senhor nosso Deus, cabe misericórdia e perdão...” (v. 9).

O perdão, porém, não é atributo apenas de Deus, mas também do cristão, como exorta Jesus no Evangelho do dia (Lc 6,36-38): “Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso... perdoai e sereis perdoados” (vv. 36-37).

As leituras desse dia, incluindo o texto de Daniel, são adaptadas para a Missa votiva da prisão do Senhor, própria da Basílica da Agonia do Senhor no Getsêmani, em Jerusalém [4]. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.

- Terça-feira da III semana da Quaresma: Dn 3,25.34-43 [5], a oração penitencial de Azarias na fornalha. Diferentemente da oração de Daniel, mais preocupada com a confissão dos pecados, esta é centrada na súplica: “Nós te pedimos, por teu nome, não desfaças tua aliança, nem retires de nós tua benevolência” (vv. 34-35).

No Evangelho do dia (Mt 18,21-35) Jesus narra a parábola do servo que, perdoado pelo rei, não perdoou seu companheiro e, portanto, foi condenado. O Mestre adverte: “É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão” (v. 35).

Segunda-feira da V semana da QuaresmaDn 13,1-9.15-17.19-30.33-63 (forma breve: Dn 13,41c-62) [6], a história de Susana, salva de uma falsa acusação pelo jovem Daniel, assim como Jesus, no Evangelho (Jo 8,1-11), salva a mulher adúltera, advertindo-a em seguida: “De agora em diante não peques mais” (v. 11).

Quarta-feira da V semana da QuaresmaDn 3,14-20.24.49a.91-92.95 [7], o relato dos três jovens que, ao se recusarem a adorar os deuses pagãos, são lançados em uma fornalha e salvos milagrosamente pela intervenção divina. O tema da “libertação” é retomado na perícope evangélica (Jo 8,31-42), com a máxima de Jesus: “A verdade vos libertará” (v. 32).

Os três jovens na fornalha (Dn 3)
(Catacumbas de Priscila, Roma - Séc. III-IV)

Passando aos domingos do Tempo Comum, nos quais as leituras do AT são escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” (ELM, n. 106) [8], encontramos uma ocorrência do nosso livro no XXXIII Domingo do Tempo Comum do ano B: Dn 12,1-3 [9].

Em sintonia com a índole escatológica própria do final do Ano Litúrgico, lê-se aqui uma das visões de Daniel, marcada pela intervenção do anjo Miguel como defensor do povo e pela ressurreição dos mortos. No relato evangélico desse domingo (Mc 13,24-32) é o próprio Jesus a anunciar fenômenos cósmicos (típicos da apocalíptica) e a intervenção dos anjos como mensageiros que reúnem os povos para o julgamento (v. 27).

No domingo seguinte, o último do Ano Litúrgico, celebra-se no Rito Romano a Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo, que no ano B tem como 1ª leitura Dn 7,13-14 [10]. Trata-se de outra visão, na qual o “Filho do homem” (interpretado aqui como Cristo) recebe “poder, glória e realeza” (v. 14) e cujo reino será eterno.

Ainda em relação aos domingos do Tempo Comum, vale destacar a antífona de entrada do XXVI Domingo do Tempo Comum, tomada da súplica de perdão de Azarias: “Senhor... honrai o vosso nome, tratando-nos segundo vossa misericórdia” (cf. Dn 3,31.29.30.43.32 [11].

Passando ao Próprio dos Santos, com os textos para as celebrações do Senhor, da Virgem Maria e dos Santos com data fixa no calendário civil, identificamos outras três leituras do nosso escrito:

- Festa da Transfiguração do Senhor (06 de agosto): Dn 7,9-10.13-14 [12], a visão do “Ancião de muitos dias”, isto é, do próprio Deus, cuja veste “era branca como neve” (v. 9), fenômeno que, na Transfiguração de Jesus, é afirmação da sua divindade (Mt 17,2 e paralelos).

- Festa de São Miguel, São Gabriel e São Rafael, Arcanjos (29 de setembro): Dn 7,9-10.13-14, como 1ª opção de leitura [13]. A mesma perícope acima, destacando-se neste contexto o v. 10, sobre os anjos junto a Deus: “Serviam-no milhares de milhares, e milhões de milhões assistiam-no ao trono”.

- Comemoração dos Fiéis Defuntos (02 de novembro): Aqui são propostas várias opções de leituras ad libitum (à escolha), previstas também para o sacramental das Exéquias.

Dentre essas leituras está Dn 12,1-3 [14], sobre a ressurreição dos mortos: “Os que dormem no pó da terra despertarão... os que tiverem sido sábios, brilharão como o firmamento”. Cumpre notar que sabedoria aqui é equiparada a justiça: receberão a recompensa os que tiverem sido justos.

Nas celebrações dos santos, tanto no Próprio quanto nos Comuns, identificamos ainda três antífonas de entrada tomadas do nosso livro:

- Memória dos Santos Anjos da Guarda (02 de outubro): “Anjos todos do Senhor, bendizei o Senhor; cantai a sua glória, louvai-o eternamente” (Dn 3,58) [15];

Comum dos Pastores (formulário n. 6, 2ª opção): “Sacerdotes do Senhor, bendizei o Senhor. Santos e humildes de coração, louvai o Senhor (Dn 3,84.87) [16];

Comum dos Doutores da Igreja (formulário n. 2, 1ª opção): “Os sábios refulgirão como o esplendor do firmamento; e os que ensinaram a muitos a justiça, brilharão como estrelas para sempre” (Dn 12,3) [17].

