domingo, 14 de março de 2021

Exortação Apostólica Redemptoris Custos sobre São José (3)

Concluindo nossa série em três postagens em preparação à Solenidade de São José, Esposo da Bem-aventurada Virgem Maria - que o Rito Romano celebra no dia 19 de março -, trazemos hoje a última parte da Exortação Apostólica Redemptoris Custos (Guardião do Redentor) sobre a figura e a missão de São José na vida de Cristo e da Igreja, promulgada pelo Papa João Paulo II em 1989.

Após propor os nn. 01-08 e os nn. 09-21 do Documento nas primeiras duas partes, aqui trazemos os nn. 22-32, que integram os capítulos 4 a 6, dedicados a São José como trabalhador, como homem de oração e como patrono da Igreja universal.

João Paulo II
Exortação Apostólica Redemptoris Custos
Sobre a figura e a missão de São José na vida de Cristo e da Igreja

IV. O trabalho, expressão do amor

22. A expressão quotidiana deste amor na vida da Família de Nazaré é o trabalho. O texto evangélico especifica o tipo de trabalho, mediante o qual José procurava garantir a sustentação da Família: o trabalho de carpinteiro. Esta simples palavra envolve toda a extensão da vida de José. Para Jesus este período abrange os anos da vida oculta, de que fala o Evangelista, a seguir ao episódio que sucedeu no templo: «Depois, desceu com eles para Nazaré e era-lhes submisso» (Lc 2,51). Esta «submissão, ou seja, a obediência de Jesus na casa de Nazaré é entendida também como participação no trabalho de José. Aquele que era designado como o «filho do carpinteiro», tinha aprendido o ofício de seu «pai» putativo. Se a Família de Nazaré, na ordem da salvação e da santidade, é exemplo e modelo para as famílias humanas, é-o analogamente também o trabalho de Jesus ao lado de José carpinteiro. Na nossa época, a Igreja pôs em realce isto mesmo, também com a memória litúrgica de São José Operário, fixada no primeiro de maio. O trabalho humano, em particular o trabalho manual, tem no Evangelho uma acentuação especial. Juntamente com a humanidade do Filho de Deus ele foi acolhido no mistério da Encarnação, como também foi redimido de maneira particular. Graças ao seu banco de trabalho, junto do qual exercitava o próprio ofício juntamente com Jesus, José aproximou o trabalho humano do mistério da Redenção.

23. No crescimento humano de Jesus «em sabedoria, em estatura e em graça» teve uma parte notável a virtude da laboriosidade, dado que «o trabalho é um bem do homem», que «transforma a natureza» e torna o homem, «em certo sentido, mais homem» [34].
A importância do trabalho na vida do homem exige que se conheçam e assimilem todos os seus conteúdos, «para ajudar os demais homens a aproximarem-se através dele de Deus, Criador e Redentor, e a participarem nos seus desígnios salvíficos quanto ao homem e quanto ao mundo; e ainda, a aprofundarem na sua vida e amizade com Cristo, tendo, mediante a fé vivida, uma participação no seu tríplice múnus: de Sacerdote, de Profeta e de Rei» [35].

24. Trata-se, em última análise, da santificação da vida quotidiana, no que cada pessoa deve empenhar-se, segundo o próprio estado, e que pode ser proposta apontando para um modelo accessível a todos: «São José é o modelo dos humildes, que o Cristianismo enaltece para grandes destinos; (...) é a prova de que para sermos bons e autênticos seguidores de Cristo não se necessitam «grandes coisas», mas requerem-se somente virtudes comuns, humanas, simples e autênticas» [36].

São José com o Menino Jesus (José ou Jusepe de Ribera)
Note-se que o Menino apresenta a José as ferramentas de trabalho

V. O primado da vida interior

25. Também quanto ao trabalho de carpinteiro na casa de Nazaré se estende o mesmo clima de silêncio, que acompanha tudo aquilo que se refere à figura de José. Trata-se, contudo, de um silêncio que desvenda de maneira especial o perfil interior desta figura. Os Evangelhos falam exclusivamente daquilo que José «fez»; no entanto, permitem-nos auscultar nas suas «ações», envolvidas pelo silêncio, um clima de profunda contemplação. José estava quotidianamente em contato com o mistério «escondido desde todos os séculos», que «estabeleceu a sua morada» sob o teto da sua casa. Isto explica, por exemplo, a razão por que Santa Teresa de Jesus, a grande reformadora do Carmelo contemplativo, se tornou promotora da renovação do culto de São José na cristandade ocidental.

