Por ocasião da Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos, resgatamos a Homilia e a meditação durante o Ângelus do Papa Bento XVI (†2022) no dia 29 de junho de 2011, ocasião em que o Pontífice celebrou os 60 anos da sua Ordenação sacerdotal:
Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo
Concelebração Eucarística e Imposição do Pálio aos novos Arcebispos Metropolitanos
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica Vaticana
29 de junho de 2011
Amados irmãos e irmãs!
«Non iam servos, sed amicos» - «Já não
vos chamo servos, mas amigos» (Jo 15,15).
Passados 60 anos da minha Ordenação Sacerdotal, sinto ainda ressoar no meu
íntimo estas palavras de Jesus, que o nosso grande Arcebispo, o Cardeal
Faulhaber, com voz um pouco débil, mas firme, dirigiu a nós, novos sacerdotes,
no final da cerimônia da Ordenação. Segundo o ordenamento litúrgico daquele
tempo, esta proclamação significava então a explícita concessão aos novos
sacerdotes do mandato de perdoar os pecados. «Já não sois servos, mas amigos»:
eu sabia e sentia que esta não era, naquele momento, apenas uma frase «de cerimônia»;
e que era mais do que uma mera citação da Sagrada Escritura. Estava certo
disto: neste momento, Ele mesmo, o Senhor, a dizia a mim de modo muito pessoal.
No Batismo e na Confirmação, Ele já nos atraíra a si, acolhera-nos na família
de Deus. Mas o que estava acontecendo naquele momento era algo mais. Ele
chama-me amigo. Acolhe-me no círculo daqueles que receberam a sua palavra no
Cenáculo; no círculo daqueles que Ele conhece de um modo muito particular e que
chegam assim a conhecê-lo de modo particular. Concede-me a faculdade, que quase
amedronta, de fazer aquilo que só Ele, o Filho de Deus, pode legitimamente
dizer e fazer: Eu perdoo os teus pecados. Ele quer que eu - por seu mandato -
possa pronunciar com o seu «Eu» uma palavra que não é meramente palavra, mas ação
que produz uma mudança no mais íntimo do ser. Sei que, detrás de tais palavras,
está a sua Paixão por nossa causa e em nosso favor. Sei que o perdão tem o seu
preço: na sua Paixão, Ele desceu até ao fundo tenebroso e sórdido do nosso
pecado. Desceu até à noite da nossa culpa, e só assim esta pode ser
transformada. E, através do mandato de perdoar, Ele me permite lançar um olhar
ao abismo do homem e à grandeza do seu padecer por nós, homens, que me deixa
intuir a grandeza do seu amor. Ele me diz em confidência: «Já não és servo, mas
amigo». Ele confia-me as palavras da Consagração na Eucaristia. Ele
considera-me capaz de anunciar a sua Palavra, de explicá-la retamente e de levá-la
aos homens de hoje. Ele entrega-se a mim. «Já não sois servos, mas amigos»:
trata-se de uma afirmação que gera uma grande alegria interior mas ao mesmo
tempo, na sua grandeza, pode fazer-nos sentir, ao longo das décadas, calafrios
com todas as experiências da própria fraqueza e da sua bondade inexaurível.
«Já não sois
servos, mas amigos»: nesta frase está encerrado o programa inteiro de uma vida
sacerdotal. O que é verdadeiramente a amizade? «Idem velle, idem nolle» - «Querer as mesmas coisas e não querer as
mesmas coisas», diziam os antigos. A amizade é uma comunhão do pensar e do
querer. O Senhor não se cansa de nos dizer a mesma coisa: «Conheço os meus e os
meus me conhecem» (cf. Jo 10,14).
O Pastor chama os seus pelo nome (cf. v. 3). Ele conhece-me pelo nome.
Não sou um ser anônimo qualquer, na infinidade do universo. Conhece-me de modo
muito pessoal. E eu, conheço-o? A amizade que Ele me dedica pode apenas
traduzir-se em que também eu o procure conhecer cada vez melhor; que eu, na
Escritura, nos Sacramentos, no encontro da oração, na comunhão dos Santos, nas
pessoas que se aproximam de mim mandadas por Ele, procure conhecer sempre mais
a Ele mesmo. A amizade não é apenas conhecimento; é sobretudo comunhão do
querer. Significa que a minha vontade cresce rumo ao «sim» da adesão à d’Ele.
