“Desde o nascer do sol até ao poente, em todo o lugar se oferece um sacrifício e uma oblação pura ao meu Nome” (Ml 1,11).
Na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, começamos a analisar os escritos dos “profetas
menores” após o exílio da Babilônia com o Livro de Ageu e os capítulos 1–8 do Livro de Zacarias.
Com esta postagem damos continuidade à proposta com o Livro de Malaquias (Ml), que figura na Bíblia cristã como o último dos escritos
proféticos do Antigo Testamento (AT).
Profeta Malaquias (James Tissot) |
1. Breve introdução ao Livro de Malaquias
A tradição judaica coloca Malaquias e o Dêutero-Zacarias
(Zc 9–14) como os últimos profetas, aos quais podemos acrescentar Joel. Embora figure por último na Bíblia
cristã, por razões teológicas, o Livro de
Malaquias é o mais antigo dos três citados, podendo remontar ao contexto
das reformas de Esdras e Neemias (século V a. C.).
As reformas desses dois personagens fundamentaram o Judaísmo
em três pilares: um Templo, uma Lei, um povo. Na narrativa de Malaquias
o Templo parece já estar concluído, pois o problema agora são os pecados dos
sacerdotes. A idolatria, interpretada como um casamento com uma mulher
estrangeira, nos coloca no contexto da proibição desses casamentos.
Malaquias é provavelmente um nome simbólico, que significa
“mensageiro”. Sua mensagem, composta por três capítulos, é formada por seis
unidades, “emolduradas” por um breve prólogo e um epílogo.
a) Ml 1,1: Prólogo, com o título da obra;
b) Ml 1,2-5: Acusação contra Edom e declaração do
amor de Deus por Israel;
c): Ml 1,6–2,9: Acusação contra os sacerdotes, que
oferecem animais indignos ao Senhor (provavelmente guardando os melhores
animais para si);
d) Ml 2,10-16: Acusação contra a idolatria e o
divórcio;
e) Ml 2,17–3,5: Acusação contra uma série de injustiças,
anunciando a vinda do “mensageiro” que antecede o “dia de Iahweh”;
f) Ml 3,6-12: Acusação contra fraudes nos dízimos -
se o povo for fiel, Deus promete abundância;
g) Ml 3,13-21: O profeta opõe o justo e o ímpio,
prometendo que o homem justo receberá a bênção do Senhor;
h) Ml 3,22-24: Epílogo (talvez como acréscimo
posterior), evocando Moisés, como luz para o passado, e Elias, como esperança
para o futuro.
Cada unidade possui três elementos que se repetem: crítica
do profeta, réplica dos destinatários e nova exortação do profeta. As primeiras
três controvérsias são mais fechadas no castigo do pecado, enquanto as três
últimas abrem-se à esperança escatológica no “dia de Iahweh”, quando reinará
a justiça.
As referências ao “mensageiro” que prepara o caminho diante
do Senhor (Ml 3,1) e ao profeta Elias (Ml 3,23-24) foram aplicadas
no Novo Testamento a João Batista (Mc 1,2; 9,11-12; Mt 17,10-13; Lc
1,17.76; 7,27; Jo 3,28), razão pela qual Malaquias foi disposto como último livro do AT na Bíblia cristã,
antecedendo a pregação de João.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
João Batista com as asas do "anjo" (mensageiro) entre Elias e Enoc (Daniel Codrescu - Bucareste, Romênia) |
2. Leitura litúrgica de Malaquias: Composição harmônica
Como temos feito com todos os livros da Sagrada Escritura
estudados nesta série, analisaremos a presença do Livro de Malaquias nas celebrações litúrgicas seguindo os dois critérios
de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa (ELM):
a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].
