Confira nesta postagem as Catequeses nn. 31-32 do Papa São João Paulo II sobre Jesus Cristo, que prosseguem a reflexão sobre Jesus como “verdadeiro Deus”.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO
31. “Credes em Deus, crede também
em mim”
João Paulo II - 21 de outubro
de 1987
1. Em seu conjunto, os fatos que analisamos
nas Catequeses anteriores são eloquentes e demonstram a consciência da própria
divindade que Jesus tinha quando refere a si mesmo o nome de Deus, os atributos
divinos, o poder de julgamento final sobre as obras de todos os homens, o poder
de perdoar os pecados, o poder sobre a própria Lei de Deus. São todos
aspectos da única verdade que Ele afirma com força, a de ser verdadeiro
Deus, um só com o Pai. É o que diz abertamente aos judeus conversando com eles
no templo durante a festa da Dedicação: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30).
E, no entanto, ao atribuir a si o que é próprio de Deus, Jesus fala de si mesmo
como “Filho do homem”, tanto pela unidade pessoal do homem e de Deus n’Ele,
como seguindo a pedagogia escolhida de conduzir gradualmente os discípulos, quase
tomando-os pela mão, às alturas e profundezas misteriosas da sua verdade. Como “Filho
do homem” Ele não hesita em pedir: “Credes em Deus, crede também em mim” (Jo 14,1).
O desenvolvimento de todo o
discurso dos capítulos 14–17 do Evangelho de João, especialmente as respostas
dadas por Jesus a Tomé e Filipe, demonstram que, quando pede que creiam n’Ele, trata-se não
só da fé no Messias como o Ungido e o Enviado de Deus, mas da fé no Filho
que é da mesma natureza do Pai. “Credes em Deus, crede também em mim” (Jo 14,1).
Mosaico da Catedral de St. Louis, EUA Na inscrição, a exortação a “guardar a fé” (2Tm 4,7) |
2. É preciso examinar essas palavras
no contexto do diálogo de Jesus com os Apóstolos na Última Ceia, relatado no Evangelho
de João. Jesus diz aos Apóstolos que vai preparar-lhes um lugar na
casa do Pai (cf. Jo 14,2-3). E quando Tomé lhe pergunta pelo caminho
para ir a essa casa, a esse novo reino, Jesus responde que Ele é o caminho,
a verdade e a vida (v. 6). Quando Filipe lhe pede que mostre o Pai aos discípulos,
Jesus replica de modo absolutamente unívoco: “Quem me viu, viu o Pai. Como tu dizes:
‘Mostra-nos o Pai’? Não crês que Eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As
palavras que Eu vos falo, não as falo por mim mesmo, mas é o Pai que, permanecendo
em mim, realiza as suas obras. Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está
em mim. Crede ao menos por causa dessas obras” (vv. 9-11).
A inteligência humana não pode rejeitar
esta declaração de Jesus, senão partindo já a priori de um preconceito
“anti-divino”. Aos que admitem o Pai e, mais ainda, o buscam piedosamente, Jesus
se manifesta e lhes diz: “Vede: o Pai está em mim!”.
3. Antes de tudo, para dar razões
de credibilidade, Jesus apela às suas obras: a tudo o que realizou aos
olhos dos discípulos e de toda a gente. Tratam-se de obras santas e muitas vezes
milagrosas, realizadas como sinais da sua verdade. Por isso merece que se tenha
fé n’Ele.
Jesus o diz não só ao círculo dos Apóstolos,
mas diante de todo o povo. Lemos, com efeito, que no dia seguinte à entrada
triunfal em Jerusalém, a grande multidão que tinha chegado para as celebrações pascais
discutia sobre a figura de Cristo e a maioria não acreditava em Jesus, “apesar de
ter feito tantos sinais diante deles” (Jo 12,37). Em determinado
momento “Jesus exclamou: ‘Quem crê em mim, não é em mim que crê, mas n’Aquele
que me enviou. Quem me vê, vê Aquele que me enviou” (vv. 44-45). Assim, pois,
podemos dizer que Jesus Cristo se identifica com Deus como objeto da fé que pede
e propõe aos seus seguidores. E lhes explica: “O que Eu falo, o falo de acordo
com o que me disse o Pai” (v. 50): alusão clara à “proclamação” eterna pela qual
o Pai gera o Verbo-Filho na vida trinitária.