26. O sacrifício total, que José fez da sua existência inteira, às exigências da vinda do Messias à sua própria casa, encontra a motivação adequada na «sua insondável vida interior, da qual lhe provêm ordens e consolações singularíssimas; dela lhe decorrem também a lógica e a força, própria das almas simples e límpidas, das grandes decisões, como foi a de colocar imediatamente à disposição dos desígnios divinos a própria liberdade, a sua legítima vocação humana e a felicidade conjugal, aceitando a condição, a responsabilidade e o peso da família e renunciando, por um incomparável amor virgíneo, ao natural amor conjugal que constitui e alimenta a mesma família» [37].
Esta submissão a Deus, que é prontidão de vontade para se dedicar às coisas que dizem respeito ao seu serviço, não é mais do que o exercício da devoção, que constitui uma das expressões da virtude da religião [38].

27. A comunhão de vida entre José e Jesus leva-nos a considerar ainda o mistério da Encarnação precisamente sob o aspecto da humanidade de Cristo, instrumento eficaz da divindade para a santificação dos homens: «Por força da divindade, as ações humanas de Cristo foram salutares para nós, produzindo em nós a graça, quer em razão do mérito, quer por certa eficácia» [39].
Entre estas ações os Evangelistas privilegiam aquelas que dizem respeito ao Mistério Pascal; mas não deixam de frisar bem a importância do contato físico com Jesus em ordem às curas de enfermidades (cf., por exemplo, Mc 1,41) e a influência por ele exercida sobre João Batista, quando ambos estavam ainda no seio materno (cfLc 1,41-44).
O testemunho apostólico não transcurou - como já se viu - a narração do nascimento de Jesus, da circuncisão, da apresentação no templo, da fuga para o Egito e da vida oculta em Nazaré, por motivo do «mistério» de graça contido em tais «gestos», todos eles salvíficos, porque todos participavam da mesma fonte de amor: a divindade de Cristo. Se este amor se irradiava, através da sua humanidade, sobre todos os homens, certamente eram por ele beneficiados, em primeiro lugar, aqueles que a vontade divina tinha posto na sua maior intimidade: Maria, sua Mãe, e José, seu pai putativo [40].
Uma vez que o amor «paterno» de José não podia deixar de influir sobre o amor «filial» de Jesus e, vice-versa, o amor «filial» de Jesus não podia deixar de influir sobre o amor «paterno» de José, como chegar a conhecer as profundezas desta singularíssima relação? Justamente, pois, as almas mais sensíveis aos impulsos do amor divino veem em José um exemplo luminoso de vida interior.
Mais ainda, a aparente tensão entre a vida ativa e a vida contemplativa tem em José uma superação ideal, possível para quem possui a perfeição da caridade. Atendo-nos à conhecida distinção entre o amor da verdade (caritas veritatis) e as exigências do amor (necessitat caritatis), podemos dizer que José fez a experiência quer do amor da verdade, ou seja, do puro amor de contemplação da Verdade divina que irradiava da humanidade de Cristo, quer das exigências do amor, ou seja, do amor igualmente puro do serviço, requerido pela proteção e pelo desenvolvimento dessa mesma humanidade [41].

São José contempla o Menino Jesus (Baciccio)

VI. Patrono da Igreja do nosso tempo

28. Em tempos difíceis para a Igreja, Pio IX, desejando confiá-la à especial proteção do Santo Patriarca José, declarou-o «Patrono da Igreja Católica» [42]. Esse Sumo Pontífice sabia que não estava levando a efeito um gesto peregrino, porque, em virtude da excelsa dignidade concedida por Deus a este seu servo fidelíssimo, «a Igreja, depois da Virgem Santíssima, sua esposa, teve sempre em grande honra e cumulou de louvores o Bem-aventurado José e, no meio das angústias, de preferência foi a ele que recorreu» [43].
Quais são os motivos de tão grande confiança? O Papa Leão XIII expõe-nas assim: «As razões pelas quais o Bem-aventurado José deve ser considerado especial Patrono da Igreja, e a Igreja, por sua vez, deve esperar muitíssimo da sua proteção e do seu patrocínio, provêm principalmente do fato de ele ser esposo de Maria e pai putativo de Jesus (...). José foi a seu tempo legítimo e natural guardião, chefe e defensor da divina Família (...). É algo conveniente e sumamente digno para o Bem-aventurado José, portanto, que, de modo análogo àquele com que outrora costumava socorrer santamente, em todo e qualquer acontecimento, a Família de Nazaré, também agora cubra e defenda com o seu celeste patrocínio a Igreja de Cristo» [44].

