Neste ano de 2025, no qual as Igrejas do Oriente e do Ocidente celebram os 1700 anos do I Concílio de Niceia (325), recordamos as quatro meditações sobre a teologia do Oriente e do Ocidente proferidas pelo Padre Raniero Cantalamessa, então Pregador da Casa Pontifícia, durante a Quaresma de 2015.
Confira nesta postagem a segunda meditação, sobre o mistério da Pessoa de Cristo:
Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
III pregação de Quaresma
13 de março de 2015
Oriente e Ocidente perante o mistério da Pessoa de Cristo
1. Paulo e João: o Cristo visto de dois ângulos
Em nosso esforço de
compartilhar os tesouros espirituais do Oriente e do Ocidente, vamos refletir hoje
sobre a fé comum em Jesus Cristo. Tentemos fazê-lo como quem fala de alguém presente,
não de um ausente. Se não fosse pelo nosso “peso” humano, que nos atrapalha,
deveríamos pensar que, toda vez que pronunciamos o nome de Jesus, Ele se sente
chamado pelo nome e se volta para nos olhar. Hoje também Ele está aqui conosco
e escuta o que diremos d’Ele (esperemos que com indulgência).
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Cristo Pantocrator (Catedral de Cefalù, Itália) |
Comecemos pelas raízes
bíblicas da “questão Jesus”. No Novo Testamento vemos delinear-se duas vias de
expressão do mistério de Cristo. A primeira delas é a de São Paulo. Resumamos
os traços peculiares dessa linha, os traços que a tornarão modelo e arquétipo
cristológico no desenvolvimento do pensamento cristão. Esta linha:
- Parte da humanidade para alcançar a divindade de Cristo; parte da história para
atingir a pré-existência; é, portanto, um caminho ascendente; segue a ordem do manifestar-se de Cristo, a ordem em que os homens o
conheceram, não a ordem do ser;
- Parte da dualidade de Cristo (carne e espírito) para
chegar à unidade do sujeito “Jesus Cristo, nosso
Senhor”;
- Tem no centro o Mistério Pascal, o operatum, mais do que a
pessoa de Cristo. O grande marco entre as duas fases da existência de Cristo é
a Ressurreição dos mortos.
Para nos convencermos de que
esta consideração é acertada, basta reler a densíssima passagem, uma espécie de
credo embrionário, com que o Apóstolo começa a Carta aos Romanos. O
mistério de Cristo é assim resumido: “Descendente de Davi segundo a carne, autenticado
como Filho de Deus com poder, pelo Espírito de santidade que o ressuscitou dos
mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1,3-4).
No hino cristológico de Filipenses
2 também se fala primeiro de Cristo na condição de servo e, depois, a partir da
Ressurreição, de Cristo exaltado como Senhor. Para Paulo, o sujeito concreto,
mesmo quando se define Cristo como “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15),
é sempre o Cristo da história, ainda que a ideia da pré-existência esteja longe
de lhe passar despercebida.
Um rápido olhar para os
tempos seguintes nos permite ver como serão acolhidos e desenvolvidos esses
traços paulinos de Jesus na geração sub-apostólica. Carne e espírito, que
indicavam originalmente duas fases da vida de Cristo, o antes e o depois
da Ressurreição, passarão a indicar, já em Santo Inácio de Antioquia, os dois nascimentos de Jesus (seu nascimento de Maria e seu
nascimento de Deus) e, finalmente, as duas naturezas
de Cristo.
Tertuliano escreve: “O Apóstolo
ensina aqui as duas naturezas de Cristo. Com as palavras ‘descendente de Davi
segundo a carne’, ele designa a humanidade; com as palavras ‘autenticado como
Filho de Deus pelo Espírito’, ele indica a divindade” [1].
A esta via ascendente do
mistério de Cristo, João expõe, em paralelo, uma via descendente. Podemos
resumir assim as características desta segunda via:
- Parte da divindade para chegar à humanidade; o esquema se
inverte: não mais “carne - espírito”, mas “Logos - carne”; não antes o
humano, o visível, e depois o divino e o invisível, mas o contrário; João adota
o ponto de vista do ser, não do manifestar-se de Cristo a nós, e,
segundo o ser, é claro que a divindade precede n’Ele a humanidade;
- É uma via que parte da unidade e chega à dualidade de elementos: Logos e carne,
divindade e humanidade; na linguagem posterior: parte da pessoa para chegar às naturezas.