Esta fé, ligada às obras e às palavras
de Jesus, se torna uma “consequência lógica” para os que escutam Jesus honestamente,
observam suas obras, refletem sobre suas palavras. Mas essa fé é também o pressuposto
e a condição indispensável que o mesmo Jesus exige aos que desejam se tornar seus
discípulos ou beneficiar-se do seu poder divino.
4. É significativo a respeito o que
Jesus diz ao pai do menino epiléptico, possuído desde a infância por um “espírito
mudo” que o atacava de modo impressionante. O pobre pai suplica a Jesus: “Se podes
fazer alguma coisa, tem compaixão e ajuda-nos”. Jesus disse: “Se podes... Tudo é
possível para aquele que crê”. Imediatamente o pai do menino exclamou: “Eu creio,
mas vem em socorro da minha falta de fé” (Mc 9,22-23). E Jesus realiza
a cura e a libertação daquele desventurado; no entanto, pede ao pai do menino uma
abertura da alma à fé. É o que lhe ofereceram ao longo dos séculos tantas
criaturas humildes e aflitas que, como o pai do epiléptico, se dirigiram a Ele
para pedir-lhe ajuda nas necessidades temporais e sobretudo nas espirituais.
5. Ao contrário, ali onde os homens,
qualquer que seja sua condição social e cultural, lhe opõem uma resistência derivada
do orgulho e da incredulidade, Jesus “castiga” esta sua atitude não admitindo-os
aos benefícios concedidos por seu poder divino. É significativo e impressionante
o que se lê dos nazarenos, entre os quais Jesus havia retornado depois do início
do seu ministério e da realização dos primeiros milagres. Eles não só se admiravam
da sua doutrina e das suas obras, mas também “se escandalizavam por causa d’Ele”,
ou seja, falavam d’Ele e o tratavam com desconfiança e hostilidade, como “persona
non grata”.
“Jesus, então, dizia-lhes: ‘Um profeta
não é desprezado senão em sua terra, entre seus parentes e na sua casa’. E não conseguia
fazer ali nenhum milagre; apenas curou a uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos.
E admirava-se da incredulidade” (Mc 6,4-6). Os milagres são “sinais”
do poder divino de Jesus. Quando há obstinado fechamento ao reconhecimento desse
poder, o milagre perde sua razão de ser. Além disso, também aos discípulos, que
depois da cura do epiléptico perguntam a Jesus por que eles, que também haviam
recebido poder d’Ele, não conseguiram expulsar o demônio, Ele responde: “Por causa
da fraqueza de vossa fé! Em verdade vos digo: se tiverdes fé do tamanho de um
grão de mostarda, direis a esta montanha: ‘Vai daqui para lá’, e ela irá. Nada vos
será impossível” (Mt 17,20). É uma linguagem figurada e hiperbólica,
com a qual Jesus quer inculcar nos seus seguidores a necessidade e a força da fé.
6. É o que Jesus enfatiza também como
conclusão do milagre da cura do cego de nascença, quando o encontra e lhe pergunta:
“‘Tu crês no Filho do homem?’. Ele respondeu: ‘Quem é, Senhor, para que eu creia
n’Ele?’. Jesus disse: ‘Tu já o viste: é quem está falando contigo’. Ele
afirmou: “Eu creio, Senhor!’. E prostrou-se diante de Jesus” (Jo 9,35-38).
É o ato de fé de um homem humilde, imagem de todos os humildes que buscam a Deus
(cf. Dt 29,3; Is 6,9-10; Jr 5,21; Ez 12,2).
Ele obtém a graça de uma visão não só física, mas espiritual, porque reconhece o
“Filho do homem”, diferentemente dos autossuficientes que só confiam em suas próprias
luzes e rejeitam a luz que vem do alto e, portanto, se autocondenam, diante de
Cristo e de Deus, à cegueira (cf. Jo 9,39-41).
