quinta-feira, 27 de junho de 2024

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Jesus Cristo 50

Após suas reflexões sobre o significado da Morte de Cristo (nn. 64-70) e sobre suas últimas palavras na Cruz (nn. 71-74), o Papa São João Paulo II dedicou duas das Catequeses sobre Jesus Cristo às “consequências” da sua Morte, a primeira das quais reproduzimos a seguir.

Para acessar a postagem que serve de Introdução a esta série, com os links para todas as Catequeses, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO

IV. O sacrifício de Jesus Cristo
C. “Consequências” da Morte de Cristo

75. Primeiros sinais da fecundidade da Morte redentora de Cristo
João Paulo II - 14 de dezembro de 1988

1. O evangelista Marcos escreve que, quando Jesus morreu, o centurião que estava diante d’Ele, vendo-o expirar daquela forma, disse: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” (Mc 15,39). Isto significa que naquele momento o centurião romano teve uma lúcida intuição da realidade de Cristo, uma percepção inicial da verdade fundamental da fé.

O centurião havia escutado os impropérios e os insultos dirigidos a Jesus pelos seus adversários e, em particular, as zombarias sobre o título de Filho de Deus, reivindicado por Aquele que agora não podia descer da cruz nem fazer nada para se salvar.

Crucificação (Duccio)
Note-se o sangue e a água que brotam do lado de Cristo

Contemplando o Crucificado, talvez já durante a agonia, mas de modo mais intenso e penetrante no momento da sua morte, e talvez, quem sabe, encontrando-se com seu olhar, sente que Jesus tem razão. Sim, Jesus é um homem e, de fato, morre; mas n’Ele há mais do que um homem; é um homem que verdadeiramente, como Ele mesmo disse, é Filho de Deus. Aquele modo de sofrer e de morrer, aquele entregar o espírito nas mãos do Pai, aquele evidente imolar-se por uma causa suprema à qual dedicou toda sua vida, exercem um poder misterioso sobre aquele soldado, que talvez chegou ao Calvário depois de uma longa aventura militar e espiritual, como imaginou algum escritor, e que nesse sentido pode representar todo pagão que busca algum testemunho revelador de Deus.

2. O fato é notável também porque naquela hora os discípulos de Jesus estão desconcertados e abalados em sua fé (cf. Mc 14,50; Jo 16,32). O centurião, ao contrário, precisamente naquela hora inaugura a série de pagãos que logo pedirão ser admitidos entre os discípulos d’Aquele homem no qual, especialmente depois da sua Ressurreição, reconhecerão o Filho de Deus, como testemunham os Atos dos Apóstolos.

O centurião do Calvário não espera a Ressurreição: bastam-lhe aquela morte, aquelas palavras e aquele olhar de Jesus agonizante para chegar a pronunciar seu ato de fé. Como não ver nisto o fruto de um impulso da graça divina, obtido para aquele soldado por Cristo Salvador com seu sacrifício?

O centurião, por sua vez, não deixou de pôr a condição indispensável para receber a graça da fé: a objetividade, que é a primeira forma de lealdade. Ele contemplou, viu, rendeu-se à realidade dos fatos e por isso lhe foi concedido crer. Não fez cálculos sobre as vantagens de estar do lado do Sinédrio, nem se deixou intimidar por ele, como Pilatos (cf. Jo 19,8); ele viu as pessoas e as coisas e assistiu à morte de Jesus como testemunha imparcial. Nisto sua alma estava limpa e bem disposta. Por isso foi atingido pela força da verdade e acreditou. Não hesitou em proclamar que Aquele homem era Filho de Deus. Era o primeiro sinal da redenção ocorrida.

3. Outro sinal é registrado por São João quando escreve que “um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água” (Jo 19,34).

Note-se que Jesus já está morto. Morreu antes dos dois malfeitores crucificados com Ele. Isto prova a intensidade dos seus sofrimentos. O golpe de lança não é, portanto, um novo sofrimento infligido a Jesus. Serve mais como sinal do dom total que Ele fez de si mesmo, sinal inscrito em sua própria carne com a perfuração do lado e, podemos dizer, com a abertura do seu coração, manifestação simbólica daquele amor pelo qual Jesus deu e continuará dando tudo à humanidade.

