quinta-feira, 13 de junho de 2024

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Jesus Cristo 48

Terceira meditação do Papa São João Paulo II sobre as últimas palavras de Jesus na Cruz dentro das suas Catequeses sobre Jesus Cristo.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO

73. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
João Paulo II - 30 de novembro de 1988

1. Segundo os Evangelhos Sinóticos, Jesus gritou duas vezes na cruz (cf. Mt 27,46.50; Mc 15,34.37); só Lucas explica o conteúdo do segundo (Lc 23,46). O primeiro grito expressa a profundidade e a intensidade do sofrimento de Jesus, sua participação interior, seu espírito de oblação e talvez também a leitura profético-messiânica que Ele faz do seu drama a partir de um salmo bíblico. O primeiro grito certamente manifesta os sentimentos de desolação e de abandono experimentados por Jesus com as primeiras palavras do Salmo 21: “À hora nona, Jesus gritou com voz forte: ‘Eloí, Eloí, lemá sabactâni?’ - que quer dizer: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’” (Mc 15,34; cf. Mt 27,46).

Marcos relata as palavras em aramaico. Podemos supor que esse grito parecia tão característico que as testemunhas auriculares do fato, quando narraram o drama do Calvário, acharam oportuno repetir as mesmas palavras de Jesus em aramaico, a língua falada por Ele e pela maioria dos israelitas seus contemporâneos. Essas puderam ter sido referidas a Marcos por Pedro, como sucede com a palavra “Abbá”, “Pai”, na oração do Getsêmani (cf. Mc 14,36).

Crucificação (El Greco)

2. O fato de que, em seu primeiro grito, Jesus use as palavras iniciais do Salmo 21 é significativo por várias razões. No espírito de Jesus, que costumava rezar seguindo os textos sagrados do seu povo, devem ter sido depositadas muitas daquelas palavras e frases que o impressionavam particularmente, porque expressavam melhor a necessidade e a angústia do homem diante de Deus e, de alguma forma, aludiam à condição d’Aquele que tomaria sobre si toda a nossa iniquidade (cf. Is 53,11).

Por isso, na hora do Calvário, foi espontâneo para Jesus apropriar-se daquela pergunta que o salmista faz a Deus sentindo-se esgotado pelo sofrimento. Mas em sua boca o “por quê?” dirigido a Deus era ainda mais eficaz, ao expressar um doloroso espanto pelo sofrimento que não tinha uma explicação simplesmente humana, mas que constituía um mistério do qual só o Pai tinha a chave. Por isso, mesmo nascendo da memória do Salmo lido ou recitado na sinagoga, a pergunta continha um significado teológico em relação ao sacrifício mediante o qual Cristo devia, em total solidariedade com o homem pecador, experimentar em si mesmo o abandono de Deus. Sob a influência dessa tremenda experiência interior, ao morrer Jesus encontrou forças para “explodir” nesse grito!

E nessa experiência, nesse grito, nesse “por quê?” dirigido ao céu, Jesus estabelece também um novo modo de solidariedade conosco, que tantas vezes somos levados a levantar olhos e lábios ao céu para expressar nosso lamento e alguns inclusive seu desespero.

3. Escutando Jesus pronunciar seu “por quê?”, aprendemos que, sim, também os homens que sofrem podem pronunciá-lo, mas com aquelas mesmas disposições de confiança e abandono filial das quais Jesus é nosso mestre e modelo. No “por quê?” de Jesus não há nenhum sentimento ou ressentimento que leve à revolta ou que induza ao desespero; não há sombra de reprovação dirigida ao Pai, mas é expressão da experiência de fragilidade, de solidão, de abandono a si mesmo, feita por Jesus em nosso lugar; por Ele que se torna assim o primeiro dos “humilhados e ofendidos”, o primeiro dos abandonados, o primeiro dos “desamparados”, mas que ao mesmo tempo nos diz que por todos esses pobres filhos de Eva zela o olhar benigno da Providência auxiliadora.

4. Na realidade, se Jesus experimenta o sentimento de ser abandonado pelo Pai, sabe, porém, que não o é em absoluto. Ele mesmo disse: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30), e falando da Paixão futura: “Eu não estou só, pois o Pai está comigo” (Jo 16,32). No alto do seu espírito Jesus tem uma visão clara de Deus e a certeza da união com o Pai. Mas nas áreas ligadas à sensibilidade e, portanto, mais sujeitas às impressões, emoções e repercussões das experiências dolorosas internas e externas, a alma humana de Jesus é reduzida a um deserto, e Ele já não sente a “presença” do Pai, mas faz a trágica experiencia da mais completa desolação.