7. A importância decisiva da fé aparece
com clareza ainda maior no diálogo entre Jesus e Marta diante do sepulcro de
Lázaro: “Jesus respondeu: ‘Teu irmão vai ressuscitar’. Marta disse: ‘Eu sei que
ele vai ressuscitar, na ressurreição do último dia’. Então Jesus declarou: ‘Eu
sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E
todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá. Crês isto?’. Ela respondeu: ‘Sim,
Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele
que vem ao mundo” (Jo 11,23-27). E Jesus ressuscita Lázaro, como
sinal do seu poder divino não só de ressuscitar os mortos, porque é Senhor da vida,
mas também de vencer a morte, Ele que, como disse a Marta, é a ressurreição
e a vida!
8. O ensinamento de Jesus sobre a fé
como condição da sua ação salvífica se resume e consolida no diálogo
noturno com Nicodemos, “um chefe entre os judeus” bem disposto para com Ele e
pronto a reconhecê-lo como “mestre da parte de Deus” (Jo 3,2). Jesus
mantém com ele um longo discurso sobre a “vida nova” e, em definitiva, sobre a
nova economia da salvação fundada na fé no Filho do homem que deve ser elevado
“a fim de que todo o que n’Ele crer tenha a vida eterna. De tal modo Deus amou
o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que n’Ele crer não
pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,15-16). Portanto, a fé
em Cristo é condição constitutiva da salvação, da vida eterna. É a fé no Filho Unigênito,
consubstancial ao Pai, no qual se manifesta o amor do Pai. Com efeito, “Deus enviou
o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja
salvo por meio d’Ele” (v. 17). O julgamento, na realidade, é imanente à escolha
que se faz, à adesão ou à rejeição da fé em Cristo: “Quem n’Ele crê não é julgado,
mas quem não crê já está julgado, porque não creu no nome do Filho Unigênito de
Deus” (v. 18).
Falando com Nicodemos, Jesus
indica no Mistério Pascal o ponto central da fé que salva: “É necessário
que o Filho do homem seja elevado, a fim de que todo o que n’Ele crer tenha a
vida eterna” (vv. 14-15). Podemos dizer também que este é o “ponto crítico” da
fé em Cristo. A cruz foi a prova definitiva da fé para os Apóstolos
e os discípulos de Cristo. Diante dessa “elevação” era preciso que ficassem perturbados,
como em parte aconteceu. Mas o fato de que Ele “ressuscitou ao terceiro dia” lhes
permitiu sair vitoriosos da última prova. Inclusive Tomé, que foi o último a
superar a prova pascal da fé, durante o seu encontro com o Ressuscitado irrompe
nessa maravilhosa profissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28).
Como Pedro em Cesareia de Filipe (cf. Mt 16,16), também
Tomé nesse encontro pascal deixa “explodir” o grito da fé que vem do Pai: Jesus
Crucificado e Ressuscitado é “Senhor e Deus”.
9. Logo depois de ter relatado
esta profissão de fé e a resposta de Jesus, que proclama a bem-aventurança daqueles
que “não viram e creram” (v. 29), João oferece uma primeira conclusão do seu Evangelho:
“Jesus fez diante dos discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste
livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (vv. 30-31).
Assim, pois, tudo o que Jesus
fazia e ensinava, tudo o que os Apóstolos pregaram e testemunharam e os evangelistas
escreveram, tudo o que a Igreja conserva e repete do seu ensinamento, deve
estar a serviço da fé, para que, crendo, se alcance a salvação. A salvação -
e, portanto, a vida eterna - está ligada à missão messiânica de Jesus Cristo, da
qual deriva toda a “lógica” e a “economia” da fé cristã.
Proclama-o o próprio João desde o Prólogo do seu Evangelho: “A quantos o receberam,
(o Verbo) deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus: os que
creem em seu nome” (Jo 1,12).
