segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Homilia do Papa Bento XVI: Imaculada Conceição (2005)

Nesta Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria recordamos a homilia proferida pelo Papa Bento XVI (†2022) há 20 anos, no dia 08 de dezembro de 2005, durante a Missa por ocasião dos 40 anos do Encerramento do Concílio Vaticano II:

Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria
40º Aniversário do Encerramento do Concílio Vaticano II
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica de São Pedro
Quinta-feira, 08 de dezembro de 2005

Amados irmãos no Episcopado e no Sacerdócio,
Queridos irmãos e irmãs,
Há quarenta anos, no dia 08 de dezembro de 1965, na Praça diante desta Basílica de São Pedro, o Papa Paulo VI concluiu solenemente o Concílio Vaticano II. Ele havia sido inaugurado, segundo a vontade de João XXIII, no dia 11 de outubro de 1962, então Festa da Maternidade de Maria, e teve o seu encerramento no dia da Imaculada. Uma moldura mariana circunda o Concílio. Na realidade, é muito mais do que uma moldura: é uma orientação de todo o seu caminho. Remete-nos, como remetia então os Padres do Concílio, à imagem da Virgem à escuta, que vive na Palavra de Deus, que conserva no seu coração as palavras que lhe vêm de Deus e, reunindo-as como em um mosaico, aprende a compreendê-las (cf. Lc 2,19.51); remete-nos à grande Fiel que, plena de confiança, se coloca nas mãos de Deus, abandonando-se à sua vontade; remete-nos à Mãe humilde que, quando a missão do Filho o exige, se põe de lado e, ao mesmo tempo, à mulher corajosa que, enquanto os discípulos fogem, permanece aos pés da Cruz. No seu discurso por ocasião da promulgação da Constituição conciliar sobre a Igreja, Paulo VI qualificou Maria como tutrix huius Concilii”, “protetora deste Concílio” (cf. Oecumenicum Concilium Vaticanum II, Constitutiones, Decreta, Declarationes, 1966, p. 983) e, com uma alusão inconfundível à narração do Pentecostes transmitido por Lucas (cf. At 1,12-14), disse que os Padres se reuniram na sala do Concílio cum Maria, Matre Iesu” (com Maria, Mãe de Jesus) e, também no seu nome, dela agora sairiam (ibid., p. 985).


Permanece indelével na minha memória o momento em que, ouvindo as suas palavras: Mariam Sanctissimam declaramus Matrem Ecclesiae”, “declaramos Maria Santíssima Mãe da Igreja”, espontaneamente os Padres se levantaram das suas cadeiras e aplaudiram de pé, prestando homenagem à Mãe de Deus, à nossa Mãe, à Mãe da Igreja. Com efeito, com este título o Papa resumia a doutrina mariana do Concílio e oferecia a chave para a sua compreensão. Maria não se coloca apenas em uma relação singular com Cristo, o Filho de Deus que, como homem, quis se tornar seu filho. Permanecendo totalmente unida a Cristo, ela pertence totalmente unida também a nós. Sim, podemos dizer que Maria está próxima de nós como nenhum outro ser humano, porque Cristo é homem para os homens e todo o seu ser é um “ser para nós”. Como Cabeça, dizem os Padres, Cristo é inseparável do seu Corpo que é a Igreja, formando juntamente com ela, por assim dizer, um único sujeito vivente. A Mãe da Cabeça é também a Mãe de toda a Igreja; ela é, por assim dizer, totalmente despojada de si mesma; ela entregou-se inteiramente a Cristo e com Ele é entregue como dom a todos nós. Com efeito, quanto mais a pessoa humana se doa, mais se encontra a si mesma.

O Concílio queria nos dizer isso: Maria está tão entrelaçada no grande mistério da Igreja que ela e a Igreja são inseparáveis, assim como ela e Cristo são inseparáveis. Maria reflete a Igreja, antecipa-a na sua pessoa e, em todas as turbulências que afligem a Igreja sofredora e cansada, permanece sempre a estrela da salvação. Ela é o seu verdadeiro centro, no qual confiamos, embora muitas vezes a sua periferia pesa na nossa alma. No contexto da promulgação da Constituição sobre a Igreja, o Papa Paulo VI esclareceu tudo isso através de um novo título profundamente enraizado na Tradição, precisamente com a intenção de iluminar a estrutura interior do ensinamento sobre a Igreja desenvolvido no Concílio. O Vaticano II devia se expressar sobre os componentes institucionais da Igreja: sobre os Bispos e sobre o Pontífice, sobre os sacerdotes, os leigos e os religiosos na sua comunhão e nas suas relações; devia descrever a Igreja a caminho que, “abraçando em seu seio os pecadores, ao mesmo tempo (é) santa e sempre necessitada de purificação” (Lumen gentium, n. 8). Mas esse aspecto “petrino” da Igreja está incluído naquele “mariano”. Em Maria, a Imaculada, encontramos a essência da Igreja de modo não deformado. Dela devemos aprender a nos tornarmos nós mesmos “almas eclesiais” - assim se expressavam os Padres - para podermos também nós, segundo a palavra de São Paulo, nos apresentarmos “imaculados” diante do Senhor, assim como Ele quis que fôssemos desde o princípio (cf. Cl 1,21; Ef 1,4).