Começamos pela composição harmônica: a escolha do texto em
sintonia com o tempo ou festa litúrgica.
a) Celebração Eucarística
Iniciando nosso percurso pelos ciclo do Ano Litúrgico,
identificamos leituras do nosso livro em três ocasiões, uma no Advento e duas no Tempo Comum:
Na Missa do dia 23 de dezembro lê-se Ml
3,1-4.23-24 [2]. De 17 a 24 de dezembro as leituras do AT foram selecionadas
“levando em consideração o Evangelho do dia, com os acontecimentos que preparam
o nascimento do Senhor [3]. O Evangelho do dia 23, com efeito, narra o
nascimento de João Batista (Lc 1,57-66), o que justifica a dupla
perícope tradicionalmente aplicada a ele, como vimos acima: o “mensageiro” (Ml
3,1-4), traduzido aqui como “anjo”, e o “Elias” (vv. 23-24).
Antes de entrarmos nas leituras do Tempo Comum, cabe
destacar a célebre antífona de entrada da Missa do Dia da Solenidade da Epifania
do Senhor (Ecce advénit Dominátor...): “Eis que veio o Senhor dos
senhores, em suas mãos, o poder e a realeza” (cf. Ml 3,1; 1Cr
19,12) [4].
No XXXI Domingo do Tempo
Comum do ano A lemos Ml 1,14b–2,2b.8-10 [5]. Aqui as leituras do AT
são igualmente escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” (ELM, n. 106) [6],
razão pela qual se proclama a crítica do profeta aos maus sacerdotes, em
paralelo à crítica de Jesus aos fariseus e mestres da Lei no Evangelho (Mt
23,1-12).
No XXXIII Domingo do
Tempo Comum do ano C a leitura é Ml 3,19-20a [7], texto escatológico
que anuncia o “dia do Senhor”, no qual, para os justos, “nascerá o sol da
justiça, trazendo salvação em suas
asas”. No Evangelho (Lc 21,5-19), o discurso escatológico de Jesus
centra-se na exortação à perseverança em vista do fim: “É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida” (v. 19).
Passando ao Próprio
dos santos, que recolhe os textos para as celebrações do Senhor, da Virgem
Maria e dos principais santos com data fixa, encontramos nosso livro na Festa da Apresentação do Senhor (02 de
fevereiro). A perícope indicada aqui é Ml 3,1-4 [8], proferida como 1ª
leitura quando a festa cai em um domingo ou como leitura à escolha quando cai
em dia de semana, destacando a profecia messiânica: “Logo chegará ao seu templo o Dominador” (v. 1b).
O mesmo texto de Ml 3,1-4 é previsto para a Missa da Bem-aventurada Virgem Maria na
Apresentação do Senhor, formulário n. 7 da Coletânea de Missas de Nossa Senhora, a ser celebrada como “ponte” entre o Natal e o Tempo Comum [9].
Nos Comuns dos Santos, por fim, com textos para as várias “categorias” de santos, vale destacar a antífona de entrada do formulário n. 4 do Comum dos Santos, com o “elogio” do homem justo: “A palavra da verdade estava em sua boca e não se encontrou falsidade nos seus lábios. Andou comigo na paz e na retidão e a muitos afastou do mal” (Ml 2,6) [10].
“Eis que veio o Senhor dos senhores...” (Adoração dos Magos e Apresentação - Catedral de Cremona, Itália) |
b) Demais sacramentos
Além da Celebração Eucarística, há um texto do nosso livro
proposto para o Sacramento da
Reconciliação: Ml 3,1-7a [11], mais especificamente para celebrações
penitenciais no Tempo do Advento. Aqui o profeta exorta contra uma série de
injustiças, anunciando a vinda do “dia do Senhor”, concluindo com o mesmo
convite de Zc 1,3: “Voltai a mim e Eu voltarei a vós, diz o
Senhor” (Ml 3,7a).
c) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas,
por sua vez, identificamos quatro leituras breves de Malaquias sob o critério da composição harmônica:
- Hora Média (15h)
das quintas-feiras do Advento até a III semana e do dia 22 de dezembro: Ml
3,20-21b [12], anunciando que, para os que temem o nome do Senhor, “nascerá o sol da justiça, trazendo salvação”.
Vale recordar que em uma das “Antífonas do Ó”, entoadas de 17 a 23 de dezembro,
Cristo é aclamado precisamente como “sol
nascente, justiceiro” (“Oriens, sol
justitiae”).