32. “Quem perder a vida por mim,
esse a salvará”
João Paulo II - 28 de outubro
de 1987
1. Em nossa busca dos sinais evangélicos
que revelam a consciência que Cristo tinha da sua divindade, destacamos na Catequese
anterior o pedido que Ele faz aos seus discípulos de que tenham fé n’Ele:
“Credes em Deus, crede também em mim” (Jo 14,1): um pedido que só Deus
pode fazer. Jesus exige esta fé quando manifesta um poder divino que supera
todas as forças da natureza, por exemplo, na ressurreição de Lázaro (cf. Jo
11,38-44); a exige também na hora da prova, como fé no poder salvífico da
sua cruz, como declara no diálogo com Nicodemos (cf. Jo 3,14-15);
e é fé na sua divindade: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9).
A fé refere-se a uma realidade
invisível, que está acima dos sentidos e da experiência, e supera os limites do
próprio intelecto humano - “argumentum non apparentium”; “prova de realidades
que não se veem” (Hb 11,1); refere-se, como diz São Paulo, àquelas
coisas que “os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem entrou no
coração do ser humano”, mas que “Deus preparou para os que o amam” (1Cor 2,9).
Jesus exige tal fé quando, na véspera da sua Morte na cruz, humanamente ignominiosa,
diz aos Apóstolos que vai a preparar-lhes um lugar na casa do Pai (cf. Jo 14,2).
2. Estas coisas misteriosas, esta realidade
invisível, se identificam com o Bem infinito de Deus, Amor eterno, sumamente
digno de ser amado sobre todas as coisas. Portanto, junto a este pedido de fé, Jesus coloca
o mandamento do amor a Deus “sobre todas as coisas”, próprio já
do Antigo Testamento, mas repetido e corroborado por Jesus em chave nova. É verdade
que quando responde à pergunta: “Qual é o maior mandamento da Lei?”, Jesus cita
as palavras da Lei mosaica: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu
coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento” (Mt 22,36-37;
cf. Dt 6,5). Mas o sentido pleno que o mandamento assume
nos lábios de Jesus emerge da referência a outros elementos do contexto no qual
Ele se move e ensina. Sem dúvida Ele quer inculcar que só Deus pode e deve ser
amado sobre todo o criado, e apenas em ordem a Deus pode haver no homem a exigência
de um amor sobre todas as coisas. Só Deus, em virtude desta exigência de
amor radical e total, pode chamar o homem para que “o siga” sem reservas, sem limitações,
de modo indivisível, como lemos já no Antigo Testamento: “Ao Senhor, vosso Deus,
seguireis.... d’Ele guardareis os mandamentos... a Ele servireis e a Ele
aderireis” (Dt 13,5). Com efeito, só Deus “é bom” em sentido
absoluto (cf. Mc 10,18; Mt 19,17). Só Ele “é
amor” (1Jo 4,16) por essência e por definição. Mas aqui há um
elemento novo e surpreendente na vida e no ensinamento de Cristo.
3. Jesus chama a segui-lo pessoalmente.
Podemos dizer que este chamado está no próprio centro do Evangelho.
Por um lado, Jesus lança este chamado; por outro ouvimos os evangelistas falarem
de homens que o seguem e, ainda mais, de alguns deles que deixam tudo para
segui-lo.
Pensemos em todos aqueles chamado dos
quais nos deram notícia os evangelistas: “Um discípulo disse a Jesus: ‘Senhor, permite-me
que primeiro eu vá enterrar meu pai’. Jesus, porém, lhe respondeu: ‘Segue-me,
e deixa que os mortos enterrem os seus mortos” (Mt 8,21-22): forma
drástica de dizer: “Deixa tudo, imediatamente, por mim”. Esta é a redação de Mateus.
Lucas acrescenta a conotação apostólica desta vocação: “Tu, vai e anuncia o reino
de Deus” (Lc 9,60).
Em outra ocasião, passando junto ao
posto de arrecadação de impostos, diz e quase impõe a Mateus, que atesta o fato:
“Segue-me”. E ele se levantou e o seguiu (Mt 9,9; cf. Mc 2,13-14).