De fato, a sua vontade não é uma vontade externa e alheia a mim mesmo, à qual
mais ou menos voluntariamente me submeto ou então nem sequer me submeto. Não!
Na amizade, a minha vontade, crescendo, une-se à d’Ele: a sua vontade torna-se
a minha, e é precisamente assim que me torno de verdade eu mesmo. Além da
comunhão de pensamento e de vontade, o Senhor menciona um terceiro e novo
elemento: Ele dá a sua vida por nós (cf. Jo 15,13; 10,15). Senhor, ajudai-me a conhecer-vos cada vez melhor!
Ajudai-me a identificar-me cada vez mais com a vossa vontade! Ajudai-me a viver
a minha existência, não para mim mesmo, mas a vivê-la juntamente convoco para
os outros! Ajudai-me a tornar-me sempre mais vosso amigo!
Esta palavra de
Jesus sobre a amizade situa-se no contexto do discurso sobre a videira. O
Senhor relaciona a imagem da videira com uma tarefa dada aos discípulos: «Eu
vos destinei, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça» (Jo 15,16). A primeira tarefa dada aos
discípulos, aos amigos, é pôr-se a caminho, sair de si mesmos e ir ao encontro
dos outros. A par desta, podemos ouvir também a frase que o Ressuscitado dirige
aos seus e que aparece na conclusão do Evangelho de Mateus: «Ide e fazei
discípulos de todas as nações...» (Mt
28,19). O Senhor exorta-nos a superar as fronteiras do ambiente onde vivemos e
levar ao mundo dos outros o Evangelho, para que permeie tudo e, assim, o mundo
se abra ao Reino de Deus. Isto pode trazer-nos à memória que o próprio Deus
saiu de si, abandonou a sua glória, para vir à nossa procura e trazer-nos a sua
luz e o seu amor. Queremos seguir Deus que se põe a caminho, vencendo a
preguiça de permanecer cômodos em nós mesmos, para que Ele mesmo possa entrar
no mundo.
Depois da
palavra sobre o pôr-se a caminho, Jesus continua: dai fruto, um fruto que
permaneça! Que fruto Ele espera de nós? Qual é o fruto que permanece? Sabemos
que o fruto da videira são as uvas, com as quais depois se prepara o vinho. Por
agora detenhamo-nos sobre esta imagem. Para que as uvas possam amadurecer e
tornar-se boas, é preciso o sol, mas também a chuva, o dia e a noite. Para que deem
um vinho de qualidade, precisam ser pisadas, há que aguardar com paciência a
fermentação, tem-se de seguir com cuidadosa atenção os processos de maturação.
Características do vinho de qualidade são não só a suavidade, mas também a
riqueza das tonalidades, o variado aroma que se desenvolveu nos processos da maturação
e da fermentação. E por acaso não constitui já tudo isto uma imagem da vida
humana e, de modo muito particular, da nossa vida sacerdotal? Precisamos do sol
e da chuva, da serenidade e da dificuldade, das fases de purificação e de prova,
mas também dos tempos de caminho radioso com o Evangelho. Em um olhar retrospectivo,
podemos agradecer a Deus por ambas as coisas: pelas dificuldades e pelas
alegrias, pela horas escuras e pelas horas felizes. Em ambas reconhecemos a
presença contínua do seu amor, que incessantemente nos conduz e sustenta.