- O grande divisor de águas, o eixo em torno ao qual toda a história gira, é a Encarnação,
não a Ressurreição ou o Mistério Pascal.
De Cristo, interessa mais a pessoa
do que o operatum, o ser mais que o agir, que inclui até mesmo o Mistério
Pascal de Morte e Ressurreição. Este último serve essencialmente para revelar
quem é Jesus: “Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que Eu sou”
(Jo 8,28). A existência junto ao Pai é constantemente anteposta à sua
vinda ao mundo. Basta lembrar as duas grandes afirmações do início do Quarto
Evangelho para mostrar a validade desta sumária reconstrução: “No princípio
era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus... E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós” (Jo 1,1.14).
São assim traçadas as duas
linhas sobre as quais caminhará toda a reflexão posterior da Igreja sobre
Cristo. Apesar das diferenças, há uma profunda afinidade e uma comunicabilidade
recíproca entre essas duas vias, o que permite que elas sejam percorridas em um
sentido ou no outro. Para os dois, Paulo e João, há em Jesus Cristo um elemento
divino e um elemento humano, mesmo sendo Ele um único sujeito. Para ambos, Ele
é o revelador e o redentor universal, embora João insista mais no
revelador e Paulo mais no redentor. Para ambos a nossa relação com Cristo é
mediata e possibilitada pelo Espírito Santo. É crendo em Cristo, dizem ambos,
que recebemos o Espírito (Gl 3,2; Jo 7,39) e é recebendo o
Espírito que podemos crer em Cristo (1Cor 12,3; Jo 6,63).
Ao se passar à época
seguinte, essas duas vias tendem a se consolidar, dando espaço a dois modelos
ou arquétipos, e, finalmente, nos séculos IV e V, a duas escolas cristológicas. As escolas a que me refiro
são a alexandrina, por ter seu maior centro em Alexandria do Egito, e a antioquena,
irradiada de Antioquia da Síria. A principal razão da sua diferença não é, como
chegou-se a pensar, que os alexandrinos se inspirassem em Platão e os antioquenos
em Aristóteles, e sim que os primeiros se inspiravam mais em João e os segundos
em Paulo.
Nenhum dos seguidores de
qualquer das duas vias é consciente de escolher entre Paulo e João. Cada um tem
a certeza de estar com os dois, o que é certamente verdadeiro. O fato, porém, é
que as duas influências são bem visíveis e distinguíveis, como dois rios que,
mesmo fluindo juntos, continuam se distinguindo pela cor diferente das águas. A
diferença entre as duas escolas não é tanto que alguns sigam Paulo e outros
João, mas que alguns interpretem João à luz de Paulo e outros interpretem Paulo
à luz de João. A diferença está no esquema, ou na perspectiva de fundo, adotada
para ilustrar o mistério de Cristo.
Pode-se dizer que essas duas
escolas formaram as linhas principais do dogma cristológico. A síntese entre as
duas instâncias ocorreu, como é bem sabido, no Concílio Ecumênico de
Calcedônia, em 451, com a contribuição decisiva do Ocidente, representado por
São Leão Magno. Aqui a verdade subjacente sobre a unidade da pessoa de Cristo,
levada adiante em Alexandria e reconhecida no Concílio de Éfeso, se conjuga com
a instância fundamental dos antioquenos quanto à natureza humana integral de
Cristo. As duas vias tradicionais são reconhecidas, desde que abertas uma à
outra e em comunicação entre si.
O próprio modo de formulação
da definição de Calcedônia aplica este princípio. Nela, o mistério de Cristo é
formulado duas vezes e de duas maneiras diferentes: primeiro, de maneira
joanina e alexandrina, partindo da afirmação da unidade e chegando à afirmação
da distinção (“um só e mesmo Cristo, Senhor e Filho Unigênito, em duas
naturezas”); depois, de maneira paulina e antioquena, partindo da distinção das
naturezas para chegar à afirmação da unidade (“salvas as propriedades de cada
uma, as duas naturezas concorrem para formar uma só pessoa e hipóstase”). A
mesma via é percorrida a partir de então nos dois sentidos.