Seguir Jesus significa muitas vezes
não só deixar as ocupações e romper os vínculos com o mundo, mas também afastar-se
da agitação em que se encontra e mesmo dar os próprios bens aos pobres. Nem
todos são capazes de fazer essa ruptura radical, como o jovem rico, embora tivesse
observado a Lei desde a infância e talvez buscado seriamente um caminho de
perfeição. Mas, ao ouvir o convite de Jesus, “foi embora, cheio de tristeza, pois
possuía muitos bens” (Mt 19,22; Mc 10,22).
Outros, ao contrário, não só aceitam
esse “Segue-me”, mas, como Filipe de Betsaida, sentem a necessidade de
comunicar aos demais sua convicção de ter encontrado o Messias (cf. Jo 1,43ss).
O próprio Simão ouve desde o primeiro encontro: “Tu te chamarás Cefas”, que quer
dizer “Pedro” (v. 42). O evangelista João observa que Jesus “fixou o olhar nele”:
nesse olhar intenso estava o “Segue-me” mais forte e cativante que nunca. Mas parece
que Jesus, dada a vocação toda especial de Pedro (e talvez também o seu temperamento
natural), quer fazer amadurecer pouco a pouco sua capacidade de valorizar e aceitar
esse chamado. Com efeito, o “Segue-me” literal para Pedro chegará depois do lava-pés,
durante a Última Ceia (cf. Jo 13,36), e por fim, de
modo definitivo, depois da Ressurreição, às margens do lago de Tiberíades (cf. Jo 21,19).
4. Sem dúvida Pedro e os outros Apóstolos
- exceto Judas - compreendem e aceitam o chamado a seguir Jesus como uma doação
total de si mesmos e de suas coisas à causa do anúncio do reino de Deus. Eles mesmos
recordarão a Jesus, pela boca de Pedro: “Nós deixamos tudo e te seguimos” (Mt 19,27).
Lucas acrescenta: “Deixamos os nossos bens...” (Lc 18,28). E o
próprio Jesus parece querer precisar de que “bens” se trata ao responder a
Pedro. “Em verdade vos digo: todo aquele que tiver deixado casa, mulher, irmãos,
pais ou filhos por causa do reino de Deus, receberá muitas vezes mais, no
presente, e, no mundo vindouro, a vida eterna” (Lc 18,29-30).
Em Mateus é especificado também o
deixar irmãs, mãe, campos “por causa do meu nome”, a quem Jesus promete que “receberá
cem vezes mais e terá como herança a vida eterna” (Mt 19,29).
Em Marcos há uma ulterior especificação
sobre o abandonar todas as coisas “por mim e pelo Evangelho”, e sobre a
recompensa: “Cem vezes mais: neste tempo, casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e
campos, com perseguições; e, no mundo futuro, a vida eterna” (Mc 10,29-30).
Sem nos preocuparmos por ora com a
linguagem figurada usada por Jesus, perguntemo-nos: Quem é esse que chama a
segui-lo e promete a quem o segue dar-lhe tantas recompensas e até mesmo “a
vida eterna”? Pode um simples “filho do homem” prometer tanto, ser acreditado e
seguido, e ter tanto atrativo não só para aqueles discípulos felizes, mas para
milhares e milhões de homens em todos os séculos?
5. Em realidade aqueles discípulos
recordavam-se bem da autoridade com que Jesus lhes havia chamado a segui-lo,
não hesitando em pedir-lhes uma dedicação radical, expressa em termos que podiam
parecer paradoxais, como quando dizia que tinha vindo trazer “não a paz, mas a
espada” (Mt 10,34), isto é, a criar separações e divisões nas próprias famílias
a respeito do seguimento, e em seguida afirmava: “Quem ama pai ou mãe mais do que
a mim, não é digno de mim. E quem ama filho ou filha mais do que a mim, não
é digno de mim. E quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim” (Mt 10,37-38).
Ainda mais vigorosa e quase dura é a formulação de Lucas: “Se alguém vem a mim,
mas não odeia (hebraísmo para dizer: “não se desprende de”) seu pai, sua
mãe, sua mulher e filhos, seus irmãos e irmãs e até sua própria vida, não pode
ser meu discípulo” (Lc 14,26) [1].