5. Aqui podemos traçar um quadro sumário da situação psicológica de Jesus em relação a Deus.
Os acontecimentos exteriores parecem manifestar a ausência do Pai, que permite que o seu Filho seja crucificado, embora dispondo de “legiões de anjos” (Mt 26,53), sem intervir para impedir sua condenação à morte e seu suplício. No Horto das Oliveiras, Simão Pedro desembainhou uma espada em sua defesa, sendo imediatamente interrompido pelo próprio Jesus (cf. Jo 18,10s); no Pretório, Pilatos tentou repetidamente manobras dispersivas para salvá-lo (cf. Jo 18,31.38s; 19,4-6.12-15); mas o Pai, agora, está calado. Esse silêncio de Deus incide sobre Aquele que morre como a pena mais pesada, especialmente porque os adversários de Jesus consideram esse silêncio como sua reprovação: “Confiou em Deus; que o livre agora, se é que o ama! De fato, ele disse: ‘Eu sou Filho de Deus’” (Mt 27,43).

Na esfera dos sentimentos e dos afetos, este sentido de ausência e abandono de Deus foi a pena mais terrível para a alma de Jesus, que hauria sua força e sua alegria da união com o Pai. Essa pena tornou todos os outros sofrimentos mais duros. Essa falta de consolo interior foi o seu maior suplício.

6. Mas Jesus sabia que com essa fase extrema da sua imolação, que chegou às fibras mais íntimas do seu coração, Ele completava a obra da redenção que era a finalidade do seu sacrifício pela reparação dos pecados. Se o pecado é separação de Deus, Jesus devia experimentar, na crise da sua união com o Pai, um sofrimento proporcional a essa separação.

Por outro lado, citando o início do Salmo 21, que talvez continuou dizendo mentalmente durante a Paixão, Jesus não ignorava sua conclusão, que se transforma em um hino de libertação e um anúncio da salvação oferecida a todos por Deus. A experiência do abandono é, pois, uma pena passageira, que dá lugar à libertação pessoal e à salvação universal. Na alma aflita de Jesus essa perspectiva certamente alimentou a esperança, sobretudo porque Ele sempre apresentou sua Morte como uma passagem à Ressurreição, como sua verdadeira glorificação. E com este pensamento sua alma recobra vigor e alegria, sentindo que está próxima, precisamente no ápice do drama da cruz, a hora da vitória.

7. No entanto, pouco depois, talvez por influência do Salmo 21, que ressurge na sua memória, Jesus diz estas outras palavras: “Tenho sede” (Jo 19,28).

É bem compreensível que com estas palavras Jesus aluda à sede física, ao grande tormento que faz parte da pena da crucificação, como explicam os estudiosos dessa matéria. Podemos acrescentar também que, ao manifestar sua sede, Jesus demonstra humildade, expressando uma necessidade física elementar, como qualquer um teria feito. Também nisso Jesus se faz e se mostra solidário com todos aqueles que, vivos ou moribundos, sãos ou enfermos, pequenos ou grandes, necessitam e pedem ao menos um pouco de água (cf. Mt 10,42). Para nós é belo pensar que qualquer socorro prestado a um moribundo é prestado a Jesus crucificado!

8. Mas não podemos ignorar a anotação do evangelista, que escreve que Jesus disse essa expressão - “Tenho sede” - “para que se cumprisse a Escritura” (Jo 19,28). Também nessas palavras de Jesus há outra dimensão, além da físico-psicológica. A referência é também ao Salmo 21: “Minha garganta está seca, como barro cozido, e minha língua colou-se ao céu da boca; tu me reduziste ao pó da morte” (v. 16). Também no Salmo 68 se lê: “Na minha sede me deram vinagre” (v. 22).

Nas palavras do salmista trata-se de sede física, mas nos lábios de Jesus a sede entra na perspectiva messiânica do sofrimento da cruz. Em sua sede, o Cristo agonizante busca outra bebida bem distinta da água ou do vinagre: como quando, no poço de Sicar, pediu à samaritana: “Dá-me de beber” (Jo 4,7). A sede física, então, foi símbolo e passagem a outra sede: a da conversão daquela mulher. Agora, na cruz, Jesus tem sede de uma humanidade nova, que deverá surgir do seu sacrifício, em cumprimento das Escrituras. Por isso o evangelista relaciona o “grito da sede” de Jesus às Escrituras. A sede da cruz, nos lábios do Cristo agonizante, é a última expressão daquele desejo do batismo que devia receber e do fogo com o qual incendiar a terra, manifestado por Ele em vida: “Eu vim lançar fogo sobre a terra, e como desejaria que já estivesse acesso! Tenho um batismo no qual devo ser batizado, e como me angustio até que se complete!” (Lc 12,49-50). Agora esse desejo está para cumprir-se, e com suas palavras Jesus confirma o amor ardente com que quis receber esse supremo “batismo” para abrir a todos nós a fonte de água que verdadeiramente sacia e salva (cf. Jo 4,13-14).

Crucificação (El Greco)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (30 de novembro de 1988).

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