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Ícone de Cristo (Mosteiro de Santa Catarina, Monte Sinai) |
2. O rosto de Cristo no Oriente e no Ocidente
Podemos perguntar-nos: o que
aconteceu, depois de Calcedônia, com as duas vias ou modelos cristológicos
fundamentais elaborados pela Tradição? Desapareceram, nivelados, da definição
dogmática? No âmbito teológico, desde então, houve certamente uma única fé em
Cristo, comum ao Oriente e ao Ocidente. São João Damasceno, para o Oriente [2],
e Santo Tomás de Aquino, para o Ocidente, construíram ambos a sua síntese
cristológica com base em Calcedônia. Não houve, ao contrário do que aconteceu
no tocante à Trindade e ao Espírito Santo, divergências doutrinais
significativas entre a Ortodoxia e a Igreja Latina quanto à doutrina de Cristo.
No entanto, se da teologia e
da dogmática passarmos a olhar para outros aspectos da vida da Igreja,
notaremos que os dois modelos ou arquétipos cristológicos não se perderam. Eles
se conservaram e deixaram a sua marca, o primeiro na espiritualidade ortodoxa e
o segundo na latina. Em outras palavras, a Igreja Oriental privilegiou o Cristo
joanino e alexandrino, e, com isto, a centralidade da Encarnação, da divindade
de Cristo e da ideia de divinização; a Igreja Ocidental privilegiou o Cristo
paulino e antioqueno e, com isto, a humanidade de Cristo e o Mistério Pascal.
Não se trata, obviamente, de
uma divisão rígida. As influências se entrelaçam e variam de autor para autor,
de época para época e de ambiente para ambiente. Ambas as Igrejas acreditaram,
e com razão, que valorizavam conjuntamente João e Paulo, mas é por todos
admitido que o Cristo da tradição bizantina apresenta traços diferentes do
Cristo da tradição latina.
Consideremos alguns fatos
que destacam essa diversidade olhando para o Cristo oriental. Na arte, a imagem
mais característica do Cristo ortodoxo é o Pantocrator,
o Cristo glorioso. É Ele que a assembleia contempla na abside das grandes
basílicas. É claro que a arte bizantina também conhece o crucifixo, mas mesmo o
crucifixo tem traços gloriosos e de realeza, com o realismo da Paixão já
transfigurado pela luz da Ressurreição. Ele é, em suma, o Cristo joanino, para
o qual a cruz representa o momento de “exaltação” (Jo 12,32).
Do mistério de Cristo,
continua a ser colocado em primeiro plano o momento da Encarnação.
Coerentemente, a salvação é concebida como uma divinização do homem graças ao
contato com a carne vivificante do Verbo. São Simeão, o Novo Teólogo, por
exemplo, diz em uma oração a Cristo: “Descendo do teu santuário excelso, sem
deixares o seio do Pai, encarnado e nascido da Santa Virgem Maria, já então me
replasmaste e vivificaste, libertando-me da culpa dos nossos primeiros pais e
preparando para a subida ao céu” [3].
O essencial já aconteceu com
a Encarnação do Verbo. A ideia de divinização retorna em primeiro plano, por
impulso de Gregório Palamas, e caracterizará a “cristologia da última Bizâncio”
[4]. Acaso é ignorado o Mistério Pascal? Pelo contrário: todos sabem da
importância excepcional que tem a celebração da Páscoa para os ortodoxos. Mas
eis, de novo, um sinal revelador: do Mistério Pascal, o momento mais valorizado
não é tanto o abaixar-se, mas a glória; não a Sexta-feira Santa, mas o Domingo
da Ressurreição. De todos os pontos de vista prevalece a atenção ao Cristo
glorioso, ao Cristo Deus.
Estas características são
encontradas no ideal de
santidade que predomina
nesta espiritualidade. O vértice da santidade é visto, aqui, na transformação
do santo em imagem do Cristo glorioso. Na vida de dois dos santos mais típicos
da ortodoxia, São Simeão, o Novo Teólogo, e São Serafim de Sarov, encontramos o
fenômeno místico da conformação ao Cristo luminoso do Tabor e da Ressurreição.
O santo aparece quase transformado em luz.
Voltemos o olhar, agora,
para alguns aspectos da espiritualidade ocidental. Santo Agostinho escreve que,
dos três dias do Tríduo Pascal, “realizamos nesta vida o que é simbolizado pela
Cruz, enquanto mantemos na fé e na esperança o que é simbolizado pelo
sepultamento e pela Ressurreição” [5]. Em outras palavras: enquanto estamos
nesta vida, o Cristo Crucificado nos é mais próximo e imediato que o Ressuscitado.