Mas agora devemos nos perguntar: o que significa “Maria, a Imaculada”? Este título tem algo a nos dizer? A Liturgia de hoje nos esclarece o conteúdo dessa palavra com duas grandes imagens. Antes de tudo, com o maravilhoso relato do anúncio da vinda do Messias a Maria, a Virgem de Nazaré (Lc 1,26-38). A saudação do Anjo é tecida com fios do Antigo Testamento, especialmente do profeta Sofonias. Ele faz ver que Maria, humilde mulher de província, que provém de uma estirpe sacerdotal e traz em si o grande patrimônio sacerdotal de Israel, é “o santo resto” de Israel ao qual os profetas, em todos os períodos de dificuldade e de trevas, fizeram referência. Nela está presente a verdadeira Sião, a pura e viva morada de Deus. O Senhor habita nela, nela encontra o lugar do seu repouso. Ela é a casa viva de Deus, o qual não habita em edifícios de pedra, mas no coração do homem vivo. Ela é o rebento que, na obscura noite invernal da história, brota do tronco abatido de Davi. Nela se cumpre a palavra do Salmo: “A terra produziu o seu fruto” (Sl 66,7). Ela é o broto do qual deriva a árvore da redenção e dos redimidos. Deus não fracassou, como podia parecer já no início da história com Adão e Eva, ou durante o período do exílio babilônico, e como novamente parecia no tempo de Maria, quando Israel se tornou definitivamente um povo sem importância, em uma região ocupada, com poucos sinais reconhecíveis da sua santidade. Deus não fracassou. Na humildade da casa de Nazaré vive o Israel santo, o resto puro. Deus salvou e salva o seu povo. Do tronco abatido resplandece novamente a sua história, tornando-se uma nova força viva que orienta e impregna o mundo. Maria é o Israel santo; ela diz “sim” ao Senhor, se coloca plenamente à sua disposição e se torna assim o templo vivo de Deus.

A segunda imagem é muito mais difícil e obscura. Essa metáfora tirada do Livro do Gênesis (Gn 3,9-15.20) nos fala a partir de uma grande distância histórica, e somente com dificuldade pode ser esclarecida; apenas ao longo da história foi possível desenvolver uma compreensão mais profunda daquilo que ali é mencionado. É predito que durante toda a história continuará a luta entre o homem e a serpente, isto é, entre o homem e as potências do mal e da morte. Porém, é também prenunciado que “a descendência” da mulher um dia vencerá e esmagará a cabeça da serpente, da morte; é prenunciado que a descendência da mulher - e nela a mulher e a própria mãe - vencerá e que assim, através do homem, Deus vencerá. Se, juntamente com a Igreja fiel e orante, nos colocarmos à escuta diante desse texto, então poderemos começar a compreender o que é o pecado original, o pecado hereditário, e também qual é a defesa contra esse pecado hereditário, o que é a redenção.

Qual é o quadro que nos é apresentado nessa passagem? O homem não confia em Deus. Tentado pelas palavras da serpente, ele alimenta a suspeita de que Deus, em última instância, tira algo da sua vida, que Deus é um concorrente que limita a nossa liberdade e que nós só seremos plenamente seres humanos quando o tivermos posto de lado; em suma, somente desse modo podemos realizar plenamente a nossa liberdade. O homem vive na suspeita de que o amor de Deus cria uma dependência e que é necessário libertar-se dessa dependência para ser plenamente si mesmo. O homem não deseja receber de Deus a sua existência e a plenitude da sua vida. Quer haurir ele mesmo da árvore do conhecimento o poder de plasmar o mundo, de fazer-se “deus” elevando-se ao nível d’Ele e de vencer a morte e as trevas com as próprias forças. Não quer contar com o amor, que não lhe parece confiável; ele conta unicamente com o conhecimento, dado que ele lhe confere o poder. Ao invés do amor visa o poder, com o qual deseja ter nas mãos, de modo autônomo, a própria vida. E ao fazer isso, ele confia na mentira mais do que na verdade, e assim mergulha com a sua vida no vazio, na morte. Amor não é dependência, mas dom que nos faz viver. A liberdade de um ser humano é a liberdade de um ser limitado e, portanto, ela mesma é limitada. Só podemos possui-la como liberdade compartilhada, na comunhão das liberdades: somente se vivermos do modo justo uns com os outros e uns para os outros a liberdade pode se desenvolver. Nós vivemos do modo justo se vivermos segundo a verdade do nosso ser, isto é, segundo a vontade de Deus. Porque a vontade de Deus não é para o homem uma lei de fora, que o constringe, mas a medida intrínseca da sua natureza, uma medida que está inscrita nele e que o torna imagem de Deus e, assim, criatura livre. Se nós vivermos contra o amor e contra a verdade - contra Deus - então nos destruiremos uns aos outros e aniquilaremos o mundo. Assim não encontraremos a vida, mas defenderemos o interesse da morte. Tudo isso é narrado com imagens imortais na história da queda original e da expulsão do homem do Paraíso terrestre.