29. Este patrocínio deve ser invocado e continua sempre a ser necessário à Igreja, não apenas para defendê-la dos perigos, que continuamente se levantam, mas também e sobretudo para confortá-la no seu renovado empenho de evangelização do mundo e de levar por diante a nova evangelização dos países e nações «onde - como eu escrevia na Exortação Apostólica Christifideles laici - a religião e a vida cristã foram em tempos tão prósperas», mas «se encontram hoje submetidas a dura provação» [45]. Para levar o primeiro anúncio de Cristo ou para voltar a apresentá-lo onde ele foi transcurado ou esquecido, a Igreja precisa de uma particular «força do Alto» (cfLc 24,49), que é dom do Espírito do Senhor, certamente, mas não anda disjunta da intercessão e do exemplo dos seus Santos.

30. Além da confiança na proteção segura de José, a Igreja tem confiança no seu exemplo insigne, um exemplo que transcende cada um dos estados de vida e se propõe a toda a comunidade cristã, sejam quais forem a condição e as tarefas de cada um dos fiéis.
Como se diz na Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Divina Revelação, a atitude fundamental de toda a Igreja deve ser de «religiosa escuta da Palavra de Deus» [46]; ou seja, de absoluta disponibilidade para se pôr fielmente ao serviço da vontade salvífica de Deus, revelada em Jesus. Logo no princípio da Redenção humana, nós encontramos o modelo da obediência encarnado, depois de Maria, precisamente em José, aquele que, se distingue pela execução fiel das ordens de Deus.
O Papa Paulo VI exortava a invocar o seu patrocínio, «como a Igreja, nestes últimos tempos, tem o costume de fazer, para si mesma, antes de tudo, para uma espontânea reflexão teológica sobre o conúbio da ação divina com a ação humana na grande economia da Redenção, no qual, a primeira - a ação divina - é por si só totalmente suficiente, mas a segunda - a ação humana, a nossa -, embora não seja capaz de fazer coisa alguma sozinha (cfJo 15,5), nunca está dispensada de uma humilde, mas condicional e nobilitante colaboração. Além disso, a Igreja invoca-o como protetor, por um desejo profundo e atualíssimo de rejuvenescer a sua existência secular, com autênticas virtudes evangélicas, como as que refulgem em São José» [47].

31. A Igreja transforma estas exigências em oração. Recordando que Deus confiou os inícios da nossa Redenção à guarda desvelada de São José, suplica-lhe: que lhe conceda colaborar fielmente na obra da salvação; e que lhe dê a mesma fidelidade e pureza de coração que animaram José no serviço do Verbo Encarnado; e, ainda, a graça de caminhar diante do mesmo Deus pelas vias da santidade e da justiça, amparados pelo exemplo e pela intercessão de São José [48].
Há cem anos, exatamente, o Papa Leão XIII exortava o mundo católico a rezar para obter a proteção de São José, Patrono de toda a Igreja. A Carta Encíclica Quamquam pluries fazia apelo para aquele «amor paterno» que José «dedicava ao Menino Jesus» e recomendava-lhe, a ele «próvido guarda da divina Família, a preciosa herança que Jesus Cristo adquiriu com o próprio sangue». Desde então, a Igreja - como foi recordado mais acima - implora a proteção de São José, «em virtude daquele vínculo de caridade que o uniu à imaculada Virgem Mãe de Deus», e recomenda-lhe todas as suas solicitudes, também pelo que se refere às ameaças que incumbem sobre a família humana.
Nos dias de hoje, temos ainda numerosos motivos para rezar da mesma maneira: «Afastai de nós, ó pai amantíssimo, esta peste de erros e de vícios..., assisti-nos propício, do céu, nesta luta contra o poder das trevas...; e assim como outrora livrastes da morte a vida ameaçada do Menino Jesus, assim hoje defendei a santa Igreja de Deus das ciladas do inimigo e de todas as adversidades» [49]. Hoje ainda temos motivos que perduram para recomendar todos e cada um dos homens a São José.