4. Dessa abertura do coração brotam sangue e água. É um fato que pode ser explicado fisiologicamente. Mas o evangelista o cita por seu valor simbólico: é um sinal e anúncio da fecundidade do sacrifício. É tal a importância que o evangelista lhe atribui que, após narrar o episódio, acrescenta: “Aquele que viu dá testemunho, e o seu testemunho é verdadeiro, e ele sabe que fala a verdade, para que também vós creiais” (Jo 19,35). Apela, portanto, a uma constatação direta, realizada por ele mesmo, para enfatizar que se trata de um acontecimento carregado de grande valor significativo sobre os motivos e os efeitos do sacrifício de Cristo.

5. Com efeito, o evangelista reconhece nesse acontecimento o cumprimento daquilo que foi predito em dois textos proféticos. O primeiro diz respeito ao cordeiro pascal dos hebreus, ao qual “não se quebrará nenhum osso” (cf. Ex 12,46; Nm 9,12; Sl 33,21). Para o evangelista o Cristo crucificado é, pois, o Cordeiro Pascal, o “Cordeiro dessangrado”, como diz Santa Catarina de Siena, o Cordeiro da nova aliança, prefigurado na Páscoa da antiga lei e “sinal eficaz” da nova libertação - não só de Israel, mas de toda a humanidade - da escravidão do pecado.

6. A outra citação bíblica feita por João é um texto obscuro, atribuído ao Profeta Zacarias, que diz: “Olharão para aquele a quem transpassaram” (Zc 12,10) [1]. A profecia se refere à libertação de Jerusalém e de Judá pela ação de um rei, por cuja vinda a nação reconhece sua culpa e se lamenta sobre aquele que ela transpassou como se chora um filho único perdido. O evangelista aplica o texto a Jesus transpassado e crucificado, agora contemplado com amor. Aos olhares hostis dos inimigos seguem-se os olhares contemplativos e amorosos dos que se convertem. Esta possível interpretação serve para compreender a perspectiva teológico-profética na qual o evangelista considera a história que vê desenvolver-se a partir do coração aberto de Jesus.

7. O sangue e a água foram interpretados de diversas formas em seu valor simbólico.
No Evangelho de João é possível observar uma relação entre a água que brota do coração transpassado e o convite de Jesus na Festa das Tendas: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim. Conforme diz a Escritura: Do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo 7,37-38; cf. Jo 4,10-14; Ap 22,1). O evangelista precisa que Jesus se referia ao Espírito que deviam receber os que cressem n’Ele (Jo 7,39).

Alguns interpretaram o sangue como símbolo da remissão dos pecados pelo sacrifício expiatório e a água como símbolo de purificação. Outros relacionaram o sangue e a água com a Eucaristia e o Batismo.

O evangelista não ofereceu elementos suficientes para interpretações precisas. Mas parece que no texto sobre o coração transpassado do qual brotam sangue e água foi dada uma indicação: a efusão de graça que provém do sacrifício, como ele mesmo diz, desde o início do seu Evangelho, sobre o Verbo Encarnado: “De sua plenitude todos nós recebemos, e graça sobre graça” (Jo 1,16).

8. Queremos concluir observando que o testemunho do discípulo amado assume todo seu sentido se pensarmos que esse discípulo havia reclinado sua cabeça sobre o peito de Jesus durante a Última Ceia (cf. Jo 13,23.25). Agora ele via esse peito desgarrado. Por isso sentia a necessidade de enfatizar o símbolo da caridade infinita que havia descoberto naquele coração e convidar os leitores do seu Evangelho e todos os cristãos a contemplar aquele coração “que tanto amou os homens” e que se entregou em sacrifício por eles.

Crucificação (Duccio)

Nota:
[1] Na Bíblia da CNBB, que estamos usando nessas Catequeses, a tradução do versículo é ligeiramente distinta: “Aquele a quem transpassaram, eles o lamentarão” (Zc 12,10).

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (14 de dezembro de 1988).

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