Daniel prova a inocência da jovem Susana (Dn 13)
(Jean-Charles Tardieu)

Por fim, em relação às leituras de Daniel na Celebração Eucarística, contemplemos as Missas para diversas necessidades, com várias opções de textos. Aqui um mesmo texto de Daniel aparece em dois formulários:

- Missa pelos cristãos perseguidos: Dn 3,25.34-43 [18], a oração de Azarias na fornalha, como no Tempo da Quaresma. Aqui ela se torna a oração do justo perseguido, que suplica a misericórdia do Senhor: “Trata-nos segundo a tua clemência e segundo a tua imensa misericórdia; liberta-nos...” (vv. 42-43).

- Missa em qualquer necessidade: Dn 3,25.34-43 [19], como acima, com a súplica à misericórdia do Senhor. Vale recordar que as leituras desse formulário podem ser usadas também nas Missas em tempo de terremoto, para pedir chuva, para pedir bom tempo e para repelir as tempestades.

Antes de concluir essa seção, cabe elencar ainda uma antífona do Livro de Daniel proposta para uma das Missas votivas, formulários a serem celebrados para favorecer a piedade dos fiéis.

Trata-se da Missa votiva ao Santíssimo Nome de Jesus, que tem como uma das opções de aclamação ao Evangelho o texto de Dn 3,52b: “Seja bendito vosso nome glorioso. A vós louvor, honra e glória eternamente!” [20].

Na Missa votiva da ressurreição do filho da viúva, por sua vez, que pode ser celebrada pelos peregrinos que visitam o Santuário de Naim, a 2ª opção de leitura fora do Tempo Pascal é tomada do nosso livro: Dn 12,1-3 [21], uma das visões de Daniel sobre a ressurreição dos mortos, como vimos anteriormente.

b) Liturgia das Horas

Além da Celebração Eucarística, o único “locus liturgicus” (lugar litúrgico) da leitura em composição harmônica de Daniel é a Liturgia das Horas. Aqui há quatro leituras breves do nosso livro, sempre na Hora Média:

- Hora Média (15h) das quartas-feiras do Advento até a III semana e do dia 21 de dezembro: Dn 9,19 [22], a conclusão da “oração de Daniel”, na qual este suplica diretamente o perdão de Deus para o seu povo: “Senhor, escuta! Senhor, perdoa!”.

- Hora Média (15h) das quartas-feiras da Quaresma até a IV semana: Dn 4,24b [23], a exortação à prática das “boas obras” próprias da vivência quaresmal: “Esmolas e obras de misericórdia em favor dos pobres”.

- Hora Média da Festa de São Miguel, São Gabriel e São Rafael, Arcanjos (29 de setembro): Nesta Festa, cada um dos momentos da Hora Média é dedicado a um dos Arcanjos.

Enquanto às 15h lê-se um trecho do Livro de Tobias recordando o Arcanjo Rafael, às 9h e às 12h as leituras são tomadas do Livro de Daniel:
9h: Dn 12,1 - Miguel é apresentado como “defensor dos filhos de teu povo”;
12h: Dn 9,22-23 - Gabriel, como mensageiro, vem “para comunicar” e “esclarecer” [24].

Daniel na cova dos leões (Peter Paul Rubens)

Encerramos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a leitura litúrgica do Livro de Daniel. Na próxima parte estudaremos sua leitura semicontínua e os três textos que são entoados como cântico nas diversas celebrações.

Breve bibliografia sobre o Livro de Daniel:

ASSURMENDI, Jesús M. O Livro de Daniel. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 413-444. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.

HARTMAN, Louis F.; DI LELLA, Alexander A. Daniel. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 807-834.

HIMBAZA, Innocent. Daniel Grego. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 740-747.

LÜDY, José Héctor. Daniel. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004, pp. 237-297.

VERMEYLEN, Jacques. Daniel. in: RÖMER, op. cit., pp. 688-700.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 97.
[3] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995.
[4] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
Cada santuário da Terra Santa possui uma ou mais “Missas votivas do lugar”, nas quais os peregrinos contemplam os eventos da história da salvação a ele associados.
No caso da “Missa da prisão do Senhor”, própria da Basílica do Getsêmani, as leituras indicadas são: Dn 9,4b-10; Sl 78; At 1,15-17; Mc 14,43-52.
[5] LECIONÁRIO II, op. cit.
[6] ibid.
[7] ibid.
[8] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 103.
[9] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[10] ibid.
[11] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 370.
[12] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[13] ibid. A 2ª opção de leitura para esta Festa é Ap 12,7-12a.
[14] ibid.
[15] MISSAL ROMANO, op. cit., p. 670.
[16] ibid., p. 757. A outra opção de antífona de entrada é Jr 3,15.
[17] ibid., p. 766. A outra opção de antífona de entrada aqui é Eclo 44,15.14.
[18] LECIONÁRIO III, op. cit.
[19] ibid.
[20] LECIONÁRIO III, op. cit.
[21] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
A outra opção de leitura fora do Tempo Pascal para essa Missa, própria do Santuário de Naim, é 1Rs 17,17-24. No Tempo Pascal, por sua vez, lê-se At 4,8-12 ou At 5,12-16.
[22] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. I, pp. 141.195.252.321.
[23] ibid., vol. II, pp. 46.103.160.217.276.
[24] ibid., vol. IV, p. 1322.

Imagens: Wikimedia Commons.

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