De fato, na arte, a imagem
característica de Cristo, para o Ocidente, é o crucifixo. É ele que está
entronado ou pairando sobre o altar nas igrejas. A mesma representação do
crucifixo, em algum momento, se separa do modelo glorioso, régio, e assume
traços realistas de verdadeira dor e até mesmo de espasmo. É o crucifixo
paulino, que, na cruz, se tornou “pecado” e “maldição” para nós (cf. Gl
3,13).
Assume grande relevância, a
partir de São Bernardo e, depois, com o franciscanismo, a devoção e a atenção à
humanidade de Cristo e aos diversos “mistérios” da sua vida. A kenosis,
ou o abaixar-se de Cristo, ocupa um lugar de destaque, assim como o Mistério Pascal.
Neste contexto encontra a sua aplicação prática o princípio da “imitação de
Cristo”, que tinha sido o centro da teologia de Antioquia. Não é por nada que o
mais célebre livro de espiritualidade do medievo latino será justamente A Imitação de Cristo. Contra
toda tentativa de saltar a humanidade de Cristo para tender diretamente à união
com Deus, Santa Teresa de Ávila afirmará que não há nenhuma fase da vida
espiritual em que se possa prescindir da humanidade de Cristo [6].
Os santos proporcionam,
também aqui, uma espécie de desencontro prático. Qual é, no Ocidente, o sinal
da plenitude da santidade? Não é a conformação ao Cristo glorioso da
Transfiguração, mas a conformação ao Crucificado. A Ortodoxia não conhece casos
de santos estigmatizados, mas conhece, como vimos, casos de santos
transfigurados.
A Reforma Protestante, em
alguns aspectos, levou ao extremo alguns traços deste Cristo ocidental,
paulino, e do seu Mistério Pascal. Elevou a “teologia da cruz” a critério de
toda teologia, entrando em polêmica, às vezes, com a “teologia da glória”.
Kierkegaard chegará a dizer que, nesta vida, não podemos conhecer a Cristo a
não ser em sua humilhação [7].
É verdade que Lutero e os
protestantes, em oposição aos excessos medievais da imitação de Cristo, afirmaram que Cristo é, acima de
tudo, um dom a ser acolhido com a fé, muito mais do
que um modelo a ser seguido com a imitação. Mas,
aqui também, qual Cristo é visto como o “dom” a ser acolhido pela fé? Não é o Logos
que desce e se faz carne, mas o Cristo pascal paulino, o Cristo “para mim”, não
o Cristo “em si”.
Repito: devemos tomar
cuidado com a rigidez nessas distinções; elas se tornariam falsas e
anti-históricas. Por exemplo, a espiritualidade bizantina conhece todo um filão
de santidade conhecido como dos “loucos por Deus”, no qual a assimilação a
Cristo na sua kenosis é
fortemente acentuada. Mesmo com estas ressalvas, continua havendo uma diferença
de ênfase inegável. O Oriente caminhou de modo preponderante pela via aberta
por João, o Ocidente pela via aberta por Paulo. Mas ambos, fiéis a Calcedônia,
souberam abraçar, na sua perspectiva, também o outro polo do mistério, mantendo
as duas vias comunicadas.
A graça do momento presente
é que se começa a perceber a diversidade como uma riqueza e não mais como uma ameaça. Um teólogo ortodoxo
expressou este ponto de vista: do Cristo latino, considerado isoladamente, pode
derivar uma concepção demasiado histórica, terrena e humana da Igreja, e do
Cristo ortodoxo uma concepção muito escatológica, desencarnada e não atenta o
suficiente às suas tarefas históricas. Por isso, ele conclui que “a
catolicidade autêntica da Igreja não pode deixar de compreender tanto o Oriente
quanto o Ocidente” [8].
Não há necessidade,
portanto, de eliminar ou nivelar as diferenças detectadas. Uma vez reconhecida
a legitimidade e o caráter bíblico das duas abordagens, o que é necessário é o
intercâmbio dos dons, o respeito e a estima pela tradição do outro. É como se
Deus tivesse feito duas chaves de acesso à plenitude do mistério cristão e dado
uma ao Cristianismo oriental e a outra ao ocidental, de modo que uma não pode
abrir e chegar à plenitude sem a outra.
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Crucificação (Retábulo de Isenheimer, Matthias Grünewald) |
Na cidade de Colmar, na
Alsácia, existe um famoso retábulo de Matthias Grünewald. Nele, quando as duas
abas do políptico estão fechadas, vemos representada a Crucificação; quando
abertas, vemos no lado oposto a Ressurreição. A Crucificação é de um realismo
impressionante: vemos um Cristo em espasmos, com os dedos das mãos e dos pés
contorcidos e esticados como galhos de uma árvore seca; o corpo traz sulcos e
tem espinhos e pregos cravados em toda parte. É uma daquelas pinturas de Cristo
das quais Dostoiévski dizia que, observando-as durante longo tempo, “pode-se
até perder a fé” [9].