Queridos irmãos e irmãs! Se refletimos sinceramente sobre nós mesmos e sobre a nossa história, devemos dizer que com esse relato é descrita não só a história do princípio, mas a história de todos os tempos, e que todos trazemos dentro de nós uma gota do veneno daquele modo de pensar ilustrado nas imagens do Livro do Gênesis. A essa gota de veneno chamamos pecado original. Precisamente na Festa da Imaculada Conceição manifesta-se em nós a suspeita de que uma pessoa que nunca peque, no fundo, seja tediosa; que falte algo na sua vida: a dimensão dramática do ser autônomo; que faça parte do verdadeiro ser humano a liberdade de dizer não, o descer às trevas do pecado e o desejar agir por conta própria; que só então é possível desfrutar até o fim toda a vastidão e a profundidade do nosso ser humanos, do ser verdadeiramente nós mesmos; que devemos pôr à prova essa liberdade também contra Deus, para nos tornarmos plenamente nós mesmos. Em suma, pensamos que o mal no fundo seja bom, que temos necessidade dele, pelo menos um pouco, para experimentar a plenitude do ser. Pensamos que Mefistófeles - o tentador - tem razão quando diz que é a força “que sempre deseja o mal e sempre realiza o bem” (Johann Wolfgang von Goethe, Fausto I, 3). Pensamos que pactuar um pouco com o mal, reservar para nós mesmos um pouco de liberdade contra Deus, no fundo, seja um bem, talvez até necessário.

Contudo, quando olhamos para o mundo à nossa volta, podemos ver que não é assim, isto é, que o mal sempre envenena, que não eleva o homem, mas o rebaixa e humilha; que não o torna maior, mais puro ou mais rico, mas o prejudica e o torna ainda menor. É sobretudo isso que devemos aprender no dia da Imaculada: o homem que se abandona totalmente nas mãos de Deus não se torna um fantoche de Deus, uma maçadora pessoa que consente; ele não perde a sua liberdade. Somente o homem que confia totalmente em Deus encontra a verdadeira liberdade, a grande e criativa vastidão da liberdade do bem. O homem que se dirige a Deus não se torna menor, mas maior, porque graças a Deus e juntamente com Ele se torna grande, divino, verdadeiramente ele mesmo. O homem que se coloca nas mãos de Deus não se afasta dos outros, retirando-se na sua salvação particular; pelo contrário, só então o seu coração desperta verdadeiramente e ele se torna uma pessoa sensível e por isso benévola e aberta.

Quanto mais próximo de Deus o homem está, mais próximo está dos homens. Nós o vemos em Maria. O fato de ela estar totalmente junto de Deus é a razão pela qual se encontra também próxima dos homens. Por isso ela pode ser a Mãe de toda a consolação e de toda a ajuda, uma Mãe à qual, em qualquer necessidade, todos podem ousar dirigir-se na própria fraqueza e no próprio pecado, porque ela tudo compreende e é para todos a força aberta da bondade criativa. É nela que Deus imprime sua própria imagem, a imagem d’Aquele que vai à procura da ovelha perdida até as montanhas e até o meio dos espinhos e das sarças dos pecados deste mundo, deixando-se ferir pela coroa de espinhos desses pecados, para tomar a ovelha sobre seus ombros e reconduzi-la à casa. Como Mãe que se compadece, Maria é a figura antecipada e o retrato permanente do Filho. E assim vemos que também a imagem da Virgem das Dores, da Mãe que compartilha o sofrimento e o amor, é uma verdadeira imagem da Imaculada. Através do ser e do sentir juntamente com Deus, o seu coração se alargou. Nela a bondade de Deus se aproximou e se aproxima de nós. Assim, Maria está diante de nós como sinal de consolação, de encorajamento, de esperança. Ela se dirige a nós dizendo: “Tem a coragem de ousar com Deus! Tenta! Não tenhas medo d’Ele! Tem a coragem de arriscar com a fé! Tem a coragem de arriscar com a bondade! Tem a coragem de arriscar com o coração puro! Compromete-te com Deus, e então verás que precisamente assim a tua vida se tornará ampla e iluminada, não tediosa, mas repleta de infinitas surpresas, porque a bondade infinita de Deus jamais se esgota!”.

Neste dia de festa, queremos agradecer ao Senhor pelo grande sinal da sua bondade que nos foi concedido em Maria, sua Mãe e Mãe da Igreja. Queremos pedir-lhe que coloque Maria no nosso caminho, como luz que nos ajuda a nos tornarmos também nós luz e a levarmos esta luz pelas noites da história. Amém!

Imaculada Conceição (Pietro Bianchi)
(Basílica de São Pedro, Capela do Coro)

Fonte: Santa Sé (com pequenas correções do autor deste blog).

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