Cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
29 de março de 2024
“Quando tiverdes levantado o Filho de Homem, então sabereis que Eu sou”
1. “Quando
tiverdes levantado o Filho de Homem, então sabereis que ‘Eu sou’” (Jo
8,28). É a palavra que Jesus pronunciou ao término de uma calorosa disputa com
seus oponentes. Há um intensificar-se em relação aos precedentes “Eu sou”.
Jesus não diz mais: “Eu sou isto ou aquilo” - o pão da vida, a luz do mundo, a
ressurreição e a vida... Diz simplesmente “Eu sou”, sem especificação. Isso dá
à sua declaração um alcance absoluto, metafísico. Remete intencionalmente às
palavras de Êxodo 3,14 e Isaías 43,10-12, nas quais Deus mesmo
proclama o seu divino “Eu sou”.
A
novidade inaudita desta palavra de Cristo só se descobre se prestamos atenção
ao que precede a autoafirmação de Cristo: “Quando tiverdes levantado o Filho
de Homem, então sabereis que Eu sou”. É como dizer: o que eu sou - e, portanto,
“o que Deus é” - será conhecido somente a partir da cruz. No Evangelho de
João a expressão “ser levantado”, como sabemos, refere-se ao evento da
cruz!
Estamos
diante de uma total inversão da ideia humana de Deus e, em parte, também
daquela do Antigo Testamento. Jesus não veio para retocar e aperfeiçoar a ideia
que os homens fizeram de Deus, mas, em certo sentido, para invertê-la e revelar
o verdadeiro rosto de Deus. É o que o Apóstolo Paulo, por primeiro, entendeu
quando escreve:
“De
fato, pela sabedoria de Deus, o mundo não foi capaz de reconhecer a Deus por
meio da sabedoria, mas, por meio da loucura da pregação, Deus quis salvar os
que creem. Com efeito, enquanto os judeus pedem sinais e os gregos buscam
sabedoria, nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura
para os gentios. Para os que são chamados, porém, tanto judeus como gregos,
Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,21-24).
Entendida
sob esta luz, a palavra de Cristo assume um alcance universal que interpela
quem a lê, em qualquer época e situação, inclusive a nossa. Essa inversão da
ideia de Deus, de fato, sempre deve ser operada. A ideia de Deus que Jesus veio
mudar, infelizmente, todos nós a trazemos dentro, em nosso inconsciente. Pode-se
falar de um Deus único, puro espírito, ente supremo, e assim por diante. Mas
como conseguir vê-lo no aniquilamento da sua morte na cruz?
Deus
é onipotente, certo; mas de que força se trata? Diante das criaturas humanas,
Deus se encontra desprovido de toda capacidade, não somente constritiva, mas
também defensiva. Não pode intervir com autoridade para se impor a eles. Não
pode fazer outra coisa senão respeitar, em medida infinita, a livre escolha dos
homens. Eis, então, que o Pai revela o verdadeiro rosto da sua onipotência no
seu Filho, que se põe de joelhos diante dos discípulos para lavar os seus pés;
n’Ele que, reduzido à mais radical impotência sobre a cruz, continua a amar e
perdoar, sem jamais condenar.
A
verdadeira onipotência de Deus é a total impotência do
Calvário. É necessária pouca força para pôr-se em evidência; é necessária
muita, ao contrário, para pôr-se de lado, para se cancelar. Deus é esta força
ilimitada de escondimento de si! Exinanivit semetipsum: “esvaziou-se
a si mesmo” (Fl 2,7). À nossa “vontade de potência”, Ele opôs a sua
impotência voluntária.
Que
lição para nós que, mais ou menos conscientemente, queremos sempre nos colocar
em evidência! Que lição, sobretudo para os poderosos da terra! Para aqueles que
não pensam em servir nem mesmo remotamente, mas só no poder pelo poder; àqueles
- diz Jesus no Evangelho - que “dominam os povos” e, além do mais, “se fazem
chamar benfeitores” (cf. Mt 20,25; Lc 22,25).
2. Mas
o triunfo de Cristo na sua Ressurreição não inverte esta visão, reafirmando a
onipotência invencível de Deus? Sim, mas em sentido bem diverso daquele que
estamos habituados a pensar. Bem diverso dos “triunfos” que se celebravam ao
retorno do imperador de campanhas vitoriosas, ao longo de uma estrada que ainda
hoje, em Roma, leva o nome de “Via Triunfal”.
