quinta-feira, 11 de março de 2021

Catequeses sobre os Salmos (8): Laudes do sábado da I semana

Concluindo as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos das Laudes da I semana do Saltério, propomos suas meditações sobre os textos do sábado, proferidas nos dias 14 de novembro (Sl 118,115-152), 21 de novembro (Ex 15,1-4b.8-13.17-18) e 28 de novembro de 2001 (Sl 116).

21. Meditação sobre a Palavra de Deus na Lei: Sl 118(119),145-152
14 de novembro de 2001

1. O que a Liturgia de Laudes nos propõe no sábado da I semana é uma única estrofe tirada do Salmo 118, uma monumental oração de vinte e duas estrofes, tantas quantas são as letras do alfabeto hebraico. Cada estrofe se caracteriza por uma letra do alfabeto, com que começa cada um dos versículos; a ordem das estrofes segue a do alfabeto. A que proclamamos agora é a estrofe número dezenove, correspondente à letra qof.
Esta premissa, um pouco superficial, permite-nos compreender melhor o significado desse cântico em honra da Lei divina. Ele é semelhante a uma música oriental, cujas modulações sonoras parecem nunca mais ter fim e elevam-se ao céu numa repetição que envolve a mente e os sentidos, o espírito e o corpo daquele que reza.

2. Numa sequência que se desenvolve do ‘alef ao tau, isto é, da primeira à última letra do alfabeto - de A a Z diríamos nós com o alfabeto latino -, aquele que reza expande-se no louvor da Lei de Deus, que adota como lâmpada para os seus passos no caminho da vida, tantas vezes obscuro (cf. v. 105).
Diz-se que o grande filósofo e cientista Blaise Pascal recitava diariamente este Salmo, que é o maior de todos, enquanto o teólogo Dietrich Bonhoeffer, assassinado pelos nazistas em 1945, o transformava numa oração viva e atual, escrevendo: “Indubitavelmente, o Salmo 118 é pesado pela sua extensão e monotonia, mas nós devemos avançar palavra por palavra, frase por frase, muito lenta e pacientemente. Descobriremos então que as aparentes repetições são, na realidade, aspectos novos de uma só e mesma realidade: o amor pela Palavra de Deus. Como este amor não pode ter fim, também não o terão as palavras que o confessam. Elas podem acompanhar-nos ao longo de toda a nossa vida, e na sua simplicidade tornam-se oração da criança, do adulto e do idoso” (Rezar os Salmos com Cristo, Bréscia, 1978, p. 48).

3. O fato de repetir, além de ajudar a memória no canto coral, é ainda um modo de estimular a adesão interior e o abandono confiante nos braços de Deus, invocado e amado. Entre as repetições do Salmo 118, queremos assinalar uma muito significativa. Cada um dos 176 versículos de que é composto este louvor à Torah, isto é, à Lei e à Palavra divina, contém, pelo menos, uma das oito palavras com que se define a própria Torah: lei, palavra, testemunho, juízo, prescrição, decreto, preceito, ordem. Celebra-se assim a Revelação divina, que é manifestação do mistério de Deus, mas também guia moral para a existência do fiel.
Deus e o homem estão, deste modo, unidos por um diálogo composto de palavras e de obras, de ensino e escuta, de verdade e de vida.

4. Voltemos, agora, à nossa estrofe (vv. 145-152), que se adapta bem à atmosfera das Laudes matutinas. De fato, a cena, que é posta no centro deste conjunto de oito versículos, é noturna, mas aberta ao novo dia. Depois de uma longa noite de espera e de vigília de oração no templo, quando a aurora aparece no horizonte e começa a Liturgia, o fiel está certo de que o Senhor ouvirá aquele que passou a noite a rezar, esperar e a meditar a Palavra divina. Confortado por esta consciência, perante a jornada que se abre diante dele, não temerá mais os perigos. Sabe que não será arrastado pelos seus perseguidores que, traiçoeiramente, o atacam (v. 150), porque o Senhor está ao seu lado.