Agora, porém,
devemos interrogar-nos: de que gênero é o fruto que o Senhor espera de nós? O
vinho é imagem do amor: este é o verdadeiro fruto que permanece, aquele que
Deus quer de nós. Mas não esqueçamos que, no Antigo Testamento, o vinho que se
espera das uvas boas é sobretudo imagem da justiça, que se desenvolve em uma
vida segundo a lei de Deus. E não digamos que esta é uma visão
veterotestamentária, já superada. Não! Isto permanece sempre verdadeiro. O
autêntico conteúdo da Lei, a sua summa,
é o amor a Deus e ao próximo. Este duplo amor, porém, não é qualquer coisa
simplesmente doce; traz consigo o peso da paciência, da humildade, da maturação
na educação e assimilação da nossa vontade à vontade de Deus, à vontade de
Jesus Cristo, o Amigo. Só deste modo, tornando verdadeiro e reto todo o nosso
ser, é que o amor se torna também verdadeiro, só assim é um fruto maduro. A sua
exigência intrínseca, ou seja, a fidelidade a Cristo e à sua Igreja, requer
sempre que se realize também no sofrimento. É precisamente assim que cresce a
verdadeira alegria. No fundo, a essência do amor, do verdadeiro fruto,
corresponde à palavra relativa ao pôr-se a caminho, ao ir: amor significa
abandonar-se, dar-se; leva consigo o sinal da cruz. Neste contexto, disse uma
vez São Gregório Magno: «Se tendeis para Deus, tende cuidado de que não o
alcanceis sozinhos» (cf. Homiliae in
Evangelia 1, 6, 6: PL 76,
1097s). Trata-se de uma advertência que nós, sacerdotes, devemos ter
intimamente presente cada dia.
Queridos amigos,
talvez me tenha demorado demasiado com a recordação interior dos 60 anos do meu
ministério sacerdotal. Agora é tempo de pensar àquilo que é próprio deste
momento.
Na Solenidade
dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, antes de tudo dirijo a minha mais cordial
saudação ao Patriarca Ecumênico Bartolomeu e à Delegação por ele enviada, cuja
aprazível visita na ocasião feliz da festa dos Santos Apóstolos Padroeiros de
Roma vivamente agradeço. Saúdo também os Senhores Cardeais, os Irmãos no
Episcopado, os Senhores Embaixadores e as autoridades civis, como também os sacerdotes,
os colegas da minha Primeira Missa, os religiosos e os fiéis leigos. A todos
agradeço a presença e a oração.
Aos Arcebispos
Metropolitanos nomeados depois da última festa dos grandes Apóstolos será agora
imposto o pálio. Este, que significa? Pode recordar-nos em primeiro lugar o
jugo suave de Cristo que nos é colocado aos ombros (cf. Mt 11,29-30). O jugo de Cristo coincide
com a sua amizade. É um jugo de amizade e, consequentemente, um «jugo suave»,
mas por isso mesmo também um jugo que exige e plasma. É o jugo da sua vontade,
que é uma vontade de verdade e de amor. Assim, para nós, é sobretudo o jugo de
introduzir outros na amizade com Cristo e de estar à disposição dos outros, de
cuidarmos deles como Pastores. E assim chegamos a um novo significado do pálio:
este é tecido com a lã de cordeiros, que são abençoados na festa de Santa Inês.
Deste modo recorda-nos o Pastor que se tornou, Ele mesmo, Cordeiro por nosso
amor. Recorda-nos Cristo que se pôs a caminho pelos montes e descampados, aonde
o seu cordeiro - a humanidade - se extraviara. Recorda-nos como Ele pôs o
cordeiro, ou seja, a humanidade - a mim - aos seus ombros, para me trazer de
regresso a casa. E assim nos recorda que, como Pastores ao seu serviço, devemos
também nós carregar os outros, colocá-los por assim dizer aos nossos ombros e
levá-los a Cristo. Recorda-nos que podemos ser Pastores do seu rebanho, que
continua sempre a ser d’Ele e não se torna nosso. Por fim, o pálio significa
também, de modo muito concreto, a comunhão dos Pastores da Igreja com Pedro e
com os seus Sucessores: significa que devemos ser Pastores para a unidade e na
unidade, e que só na unidade, da qual Pedro é símbolo, guiamos verdadeiramente
para Cristo.