Houve
um triunfo, claro, no caso de Cristo, e um triunfo definitivo e irreversível!
Mas como se manifesta este triunfo? A Ressurreição acontece no mistério, sem
testemunhos. A sua morte - ouvimos na narrativa da Paixão - fora vista por uma
grande multidão e envolvera as máximas autoridades religiosas e políticas.
Ressuscitado, Jesus aparece apenas a poucos discípulos, fora dos holofotes. Com
isso, quis dizer-nos que, após ter sofrido, não é preciso esperar um triunfo
exterior, visível, como uma glória terrena. O triunfo se dá no invisível e é de
ordem infinitamente superior, porque é eterno! Os mártires de ontem e hoje são
o exemplo disso.
O
Ressuscitado se manifesta mediante suas aparições, de modo suficiente para
fornecer um fundamento solidíssimo à fé, para quem não se recusa, a priori,
em crer; mas não é uma revanche que humilha os seus adversários. Não aparece no
meio deles para demonstrar que erraram e para zombar da sua ira impotente.
Toda
vingança seria incompatível com o amor que Cristo quis testemunhar aos homens
com a sua Paixão. Ele se comporta humildemente na glória da Ressurreição, como
no aniquilamento do Calvário. A preocupação de Jesus Ressuscitado não é
confundir os seus inimigos, mas de logo ir tranquilizar os seus discípulos
desolados e, antes deles, as mulheres que jamais deixaram de crer n’Ele.
3. No
passado falava-se de bom grado do “triunfo da Santa Igreja”. Rezava-se por isso
e com satisfação se recordavam seus momentos e razões históricas. Porém, que tipo
de triunfo se tinha em mente? Hoje nos damos conta de quanto aquele tipo de
triunfo era diverso daquele de Jesus. Mas não julguemos o passado. Corre-se
sempre o risco de sermos injustos quando se julga o passado com a mentalidade
do presente.
Acolhamos
antes o convite que Jesus dirige ao mundo do alto da sua cruz: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e Eu vos darei descanso”
(Mt 11,28). Seria quase o caso de pensar em uma ironia, em uma
brincadeira! Alguém que não tem, Ele mesmo, uma pedra sobre a qual repousar a
cabeça, alguém que foi rejeitado pelos seus, condenado à morte, alguém diante
de quem “quase escondíamos o rosto” (cf. Is 53,3), volta-se à
humanidade inteira, de todos os lugares e todos os tempos, e diz: “Vinde a
mim, todos vós, e vos darei descanso!”.
Vem
tu, que és idoso, doente e sozinho; tu, que o mundo deixa morrer na miséria, na
fome, ou sob as bombas; tu, que por tua fé em mim, ou por tua luta pela
liberdade, definhas em uma cela de prisão; vem, tu, mulher vítima de violência.
Enfim, todos, ninguém excluído: “Vinde a mim e Eu vos darei descanso!”.
Não prometi solenemente: “Quando Eu for elevado da terra, atrairei
todos a mim” (Jo 12,32)?
“Mas
que descanso tu podes nos dar, ó homem da cruz, tu, mais abandonado e cansado
do que aqueles que queres consolar?”. “Vinde a mim, porque ‘Eu sou’! Eu sou
Deus! Renunciei à vossa ideia de onipotência, mas conservo
intacta a minha onipotência, que é a onipotência do amor. Está
escrito: ‘A fraqueza de Deus é mais forte que os homens’ (1Cor
1,25). Eu posso dar descanso, mesmo sem tirar a fadiga e o cansaço neste mundo.
Perguntai-o a quem fez tal experiência!”.
Sim,
ó Senhor Crucificado, com o coração cheio de gratidão, no dia em que
comemoramos a tua Paixão, nós proclamamos em alta voz com o teu Apóstolo Paulo:
“Quem
nos separará do amor de Cristo? Tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez,
perigo, espada? (...) Tenho certeza de que nem a morte, nem a vida, nem
os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades,
nem a altura, nem a profundeza, nem outra criatura qualquer será capaz de nos
separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm
8,35-39).
Fonte: Vatican News.
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