Quarta e última meditação do Papa São João Paulo II sobre as últimas palavras de Jesus na Cruz dentro das suas Catequeses sobre Jesus Cristo.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO
74. “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”
João Paulo II - 07 de dezembro de 1988
1. “Está consumado” (Jo 19,30).
Segundo o Evangelho de João, Jesus pronunciou essas palavras pouco antes
de expirar. Foram as últimas. Manifestam sua consciência de ter cumprido até o
fim a obra para a qual foi enviado ao mundo (cf. Jo 17,4).
Notemos: não é tanto a consciência de ter realizado projetos seus, mas de ter realizado
a vontade do Pai na obediência que o impulsiona à completa imolação de si na
cruz. Só por isso Jesus agonizante já aparece como modelo do que deveria ser a morte
de todo homem: a conclusão da obra designada a cada um para o cumprimento dos
desígnios divinos. Segundo o conceito cristão da vida e da morte, até o momento
da morte os homens são chamados a cumprir a vontade do Pai, e a morte é o
último ato, definitivo e decisivo, do cumprimento dessa vontade. Jesus no-lo ensina
do alto da cruz.
2. “Pai, em tuas mãos entrego
o meu espírito” (Lc 23,46). Com estas palavras Lucas explicita
o conteúdo do segundo grito que Jesus proferiu pouco antes de morrer (cf. Mc 13,37;
Mt 27,50). No primeiro grito Ele tinha exclamado: “Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Mt 27,46).
Estas palavras são completadas por aquelas outras, que constituem o fruto de uma
reflexão interior amadurecida na oração. Se por um momento Jesus sofreu a
tremenda sensação de ser abandonado pelo Pai, agora sua alma reage do único
modo que, como Ele bem sabe, corresponde a um homem que, ao mesmo tempo, é também
o “Filho amado” de Deus: o total abandono em suas mãos.
Calvário (Luca Giordano) |
Jesus expressa este seu sentimento
com palavras que pertencem ao Salmo 30, o Salmo do aflito que prevê sua libertação
e dá graças a Deus que está por realizá-la: “Em tuas mãos entrego o meu espírito;
Tu me resgataste, Senhor, Deus fiel” (v. 6). Jesus, em sua lúcida agonia, recorda
e balbucia também algum versículo desse Salmo, recitado muitas vezes durante sua
vida. Mas, na narração do evangelista, aquelas palavras na boca de Jesus adquirem
um novo valor.
3. Com a invocação “Pai” (“Abbá”), Jesus dá ao seu abandono nas mão do Pai um acento de
confiança filial. Jesus morre como Filho. Morre em perfeita conformidade com a
vontade do Pai, pela finalidade de amor que o Pai lhe confiou e que o Filho conhece
bem.
Na perspectiva do salmista, o homem,
atingido pela desgraça e afligido pela dor, põe seu espírito nas mãos de Deus
para escapar da morte que o ameaça. Jesus, ao contrário, aceita a morte e entrega
seu espírito nas mãos do Pai para atestar sua obediência e manifestar sua confiança
em uma vida nova. Seu abandono é, portanto, mais pleno e radical, mais audaz, mais
definitivo, mais carregado de vontade oblativa.
4. Além disso, este último grito é
um complemento do primeiro, como notamos desde o princípio. Retomemos os dois
textos e vejamos o que resulta da sua comparação, antes de tudo sob o aspecto simplesmente
linguístico e quase semântico.
O termo “Deus” do Salmo 21 é retomado,
no primeiro grito, como uma invocação que pode significar a perda do homem no
próprio nada diante da experiência do abandono por parte de Deus, considerado em
sua transcendência e experimentado quase em um estado de “separação” (o Santo, o
Eterno, o Imutável). No segundo grito Jesus recorre ao Salmo 30, acrescentando a
invocação de Deus como Pai (“Abbá”), apelativo que lhe é habitual e no
qual se expressa bem a familiaridade de um intercâmbio de calor paterno e de atitude
filial.
E mais: no primeiro grito Jesus também
inclui um “por quê?” a Deus, certamente com profundo respeito à sua vontade, seu
poder, sua grandeza infinita, mas sem reprimir o sentimento de humana consternação
que não pode deixar de suscitar uma morte como aquela. Agora, ao contrário, no
segundo grito, há a expressão de abandono confiante nos braços do Pai sábio e
benigno, que dispõe e rege tudo com amor. Houve um momento de desolação, no qual
Jesus se sentiu sem apoio e defensa por parte de todos, mesmo de Deus: um momento
tremendo, mas que logo foi superado graças à entrega de si mesmo nas mãos do Pai,
cuja presença amorosa e imediata Jesus percebe na estrutura mais profunda do seu
próprio “eu”, já que Ele está no Pai como o Pai está n’Ele (cf. Jo 10,38;
14,10s), também na cruz!
5. As palavras e os gritos de Jesus
na cruz, para serem compreendidos, devem ser considerados em relação ao que Ele
mesmo havia anunciado anteriormente, nas previsões da sua morte e no ensinamento
sobre o destino do homem a uma vida nova. A morte é para todos uma passagem à existência
no além; para Jesus é, por sua vez, a premissa da Ressurreição que ocorrerá ao
terceiro dia. A morte, portanto, tem sempre um caráter de dissolução do composto
humano, o que suscita repulsa; mas, após o primeiro grito, Jesus com grande
serenidade entrega o seu espírito nas mãos do Pai, em vista da nova vida e, mais
ainda, da Ressurreição da morte, que marcará o coroamento do Mistério Pascal.
Assim, depois de todos os tormentos dos sofrimentos padecidos, físicos e morais,
Jesus abraça a morte como uma entrada na paz inalterável daquele “seio do Pai”
para o qual estava orientada a toda sua vida.
6. Com a sua morte, Jesus revela
que no final da vida o homem não está condenado a mergulhar na escuridão, no vazio
existencial, no abismo do nada, mas é convidado ao encontro com o Pai, para o
qual se dirigiu no caminho da fé e do amor durante a vida, e em cujos braços se
lançou com santo abandono na hora da morte. Um abandono que, como o de Jesus,
comporta o dom total de si por parte de uma alma que aceita ser despojada do seu
corpo e da vida terrena, mas que sabe que encontrará a vida nova nos braços, no
coração do Pai, a participação na própria vida de Deus, no mistério trinitário.
7. Através do mistério inefável da
morte, a alma do Filho chega a desfrutar da glória do Pai na comunhão do
Espírito (Amor do Pai e do Filho). Esta é a “vida eterna”, feita de conhecimento,
de amor, de alegria, de paz infinita.
O evangelista João diz que Jesus “entregou
o espírito” (Jo 19,30); Mateus, que “exalou o espírito” (Mt 27,50);
Marcos e Lucas, que “expirou” (Mc 15,37; Lc 23,46).
É a alma de Jesus que entra na plenitude da visão beatífica no seio da Trindade.
Nesta luz de eternidade se pode captar algo da misteriosa relação entre a
humanidade de Cristo e a Trindade, que aflora na Carta aos Hebreus quando,
falando da eficácia salvífica do sangue de Cristo, muito superior ao sangue dos
animais oferecidos nos sacrifícios da antiga aliança, se escreve que Cristo, na
sua morte, “em virtude do Espírito eterno, se ofereceu a Deus como vítima sem
mancha” (Hb 9,14).
Os anjos choram a Morte do Filho (Viktor Vasnetsov) |
Tradução nossa a partir do texto italiano
divulgado no site da Santa Sé (07 de dezembro de 1988).
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