"Chego antes que a aurora e vos imploro
e espero confiante em vossa lei" (Sl 118,147)

5. A estrofe exprime uma intensa oração: “Clamo de todo o coração: Senhor, ouvi-me! (...) Chego antes que a aurora e vos imploro, e espero confiante em vossa lei” (vv 145.147). No Livro das Lamentações lê-se este convite: “Levanta-te, grita durante a noite, ao começo das vigílias; derrama o teu coração como água ante a face do Senhor; ergue para Ele as mãos” (Lm 2,19). Santo Ambrósio repetia: “Não sabes, ó homem, que em cada dia deves oferecer a Deus as primícias do teu coração e da tua voz? Apressa-te, ao alvorecer, para levar à igreja as primícias da tua piedade” (Exp. in ps. CXVIII: PL 15, 1476A).
Ao mesmo tempo, a nossa estrofe é ainda a exaltação de uma certeza: nós não estamos sós, porque Deus escuta e intervém. Diz aquele que reza: “Vós estais perto, ó Senhor, perto de mim” (v. 151). Também o dizem outros salmos: “Aproximai-Vos de mim e salvai-me, respondei aos meus inimigos, resgatando-me” (Sl 68,19); “O Senhor está perto dos aflitos do coração e salva os de espírito torturado” (Sl 33,19). 

22. Hino de vitória após a passagem do Mar Vermelho: Ex 15,1-4b.8-13.17-18
21 de novembro de 2001

1. Este hino de vitória (Ex 15,1-18), proposto para as Laudes do sábado da I semana, conduz-nos a um momento-chave da história da salvação: ao acontecimento do êxodo, quando Israel foi salvo por Deus numa situação humanamente desesperada. Os fatos são conhecidos: depois de uma longa escravidão no Egito, já a caminho para a terra prometida, os hebreus tinham sido alcançados pelo exército do faraó, e nada os subtrairia à destruição se o Senhor não tivesse intervindo com a sua mão poderosa. O hino não tarda a descrever a arrogância dos desígnios do inimigo armado: “O inimigo tinha dito: ‘Hei de segui-los e alcançá-los! Repartirei os seus despojos’” (v. 9).
Mas que poder tem o maior dos exércitos diante da onipotência divina? Deus ordena que o mar abra um carreiro para deixar passar o povo atacado e que o feche quando passam os agressores: “Soprou o vosso vento, e o mar os recobriu; afundaram como chumbo entre as águas agitadas” (v. 10).
São imagens fortes, que querem mostrar a medida da grandeza de Deus, enquanto exprimem a admiração de um povo que quase não acredita no que vê, e se abandona em uníssono num cântico comovido: “O Senhor é minha força, é a razão do meu cantar, pois foi Ele neste dia para mim libertação! Ele é meu Deus e o louvarei, Deus de meu pai e o honrarei” (v. 2).

2. O cântico não fala apenas da libertação obtida; indica também a sua finalidade positiva, ou seja, a entrada na casa de Deus para viver em comunhão com Ele: “O povo libertado conduzistes com carinho e o levastes com poder à vossa santa habitação” (v. 13).
Compreendido desta forma, este acontecimento não esteve só na base da aliança entre Deus e o seu povo, mas tornou-se o “símbolo” de toda a história da salvação. Em muitas outras ocasiões Israel conhecerá situações análogas, e o êxodo se atualizará pontualmente. De maneira especial, aquele acontecimento prefigura a grande libertação que Cristo realizará com a sua Morte e Ressurreição.
Por isso o nosso hino é cantado de modo especial na Liturgia da Vigília Pascal, para ilustrar com a intensidade das suas imagens o que se realizou em Cristo. N’Ele fomos salvos não só de um opressor humano, mas daquela escravidão de Satanás e do pecado, que desde as origens pesa sobre o destino da humanidade. Com Ele a humanidade põe-se de novo a caminho, pelas estradas que conduzem à casa do Pai.

3. Esta libertação, já realizada no mistério e presente no Batismo como uma semente de vida destinada a crescer, alcançará a sua plenitude no fim dos tempos, quando Cristo voltar glorioso e entregar “o Reino a Deus Pai” (1Cor 15,24). A Liturgia das Horas convida-nos a olhar precisamente para este horizonte final, escatológico, introduzindo o nosso cântico com uma citação do Apocalipse: “Todos aqueles que saíram vitoriosos do confronto com a besta, entoavam o cântico de Moisés, o servo de Deus” (cf. Ap 15,2.3).
No final dos tempos, se realizará plenamente para todos os que foram salvos aquilo que o acontecimento do êxodo prefigurava e a Páscoa de Cristo realizou de maneira definitiva, mas aberto ao futuro. De fato, a nossa salvação é real e profunda, mas situa-se entre o “já” e o “ainda não” da condição terrena, como nos recorda o Apóstolo Paulo: “Porque na esperança é que fomos salvos” (Rm 8,24).