Por outro lado, o
Ressuscitado aparece, nessa pintura, imerso em uma luz fulgurante que mal
permite vislumbrar os traços de um rosto humano. Se nos detivéssemos neste
ponto, nos arriscaríamos, se não a “perder a fé”, certamente a perder a
confiança, porque esse Cristo parece distante da nossa experiência de
sofrimento. Não podemos dividir esse retábulo ou observá-lo de um lado só. É um
símbolo poderoso daquilo que aconteceria, em uma escala maior, com a separação
do Cristo ortodoxo e do Cristo ocidental. Eles devem sempre ser vistos juntos.
3. Unidos pelo amor a Cristo
Até aqui, percorremos a
estrada dos Padres e das testemunhas do passado. Revimos a história das suas
posições em torno à pessoa de Cristo. Mas não é isso o que realmente nos fará
progredir no caminho da unidade; não é, em outras palavras, a unidade substancial
da doutrina e da fé em Cristo, por mais que ela seja indispensável; é, sim, a
unidade no amor a Cristo! O que une profundamente ortodoxos e católicos, e que
pode deixar em segundo plano toda diferenciação, é um comum e renovado amor
pela pessoa de Jesus de Nazaré. Mas não o Jesus do dogma, da teologia e das
tradições, e sim o Jesus Ressuscitado e vivo hoje. O Jesus que é para nós um
“Tu”, não um “Ele”. Para usar uma distinção muito cara a um teólogo ortodoxo
contemporâneo, não o Jesus personagem,
mas o Jesus pessoa [10].
O corpo humano tem dois
pulmões, dois olhos, dois pés, duas mãos (metáforas muitas vezes utilizadas
para descrever a relação de sinergia entre Oriente e Ocidente), mas um só
coração! O corpo que é a Igreja tem apenas um coração e esse coração deve ser o
amor por Cristo. Nicolau Cabasilas, um dos autores espirituais mais amados, e
não só pela Ortodoxia, escreve: “Ao Salvador é preordenado o amor humano desde
o início, como a seu modelo e fim, quase um sacrário tão grande e tão amplo a
ponto de poder acolher a Deus... O desejo da alma se volta unicamente a Cristo.
Este é o lugar do seu descanso, porque só Ele é o bem, a verdade e tudo o que
inspira amor (eros)” [11].
Da mesma forma, em toda a
espiritualidade monástica ocidental ressoou a máxima de São Bento: “Nada,
absolutamente, antepor ao amor por Cristo” [12]. Isto não significa restringir
o horizonte do amor cristão de Deus a Cristo; significa amar a Deus da maneira
que Ele quer ser amado. Não se trata de um amor mediato, quase por procuração, por
meio do qual quem ama Jesus “é como se” amasse o Pai. Não, Jesus é um mediador
imediato; amando Jesus, amamos ipso
facto também o Pai, porque
Ele é “um só com o Pai” (Jo 10,30). O cristão pode, com todo direito,
aplicar a Cristo Ressuscitado e vivo no Espírito aquilo que Paulo disse de Deus
aos atenienses: “N’Ele vivemos, nos movemos e somos” (At 7,28).
Dado que estamos no Ano da Vida
Consagrada, eu gostaria de dedicar a ela um pensamento particular. A este
respeito, me permito retomar algumas reflexões que fiz, há certo tempo, neste
mesmo local, comentando a Encíclica de Bento XVI “Deus caritas est”.
Nela o então Sumo Pontífice afirma que o amor de doação e o amor de procura, ágape e eros (este último entendido em seu sentido
nobre, não no vulgar), são dois componentes inseparáveis no amor de Deus por
nós e em nosso amor por Deus. Neste reconhecimento, o Oriente precedeu o
Ocidente [13], que durante muito tempo foi prisioneiro da tese contrária, ou
seja, da incompatibilidade entre eros e ágape
[14].
O amor ainda sofre, neste
campo, uma nefasta separação, não só na mentalidade do mundo laico, mas também,
no lado oposto, entre os fiéis e, particularmente, entre as almas consagradas.