- Laudes da
Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi): Ml 1,11 [13], anunciando o “sacrifício
perfeito” no tempo messiânico: em todo o tempo e lugar “se oferece um sacrifício e uma oblação pura” ao nome do Senhor.
- Laudes da Festa da Apresentação
do Senhor (02 de fevereiro): Ml 3,1 [14], sobre o Messias que vem ao
templo, como na Missa da Festa.
- Laudes da Solenidade
da Natividade de São João Batista (24 de junho): Ml 3,23-24 [15],
sobre a vinda do “Elias” antes do “dia do Senhor”, como vimos anteriormente.
3. Leitura litúrgica de Malaquias: Leitura semicontínua
a) Celebração Eucarística
Sob o critério da leitura semicontínua - proclamação dos
principais textos do livro na sequência -, nosso profeta é lido na Celebração
Eucarística em apenas um dia: na quinta-feira
da XXVII semana do Tempo Comum do ano ímpar. Nesta semana leem-se três
profetas pós-exílicos: além de Malaquias, Jonas (segunda a quarta-feira) e Joel (sexta-feira e sábado).
A perícope selecionada aqui é Ml 3,13-20a [16], a
última das seis “controvérsias”, na qual o profeta opõe o justo e o ímpio,
prometendo que o homem justo receberá a bênção do Senhor.
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas,
por sua vez, temos duas leituras em composição harmônica de Malaquias, proclamadas no Ofício das Leituras da sexta-feira e do
sábado da XXVIII semana do Tempo
Comum, logo após a leitura dos outros dois profetas pós-exílicos que o
precederam: Ageu (domingo e segunda-feira)
e Zacarias 1–8 (terça a
quinta-feira).
O nosso livro é proclamado aqui quase na íntegra, sendo omitidos
apenas os primeiros versículos do capítulo 2:
Ofício das Leituras: XXVIII semana do Tempo Comum
Sexta-feira:
Ml 1,1-14; 2,13-16 - “Profecia sobre os sacerdotes negligentes e
sobre o repúdio”;
Sábado: Ml
3,1-24 - “O dia do Senhor”
[17].
No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que
infelizmente ainda não foi traduzido para o Brasil, as mesmas perícopes acima
são lidas na sexta-feira e no sábado da XVIII semana do Tempo Comum no ano
par, logo após outros dois profetas pós-exílicos, Abdias (domingo) e
Joel (segunda a quinta-feira) [18].
Profeta Malaquias (Lorenzo Monaco) |
Breve bibliografia sobre o Livro de Malaquias:
ABREGO DE LACY, José Maria. O profeta Malaquias e a sua obra. in: Os livros proféticos.
2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 250-253. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, vol. 4.
CODY,
Aelred. Malaquias. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.;
MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 720-724.
HIMBAZA, Innocent.
Malaquias. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamento: História, Escritura e
Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 568-575.
RIVAS, Pedro Jaramillo Dias. Malaquias. in: OPORTO,
Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo
Testamento II. São Paulo:
Ave Maria, 2004, pp. 389-393.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO
II: Semanal. Tradução portuguesa
da 2ª edição típica para o Brasil.
São Paulo: Paulus, 1995.
[3] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 94.
[4] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 164.
[5] LECIONÁRIO
I: Dominical A-B-C. Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[6] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 103.
[7] LECIONÁRIO
I, op. cit.
[8] ibid.; LECIONÁRIO
III: Para as Missas dos Santos,
dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1997.
[9] LECIONÁRIO para
Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 36.
[10] MISSAL ROMANO, p. 774.
[11] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São
Paulo: Paulus: 1999, p. 206.
[12] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da
segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. I, pp. 148.203.259.329.
[13] ibid., vol. III, p. 553.
[14] ibid., vol. III, p. 1239.
[15] ibid., vol.
III, p. 1377.
[16] LECIONÁRIO II,
op. cit.
[17] OFÍCIO DIVINO, vol. IV, pp. 341.345.
[18] Fonte: Dei Verbum.
Imagens: Wikimedia Commons.
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