4. “Ao Senhor quero cantar, pois fez brilhar a sua glória” (Ex 15,1). Pondo nos nossos lábios estas palavras do antigo hino, a Liturgia das Laudes convida-nos a orientar o nosso dia para o horizonte da história da salvação. Esta é a forma cristã de compreender o passar do tempo. Nos dias que se acumulam não há uma fatalidade que nos oprime, mas um desígnio que se desvenda lentamente, e que os nossos olhos devem aprender a ler como em filigrana.
Os Padres da Igreja eram particularmente sensíveis a esta perspectiva histórico-salvífica, e gostavam de ler os fatos relevantes do Antigo Testamento, do dilúvio do tempo de Noé à chamada de Abraão, da libertação do êxodo ao regresso dos hebreus depois do exílio da Babilônia, como “prefigurações” de acontecimentos futuros, reconhecendo naqueles fatos um valor “arquetípico”: neles eram prenunciadas as características fundamentais que se iriam repetir, de certa forma, durante toda a história humana.

5. Contudo, já os profetas tinham lido os acontecimentos da história da salvação mostrando o seu sentido sempre atual e indicando a sua realização plena no futuro. Desta forma, ao meditar sobre o mistério da aliança estabelecida por Deus com Israel, eles falam de uma “nova aliança” (Jr 31,31; cf. Ex 36,26-27), na qual a lei de Deus seria escrita no próprio coração do homem. Não é difícil ver nesta profecia a nova aliança estabelecida no sangue de Cristo e realizada através do dom do Espírito. Ao recitar este hino de vitória do antigo êxodo à luz do êxodo pascal, os fiéis podem viver a alegria de se sentirem Igreja peregrina no tempo, rumo à Jerusalém celeste.

6. Por conseguinte, trata-se de contemplar com admiração sempre renovada tudo o que Deus dispôs para o seu Povo: “Vós, Senhor, o levareis e o plantareis em vosso monte, no lugar que preparastes para a vossa habitação, no Santuário construído pelas vossas próprias mãos” (Ex 15,17). O hino de vitória não exprime o triunfo do homem, mas o triunfo de Deus. Não é um cântico de guerra, é um cântico de amor.
Deixando que os nossos dias sejam invadidos por este estremecimento de louvor dos antigos hebreus, nós caminhamos pelas estradas do mundo, cheias de insídias, de perigos e de sofrimentos, com a certeza de estarmos envolvidos pelo olhar misericordioso de Deus: nada pode resistir ao poder do seu amor.

23. Louvor ao Deus misericordioso: Sl 116(117),1-2
28 de novembro de 2001

1. Este é o Salmo mais curto, composto no original hebraico apenas por dezessete palavras, das quais nove são particularmente relevantes. É uma pequena doxologia, isto é, um cântico essencial de louvor, que idealmente poderia servir de conclusão a orações hínicas mais amplas. Assim se verificou por vezes na Liturgia, um pouco como acontece com o nossoGloria Patri”, com o qual concluímos a recitação de qualquer salmo.
Na verdade, estas poucas palavras de oração revelam-se significativas e profundas para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo, no âmbito de uma perspectiva universal. Nesta luz, o primeiro versículo do Salmo é tomado pelo Apóstolo Paulo para convidar todos os povos do mundo a glorificar Deus. De fato, ele escreve aos cristãos de Roma: “os gentios dão glória a Deus, pela sua misericórdia, como está escrito (...) Nações, louvai todas ao Senhor; e que todos os povos o celebrem” (Rm 15,9.11).