Sessenta anos de
ministério sacerdotal! Queridos amigos, talvez me tenha demorado demais nos
pormenores. Mas, nesta hora, senti-me impelido a olhar para aquilo que
caracterizou estas décadas. Senti-me impelido a dizer-vos - a todos os
presbíteros e Bispos, mas também aos fiéis da Igreja - uma palavra de esperança
e encorajamento; uma palavra, amadurecida na experiência, sobre o fato que o
Senhor é bom. Mas esta é sobretudo uma hora de gratidão: gratidão ao Senhor
pela amizade que me concedeu e que deseja conceder a todos nós. Gratidão às
pessoas que me formaram e acompanharam. E, subjacente a tudo isto, a oração
para que um dia o Senhor na sua bondade nos acolha e faça contemplar a sua
glória. Amém.
Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo
Papa Bento XVI
Ângelus
Quarta-feira, 29 de junho de 2011
Prezados irmãos e irmãs,
Desculpem o
longo atraso. A Missa em honra dos Santos
Pedro e Paulo foi prolongada e bonita. E pensamos também no bonito hino da
Igreja de Roma que começa: «O Roma felix!». Hoje, na Solenidade dos Santos Pedro e Paulo, Padroeiros
desta Cidade, cantamos: «Feliz és Roma, porque te tornaste purpúrea mediante o
precioso sangue de Príncipes tão grandiosos! Não para o teu louvor, mas pelos
seus méritos, tu superas toda a beleza!». Como entoam os hinos da tradição
oriental, os dois grandes Apóstolos são as «asas» do conhecimento de Deus, que
percorreram a terra até aos seus confins e se elevaram ao céu; eles são as
«mãos» do Evangelho da graça, os «pés» da verdade do anúncio, os «rios» da
sabedoria e os «braços» da cruz (cf. MHN, t. 5, 1899, p. 385). O testemunho de amor e de fidelidade
dos Santos Pedro e Paulo ilumina os Pastores da Igreja, para conduzir os homens
à verdade, formando-os na fé em Cristo. São Pedro, em particular, representa a
unidade do Colégio Apostólico. Por este motivo, durante a Liturgia celebrada esta
manhã na Basílica Vaticana, impus a 40 Arcebispos Metropolitanos o palio, que manifesta a comunhão com o
Bispo de Roma na missão de guiar o povo de Deus para a salvação. Escreve Santo
Irineu, Bispo de Lião, que para a Igreja de Roma, «pela sua peculiar principalidade [propter potentiorem principalitatem]
deve convergir todas as outras Igrejas, ou seja, os fiéis que estão em toda a
parte, porque nela esteve sempre conservada a tradição que provém dos
Apóstolos» (Adversus haereses, III,
3, 2).
É a fé professada
por Pedro que constitui o fundamento da Igreja: «Tu és o Cristo, o Filho do
Deus vivo», lemos no Evangelho de Mateus (Mt 16,16). O primado de
Pedro é predileção divina, como o é também a vocação sacerdotal: «Não foi a
carne nem o sangue que te revelou isso - disse Jesus - mas o meu Pai que está
nos céus» (v. 17). Assim acontece com aquele que decide responder ao chamado de
Deus com a totalidade da própria vida. Recordo-o de bom grado no dia de hoje,
no qual se completa para mim o 60º aniversário de Ordenação Sacerdotal.
Obrigado pela vossa presença, pelas vossas orações! Estou grato a vós, estou
grato sobretudo ao Senhor pela sua chamada e pelo ministério que me confiou, e
agradeço àqueles que, nesta circunstância, me manifestaram a sua proximidade e sustentam
a minha missão com a oração, que de todas as comunidades eclesiais se eleva
incessantemente a Deus (cf. At
12,5), traduzindo-se em adoração a Cristo Eucaristia para aumentar a força e a
liberdade de anunciar o Evangelho.
Neste clima,
estou feliz por saudar cordialmente a Delegação do Patriarcado Ecumênico de
Constantinopla, hoje presente em Roma, segundo o significativo hábito, para
venerar os Santos Pedro e Paulo, e compartilhar comigo o auspício da unidade
dos cristãos desejada pelo Senhor. Invoquemos com confiança a Virgem Maria,
Rainha dos Apóstolos, a fim de que cada batizado se torne cada vez mais uma
«pedra viva» que edifica o Reino de Deus.
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