Encontramos no mundo, muitas vezes, um eros sem ágape;
entre os fiéis encontramos muitas vezes um ágape sem eros.
O eros sem ágape é um amor romântico, muitas vezes
passional, até violento; um amor de conquista que fatalmente reduz o outro a
objeto do próprio prazer e ignora toda dimensão de sacrifício, de fidelidade e
de doação; em outras palavras, de ágape.
O ágape sem eros se apresenta como um “amor frio”, um
amar “com a ponta dos dedos”, mais por imposição da vontade que por impulso
íntimo do coração; uma imersão em um molde previamente constituído, em vez da
criação de um modo próprio e irrepetível, como irrepetível é cada ser humano
diante de Deus. Os atos de amor voltados a Deus se parecem, neste caso, aos de
alguns amantes incautos, que escrevem à amada cartas de amor copiadas de um
manual.
O amor verdadeiro e integral
é uma pérola dentro de uma concha cujas duas partes são o eros e o ágape.
Não se podem separar estas duas dimensões do amor sem destruí-lo. É assim que
se apresenta o amor de Deus por nós, revelado na Bíblia. Ele não é só perdão,
misericórdia, doação de si; é também paixão, desejo, ciúme; não é só amor
paterno, mas também esponsal. Deus nos deseja, parecendo quase que não pode
viver sem nós. Assim também Cristo quer que seja o amor dos seus consagrados
por Ele.
A beleza e a plenitude da
vida consagrada dependem da qualidade do nosso amor por Cristo. Só isto é capaz
de defendê-la das debandadas do coração. Jesus é o homem perfeito; n’Ele estão,
em grau infinitamente superior, todas as qualidades e atenções que um homem
procura em uma mulher e uma mulher em um homem. O voto de castidade não
consiste na renúncia ao casamento, mas em preferir outro tipo de casamento, em
casar-se com “o mais belo dos filhos do homem”. “Casto - escreve São João
Clímaco - é aquele que repele o eros
com o eros” [15]: aquele que renuncia ao amor de
um homem ou de uma mulher pelo amor a Cristo.
Terminemos ouvindo o mais
antigo hino a Cristo conhecido fora da Bíblia, ainda hoje em uso nas Vésperas
da Liturgia ortodoxa, e nas Liturgias católica, anglicana e luterana. É usado
no momento de acender as luzes vespertinas e por isso é chamado de “lucernário”:
Luz jubilosa da glória santa
do Pai Celeste e Imortal, Santo e Bem-aventurado, ó Jesus Cristo!
Chegados ao pôr-do-sol
contemplando a luz vespertina, nós cantamos ao Pai e ao Filho e ao Espírito
Santo de Deus.
É digno que em todo tempo,
te louvemos com vozes puras, ó Filho de Deus, Doador da vida! Todo universo te
glorifica!
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Ressurreição (Retábulo de Isenheimer, Matthias Grünewald) |
Notas:
[1] Tertuliano, Adversus Praxean, 27,
11 (CCL 2, p. 1199).
[2] cf. João Damasceno, De fide Orthodoxa III (PG 94, 881ss).
[3] Simeão, o Novo Teólogo, Inni
e preghiere (SCh 196,
p. 332).
[4] cf. J. Meyendorff, Cristologia ortodossa, Roma,
1974, pp. 225.242.
[5] Agostinho, Cartas, 55,
14, 24 (CSEL 34, 1, p. 195).
[6] Teresa de Ávila, Autobiografia, 22, 1ss.
[7] cf. S. Kierkegaard, O exercício do Cristianismo I-II.
[8] P. B. Vasiliadis, Vedere Dio: Incontro tra Oriente e
Occidente, EDB, Bolonha, 1994, p. 97.
[9] F. Dostoiévski, O Idiota II, 4.
[10] J. D. Zizioulas, Du personnage à la personne, in:
L’etre ecclesial,
Genebra, 1981, pp. 23-56.
[11] N. Cabasilas, Vida em Cristo, II, 9 (PG
88, 560-561).
[12] Regra de São Bento, 4 Prólogo.
[13] P. Evdokimov, L’Ortodossia, Bolonha, 1965,
p. 161.
[14] Anders Nygren, Eros e ágape,
Güterslho, 1937.
[15] São João Clímaco, A escada do paraíso, XV, 98
(PG 88, 880).
Fonte: Zenit (Acesso em março de 2015).
Confira o índice das meditações do Cardeal Cantalamessa publicadas em nosso blog clicando aqui.
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