2. Por conseguinte, o breve hino que estamos meditando começa, como acontece muitas vezes neste gênero de salmos, com um convite ao louvor, que não se destina só a Israel, mas a todos os povos da terra. Um “aleluia deve brotar dos corações de todos os justos que procuram e amam Deus com o coração sincero. Mais uma vez o Saltério reflete uma visão de amplo alcance, provavelmente alimentada pela experiência vivida por Israel durante o exílio na Babilônia no VI século a. C.: o povo hebraico encontrou então outras nações e culturas e sentiu a necessidade de anunciar a própria fé àqueles entre os quais ele vivia. Encontra-se no Saltério a consciência de que o bem floresce em muitos terrenos e pode ser como que canalizado e dirigido para o único Senhor e Criador.
Por isso, poderíamos falar de um “ecumenismo” da oração, que inclui num único abraço povos diferentes por origem, história e cultura. Encontramo-nos na linha da grande “visão” de Isaías que descreve, “no final dos tempos”, a afluência de todas as nações para “o monte do templo do Senhor”. Então, cairão das mãos as espadas e as lanças, e serão transformadas em relhas de arados e foices, para que a humanidade viva em paz, cantando o seu louvor ao único Senhor de todos, ouvindo a sua palavra e observando os seus mandamentos (cf. Is 2,1-5).

3. Israel, o povo da eleição, tem neste horizonte universal uma missão a cumprir. Deve proclamar duas grandes virtudes divinas, que conheceu ao viver a aliança com o Senhor (v. 2). Estas duas virtudes, que são as duas feições fundamentais do rosto divino, o “bom binômio” de Deus, para dizer com São Gregório de Nissa (cf. Sobre os títulos dos Salmos, Roma, 1994, p. 183), são expressas com igual número de palavras hebraicas que, nas traduções, não conseguem brilhar em toda a sua riqueza de significado.
A primeira é hésed, uma palavra usada repetidas vezes pelo Saltério e sobre a qual já falei em outras ocasiões. Ela indica a rede dos sentimentos profundos que existem entre duas pessoas, ligadas por um vínculo autêntico e constante. Por isso, abraça valores como o amor, a fidelidade, a misericórdia, a bondade, a ternura. Por conseguinte, existe ente nós e Deus uma relação que não é fria, como a que pode existir entre um imperador e o seu súdito, mas palpitante, como a que se desenvolve entre dois amigos, entre dois esposos, entre pais e filhos.

4. A segunda palavra é ‘emét, que é quase sinônimo da primeira. Também ela é querida ao Saltério, que a repete quase metade de todas as vezes em que ressoa no resto do Antigo Testamento.
Em si, a palavra exprime a “verdade”, ou seja, a genuinidade de uma relação, a sua autenticidade e lealdade, que se conserva apesar dos obstáculos e das provas; é a fidelidade pura e jubilosa que não conhece faltas. Não é sem motivo que o salmista declara que ela “dura eternamente” (v. 2). O amor fiel de Deus nunca faltará e não nos abandonará a nós próprios ou à obscuridade da falta de sentido, de um destino cego, do vazio e da morte.
Deus ama-nos com um amor incondicional, que não se cansa, que nunca esmorece. Eis a mensagem do nosso Salmo, breve como uma jaculatória, mas intenso como um grande cântico.

5. As palavras que ele nos sugere são como um eco do cântico que ressoa na Jerusalém celeste, onde uma grande multidão de todas as línguas, povos e nações, canta a glória divina diante do trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 7,9). A este cântico a Igreja peregrina une-se com infinitas expressões de louvor, muitas vezes moldadas pelo gênio poético e pela arte musical. Pensamos dando um exemplo no “Te Deum”, do qual se serviram gerações de cristãos ao longo dos séculos, para louvar o Senhor e agradecer-Lhe: “Te Deum Laudamus, te Dominum confitemur, te aeternum Patrem omnis terra veneratur”. De sua parte, o pequeno Salmo que hoje estamos meditando é uma síntese eficaz da perene Liturgia de louvor com que a Igreja se faz voz no mundo, unindo-se ao louvor perfeito que o próprio Cristo dirige ao Pai.
Portanto, louvemos o Senhor! Louvemos sem nos cansarmos. Mas que o nosso louvor exprima-se com a vida, mais do que com as palavras. De fato, seríamos muito pouco credíveis se com o nosso Salmo convidássemos os povos a glorificar o Senhor e não levássemos a sério a admoestação de Jesus: “Brilhe a vossa luz diante dos homens de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus” (Mt 5,16). Ao cantar o Salmo 116, como todos os salmos dirigidos ao Senhor, a Igreja, Povo de Deus, esforça-se por se tornar, ela mesma, um cântico de louvor.

"Ao Senhor quero cantar, pois fez brilhar a sua glória:
precipitou no Mar Vermelho o cavalo e o cavaleiro" (Ex 15,1)

Fonte: Santa Sé (14 de novembro, 21 de novembro e 28 de novembro de 2001)

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