32. Desejo vivamente que esta evocação da figura de São José renove também em nós o ritmo da oração que, há um século, o meu Predecessor estabeleceu que lhe fosse elevada. É fora de dúvida, efetivamente, que esta oração e a própria figura de São José se revestem de atualidade renovada para a Igreja do nosso tempo, em relação com o novo Milênio cristão.
Concílio Vaticano II procurou sensibilizar-nos novamente a todos para «as grandes coisas de Deus» e para aquela «economia da salvação» de que São José foi particularmente ministro. Recomendando-nos, pois, à proteção daquele a quem o próprio Deus «confiou a guarda dos seus tesouros mais preciosos» [50],  aprendamos com ele, ao mesmo tempo, a servir a «economia da salvação». Que São José se torne para todos um mestre singular no serviço da missão salvífica de Cristo, que, na Igreja, compete a cada um e a todos: aos esposos e aos pais, àqueles que vivem do trabalho das próprias mãos e de todo e qualquer outro trabalho, às pessoas chamadas para a vida contemplativa e às que são chamadas ao apostolado.
homem justo, que trazia em si o património da Antiga Aliança, foi também introduzido no «princípio» da nova e eterna Aliança em Jesus Cristo. Que ele nos indique os caminhos desta Aliança salvífica no limiar do próximo Milênio, durante o qual deve perdurar e desenvolver-se ulteriormente a «plenitude dos tempos» própria do mistério inefável da Encarnação do Verbo.
Que São José obtenha para a Igreja e para o mundo, assim como para um de nós, a bênção do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

São José, patrono da Igreja universal
(Giuseppe Rollini, Basílica do Sagrado Coração de Jesus - Roma)

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 15 de agosto - Solenidade da Assunção de Nossa Senhora - no ano de 1989, undécimo ano de Pontificado.

JOÃO PAULO II

Notas
[34] cf. Carta Encíclica Laborem exercens (14 de setembro de 1981), n. 9: AAS 73 (1981), pp. 599-600.
[35] ibid., n. 24: loc. cit., p. 638. Os Sumos Pontífices, nos tempos mais recentes, têm apresentado constantemente São José como «modelo» dos operários e dos trabalhadores em geral; cf., por exemplo, Leão XIII, Carta Encíclica Quamquam pluriesloc. cit., p. 180; Bento XV, Motu proprio Bonum sane: loc. cit., pp. 314-316; Pio XII, Alocução (11 de março de 1945), n. 4: AAS 37 (1945), p. 72; Alocução (01 de maio de 1955): AAS 47 (1955), p. 406; João XXIII, Radio-mensagem (01 de maio de 1960): AAS 52 (1960), p. 398.
[36] Paulo VI, Alocução (19 de março de 1969): Insegnamenti, VII (1969), p. 1268.
[37] ibid., 1oc. cit., p. 1267.
[38] cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theol., II-II ae, q. 82, a. 3, ad 2.
[39] ibid., III, q. 8, a. 1, ad 1.
[40] Pio XII, Carta Encíclica Haurietis aquas (15 de maio de 1956), III: AAS 48 (1956), pp. 329-330.
[41] cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theol., II-II ae , q. 182, a. 1, ad 3. 
[42] cf. Congregatio Sacrorum Rituum, Decreto Quemadmodum Deusloc .cit., p. 283.
[43] ibid., loc. cit., pp. 282-283.
[44] Leão XIII, Carta Encíclica Quamquam pluriesloc. cit., pp. 177-179.
[45] cf. Exortação Apostólica pós-sinodal Christifideles laici (30 de dezembro de 1988), n. 34: AAS 81 (1989), p. 456.
[46] Constituição Dogmática sobre a Divina Revelação Dei Verbum, n. 1.
[47] Paulo VI, Alocução (19 de março de 1969): Insegnamenti, VII (1969), p. 1269.
[48] cfMissale Romanum, CollectaSuper oblata, in: «Sollemnitate S. Joseph Sponsi B.M.V.»; Post Communio, in: «Missa Votiva S. Joseph».
[49] cf. Leão XIII, «Oratio ad Sanctum Josephum», contida imediatamente a seguir ao texto da Carta Encíclica Quamquam pluries: Leonis XIII P. M. Acta, IX (1890), p. 183.
[50] Congregatio Sacrorum Rituum, Decreto Quemadmodum Deus: loc .cit., p. 282.

Fonte: Santa Sé

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