Diante estas expressões de Jesus,
não podemos deixar de refletir sobre como excelsa e árdua é a vocação cristã. Sem
dúvida as formas concretas do seguimento de Cristo são graduadas por Ele mesmo segundo
as condições, as possibilidades, as missões, os carismas das pessoas e dos grupos.
As palavras de Jesus, como Ele mesmo diz, são “espírito e vida” (Jo 6,63),
e não podemos pretender aplicá-las de forma idêntica para todos. Mas, segundo
Santo Tomás de Aquino, a exigência evangélica de renúncias heroicas, como as dos
conselhos evangélicos de pobreza, castidade e renúncia de si para seguir Jesus -
e o mesmo se pode dizer da oblação de si no martírio antes que trair a fé e o seguimento
de Cristo - compromete todos “secundum praeparationem animi” (cf. Suma
Teológica II-II q. 184, a. 7, ad 1), ou seja, segundo a disponibilidade
de espírito para cumprir o que se é pedido quando que se é chamado, e portanto
comporta para todos um desapego interior, uma oblação, uma autodoação a Cristo,
sem as quais não há um verdadeiro espírito evangélico.
6. Do próprio Evangelho podemos
deduzir que há vocações particulares, que dependem de uma eleição de Cristo: como
a dos Apóstolos e de muitos discípulos, indicada com bastante clareza por
Marcos quando escreve: “Jesus subiu à montanha e chamou os que Ele mesmo quis, e
foram até Ele. Então constituiu doze para estarem com Ele...” (Mc 3,13-14).
O mesmo Jesus, segundo João, diz aos Apóstolos no discurso final: “Não fostes
vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi...” (Jo 15,16).
Não parece que Ele tenha condenado
definitivamente aquele que não aceitou segui-lo por um caminho de total dedicação
à causa do Evangelho, como foi o caso do jovem rico (Mc 10,17-27).
Há algo mais que põe em jogo a livre generosidade de cada um. É certo, porém, que
a vocação à fé e ao amor cristão é universal e obrigatória: fé na palavra de Jesus,
amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, porque “quem
não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20).
7. Ao estabelecer a exigência da resposta
à vocação a segui-lo, Jesus não esconde a ninguém que seu seguimento requer sacrifício,
às vezes mesmo o sacrifício supremo. Com efeito, diz aos seus discípulos: “Se alguém
quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me; pois quem
quiser salvar sua vida, a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim, a
encontrará” (Mt 16,24-25).
Marcos destaca que Jesus havia
convocado com os discípulos também a multidão, e a todos falou da renúncia exigida
a quem quer segui-lo, de tomar a cruz e de perder a vida “por causa de mim e do
Evangelho” (Mc 8,34-35). E isto depois de ter falado da sua próxima
Paixão e Morte! (cf. vv. 31-32).
8. Ao mesmo tempo, porém, Jesus
proclama a bem-aventurança daqueles que são perseguidos “por causa do Filho do homem”
(Lc 6,22): “Alegrai-vos e exultai, porque grande é a vossa recompensa
nos céus” (Mt 5,12).
E nós mais uma vez nos perguntamos:
Quem é este que chama com autoridade a segui-lo, anuncia ódio, insultos e perseguições
de todo tipo (cf. Lc 6,22), e promete “recompensa nos céus”? Só um “filho
do homem” com a consciência de ser Filho de Deus poderia falar assim. Neste
sentido o entenderam os Apóstolos e os discípulos, que nos transmitiram sua revelação
e sua mensagem. Neste sentido queremos entendê-lo também nós, repetindo com o
Apóstolo Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28).
Chamado dos primeiros Apóstolos |
Nota:
[1] A tradução da CNBB, que
estamos usando para as citações bíblicas das Catequeses, traduz diretamente
esse “odiar” como “desprender-se”.
Tradução nossa a partir do texto
italiano divulgado no site da Santa Sé (21 de outubro e 28 de outubro de 1987).
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